Representante maior da segunda geração da bossa nova, o cantor, compositor e arranjador Marcos Valle não costuma dizer ‘no meu tempo’. Para esse jovem carioca de 75 anos, reverenciar o passado sem tirar o olho do futuro é sinal de transformação. Prova é seu novo álbum, com o sugestivo título Sempre.
Por Dado Abreu / Fotos: Maurício Nahas / Styling: Cuca Ellias (od mgt)
Em uma tardinha no fim dos anos 1990, Marcos Valle recebeu um telefonema da amiga e parceira musical Joyce Moreno. De Londres, ela relatava entusiasmada ao golden boy da bossa nova que as pistas de dança da Europa ferviam com o boogie do amigo. O funk suado “Estrelar” (1983), uma ode à malhação (“tem que correr / tem que suar / tem que malhar…”), e o disco Samba ‘68 estavam no set do DJ e produtor Gilles Peterson, que serviu para apresentar Marcos Valle a uma nova geração de seguidores. Depois dele, gente graúda resolveu fuçar a fundo a discografia do brasileiro para além da universalmente carioca “Samba de Verão” – incluindo aí os astros rappers Jay-Z e Kanye West, que samplearam “Ele e Ela” e “Bodas de Sangue”; Pusha T, Capital Cities e Loyle Carner também aderiram à onda. Foi a apoteose de um lado pop com o qual o cantor e compositor volta agora a flertar, jovial aos 75 anos como se pode ver neste ensaio de PODER, com o álbum Sempre, seu primeiro de músicas inéditas em nove anos.
“Eu vinha me pedindo um disco desse tipo, com mais groove. Queria revisitar um pouco as coisas que fiz nos anos 1970, 1980. E, por uma agradável coincidência, a gravadora que lança meus discos lá fora [a inglesa Far Out] teve a mesma ideia. Então, bingo!”, lembra Valle. Entre as canções de Sempre, a única que não é de sua autoria é “Aviso aos Navegantes”, hit de Lulu Santos.
No álbum, ele dialoga com o passado com a consciência de que o tempo não para. “Sempre reflete minha maneira de ver a vida”, conta, sobre a escolha do título. “Nunca tive aquela coisa do ‘no meu tempo’, eu vivo o presente. Em uma faixa eu canto: ‘faço, refaço / digo, redigo / penso, repenso’. Ou seja, eu posso mudar, devo, e estou sempre evoluindo e me transformando.”
Na noite anterior em que posou simpático e descontraído para as lentes do fotógrafo Maurício Nahas, Marcos Valle lotou duas noites de shows no teatro do Sesc Pompeia, em São Paulo, quando apresentou na íntegra o álbum ‘Previsão do Tempo’, de 1973, relançado recentemente em vinil pela coleção Clássicos em Vinil, da Polysom, e um dos mais celebrados pelo seu público. “Nem Paletó, Nem Gravata” e “Mentira” – faixa sampleada pelo Planet Hemp – estão nesse disco. “É interessante que meu público é extremamente variado, vai de 8 a 80. Da bossa ao jazz, do soul ao rock. Acaba sendo um reflexo da misturada toda que foi a minha carreira.” Por variado, entenda realmente variado! Ou apresentar-se no Cazaquistão soa trivial? “Fui achando que seria algo discreto, sem entender muito bem. Tem certeza que vocês querem ver o meu show?! Cheguei e tinham mil pessoas de pé cantando as músicas. Não sei por que, só sei que é assim”, sorri.
Com mais de cinco décadas de carreira, Marcos Valle começou nos anos 1960 como um dos compositores da chamada segunda geração da bossa. Logo no segundo álbum, O Compositor e o Cantor (1965), emplacou a mundialmente famosa “Samba de Verão” – uma parceria com o irmão Paulo Sérgio Valle. A canção entrou no Guinness Book como a única faixa a ocupar o Top 40 da Billboard com três versões diferentes ao mesmo tempo, ganhou uma centena de releituras e tornou-se um hino carioca. Não há quem não fantasie com as areias do Rio nos primeiros versos: “Você viu só que amor / Nunca vi coisa assim / E passou, nem parou / Mas olhou só pra mim…”. “Foi daí que veio a coisa do ‘Menino do Rio’, que não me incomoda. Eu amo o Rio, é minha cidade, mas hoje ela é muito diferente, afetada pelo medo e pela desigualdade social cada vez maior. Torço muito para que isso mude, pelos meus filhos. Sou otimista e tenho esperança de que o Rio vai se recuperar”, diz. Se no passado Marcos Valle passou longas temporadas no exterior, como fez em 1965 a convite de Sérgio Mendes ou depois, entre 1975 e 1980, o projeto agora é outro. Ele garante que segue no Rio e com o Rio. Sempre.
- Neste artigo:
- marcos valle,
- PODER,