Por Paulo Vieira / Fotos: Roberto Setton
Dois mineiros estão em Stanford tentando descobrir qual é a grande “dor” do mundo. Querem oferecer ao planeta o remédio infalível e ganhar dinheiro grosso com ele. Caminhando pelo campus, tropeçam numa lâmpada mágica. Esfregam-na, libertam um gênio, fazem três pedidos. O primeiro: conhecer de fato qual é essa dor; o segundo: encontrar o lenitivo mais adequado para ela; terceiro: convencer investidores a embarcar junto com eles nesse negócio.
Ressalvado o gênio, aqui mera alegoria, eis o começo da história do Quinto Andar, uma das poucas empresas digitais brasileiras a atingir o valor de mercado de US$ 1 bilhão, marca mítica a partir da qual startups são chamadas de unicórnios. Não foi um caminho fácil, notadamente aquela parte de persuadir os investidores, lá no começo, em 2012.
Se são jovens hoje, naquela época os fundadores mal haviam saído de seus cueiros. André Penha, 39 anos, e Gabriel Braga, 37, mineiros respectivamente de Divinópolis e Belo Horizonte, conheceram-se exatamente no campus da Stanford, em Palo Alto. Ambos com histórico de empreendedorismo no Brasil (nas áreas de games e biotecnologia), haviam decidido fazer MBA ali para absorver o que talvez sejam os dois maiores ativos do Vale do Silício: o networking e a capacidade de pensar negócios em escala global. Para achar a tal “dor” do início – jargão que pode ser traduzido por “problema” – lançaram-se num brainstorming em que iam eliminando as dores que julgavam menos, digamos, pungentes. Quando bateram nas dificuldades que é alugar um imóvel, ainda mais no Brasil, não conseguiram recuar. Eis um negócio que é ruim para todas as partes envolvidas. Do lado do inquilino, há o trabalho absurdo e um tanto humilhante de buscar um fiador, a perda de tempo em cartório, as grosserias ditas pelo senhorio quando este não vê sentido na troca de fusíveis por disjuntores; do lado do proprietário, por sua vez, as dores podem ser em cascata: calote, maus-tratos ao patrimônio, o incômodo de ter de mover uma ação de despejo.
André e Gabriel encetaram uma enquete com amigos e conhecidos por telefone e e-mail e logo concluíram: não havia trem mais complicado e chato do que alugar imóvel. Não existia dor que superasse a dor de alugar. Era o que os sócios intuíam, até por terem sentido na pele o problema. E dos dois lados, como locador e inquilino.
O Brasil é campo aberto para a expansão dos negócios do QuintoAndar. Segundo André, que recebeu a PODER na sede provisória da empresa, num dos prédios arrendados pela gigantesca empresa mundial de coworking WeWork, na avenida Paulista, apenas 20% do acervo de imóveis residenciais do país é oferecido para locação. A taxa é inferior à média mundial (35%) e à média das 30 maiores cidades do mundo (50%). Locar imóveis é um processo que implica dificuldades, dentre as quais avulta a de se obter um fiador. O Quinto Andar resolve a questão oferecendo garantias de pagamento para o locador em caso de inadimplência do inquilino. Este, por sua vez, não precisa se preocupar em perder a amizade com o “brother” cujo imóvel poderia vir a calhar como fiança. O que ele precisa é convencer o pessoal de análise de crédito que tem condições de bancar o aluguel – e para isso pode até contar com outros três “roommates” para totalizar a renda mensal necessária a provar.
Curiosamente, essa que é hoje a grande vantagem competitiva da proptech – como são chamadas as startups do setor – demoraria a aparecer. Foi só em 2018, e depois de um período em que o próprio QuintoAndar bancava um seguro-fiança convencional. Antes havia outros imperativos em tela. “Nesse mercado faltava transparência na negociação e sobrava assimetria de informações. Passamos a fazer com que o proprietário tivesse acesso a todas as propostas que iam chegando”, diz André. O QuintoAndar, nos números que gosta de veicular, derrubou o tempo médio para que um contrato de aluguel seja firmado no Brasil de cerca de um mês para quatro dias. O recorde de velocidade nessa negociação, segundo a empresa, é de um dia e meio.
ALEIAS DE STANFORD
A ambição de ter um negócio que “faria diferença para a humanidade” estava, acredite, na cabeça dos mineiros. “Era algo que eu não conseguiria no mercado de games, em que seria mais um”, diz André. A megalomania, ao que consta, não é assim tão incomum nas aleias de Stanford, e André viu que o Brasil poderia ser bastante adequado para a pretensão. Devido a conceitos muito arraigados no imaginário do brasileiro, o mercado opera em bases mais amadoras. Além do mito da casa própria, suposto hedge para as incontáveis reviravoltas econômicas que nos assolam, há certo pudor em reformar imóveis de terceiros. Por isso, na reflexão de André, fundos imobiliários, tão comuns nos países do hemisfério norte, não se estabeleceram no Brasil, fazendo do pequeno proprietário o locador brasileiro por excelência. Isso pode estar mudando (veja box). “Um engenheiro que vai colocar seus imóveis para alugar não tem tempo nem interesse para se preocupar muito com isso.”
Como em tantos negócios de tecnologia, o grande ativo do QuintoAndar é a base de dados crescente que permite à empresa conhecer o perfil socioeconômico do cliente e entender suas preferências. A partir daí, é fazer o algoritmo trabalhar para surgirem novas ferramentas e serviços. Uma das frentes atuais é o programa Originals, que pretende melhorar a qualidade dos imóveis do portfólio, propondo reformas aos proprietários, cuidando de sua contratação e eventualmente de seu financiamento – reforma, eis outra dor considerável do mundo que André e Gabriel parecem querer anestesiar. Nesse novo modelo, a remuneração do Quinto Andar não muda, vem ainda do percentual cobrado sobre o aluguel do imóvel, que, reformado e valorizado, poderia então render mais.
CONCENTRAÇÃO
O desenvolvimento tecnológico fez surgir a economia compartilhada, mas quem esperava que ela pudesse ter um papel protagonista na reversão da concentração de renda ou mesmo no uso mais racional dos insumos pode ter sido um tanto panglossiano. A ponta mais exuberante desse processo, ao menos nos países periféricos, é a precarização dos empregos. Seja como for, serviços antes inexistentes, ou ao menos inexpressivos, são hoje realidade. O mundo aderiu alegremente a modelos como o do Uber e do Airbnb, e as proptechs querem surfar a onda. O último relatório anual da consultoria global KPMG sobre o assunto mostrou que 93% dos 270 respondentes do mundo inteiro viam necessidade de que as imobiliárias tradicionais se “engajassem com as companhias digitais do setor” para fazer frente às mudanças. Um terço delas, com efeito, já o fazia.
Para Ricardo Paixão, vice-presidente da rede imobiliária Secovi-SP, grupo de 185 imobiliárias ligado ao sindicato patronal paulista do setor de habitação, “o QuintoAndar tem méritos ao fazer um mercado notoriamente conservador começar a se mexer para resolver algumas fricções”. Entre essas “fricções”, Paixão destaca a burocratização e os problemas decorrentes da morosidade do Judiciário. O executivo acha ainda que a transformação digital e as proptechs que lhe servem de vetor produzem um “efeito extremamente saudável no mercado”. “Não adianta resistir como um taxista. O mercado imobiliário já está se livrando desse modelo antigo”. Paixão não sabe dizer se o QuintoAndar vai um dia acabar por se tornar predatório no “ecossistema”, mas festeja a presença de startups similares, mas que atuam no mercado “b2b”, ou seja, conectando empresas a profissionais da área. Entre elas, as “insuretechs”, em que o algoritmo se debruça sobre os movimentos de demanda e oferta do mundo das apólices de seguro, oferecendo ao final produtos mais acessíveis e racionais para as imobiliárias.
O Uber, estrela da economia compartilhada, é um dos modelos do QuintoAndar. Assim como a base de prestadores de serviço do Uber – basicamente qualquer pessoa que tenha habilitação para dirigir e um carro minimamente apresentável –, corretores inscritos na plataforma, sem qualquer vínculo empregatício com o QuintoAndar, acompanham a visita de interessados a imóveis. Há ainda demandas para fotógrafos freelancers, já que a propaganda (sempre digital) é boa parte da alma do negócio.
Finalmente, ainda como o Uber, o QuintoAndar quer “escalar”, abrigando em seu marketplace uma base de “centenas de milhares” de imóveis. Só assim, segundo André, é possível “mexer de verdade no mercado”. No Brasil, ele espera trazer a faixa de 20% do acervo de imóveis disponíveis para locação para mais perto dos 50% das capitais desenvolvidas. Hoje ter investidores para bancar a ambição já não é um problema. O último colosso a entrar para o time foi a General Atlantic, que no Brasil também ajudou a inflar o balão do Gympass, da XP Investimentos e da Decolar, entre outras empresas.
Sete anos depois da fundação, o cenário é bem diferente do arranque, lá em 2012, quando o QuintoAndar teve seu cronograma atrasado por conta de dúvidas e dívidas. Os mineiros deixaram Stanford rumo ao Brasil com um espeto da ordem de US$ 200 mil, fora as gastrites
Há hoje no site do QuintoAndar imóveis disponíveis em 25 cidades brasileiras. Estão ali todas as capitais das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, com exceção de Cuiabá, Campo Grande e Vitória. Figuram ainda no portfólio diversos municípios de suas regiões metropolitanas. Por ora, o Nordeste é terra estrangeira. Quem sabe por ser o sertanejo, como dizia Euclides da Cunha, um forte. Não sente dor.
*AS TECHS VÃO ÀS COMPRAS
Se há algum consenso em torno do mercado imobiliário brasileiro, é que ele é tremendamente ineficiente. Até aí morreu o Neves: muitos setores são tremendamente ineficientes por aqui. Mas ele é também pulverizado, o que facilita a vida das “techs” que agora se aventuram nessa raia. Empresas como a novata Loft, o Grupo Zap (dos marketplaces imobiliários Zap e VivaReal) e a KeyCash navegam numa faixa paralela do QuintoAndar – a compra no atacado de imóveis. O objetivo é reformá-los, valorizá-los e revendê-los, diminuindo o prazo médio de negociação, que hoje é estimado em cerca de um ano e três meses. Para a primeira parte do processo, a compra, as techs contam com um argumento bastante persuasivo: pagamento à vista. Por essa razão são chamados de instant buyers. A Loft é um case: já na segunda rodada de investimentos levantou US$ 70 milhões, parte deles proveniente de fundos pesados, como o americano Andreessen Horowitz. Preocupado com o movimento, o Secovi-SP pretende ouvir os planos desses “ibuyers” num seminário, em agosto.
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