Rappi cresce aceleradamente no Brasil e já tem valor de mercado de US$ 1 bilhão. Plataforma digital criada na Colômbia se espelha nas chinesas para tentar resolver várias demandas do usuário, desde fazer as compras do mês no supermercado a desbloquear um patinete. O famoso delivery que vai muito além do cheesebúrguer e do sushi é, pelo jeito, só o começo.
Da Revista PODER de dezembro
Por Paulo Vieira / Fotos Roberto Setton
Ela está só há um ano e meio no Brasil, mas parece muito mais. Alguns minutos, talvez segundos, numa rua ou numa avenida das 11 capitais e outras quatro cidades do interior paulista onde atua já são suficientes para ver passar um punhado de ciclistas e motociclistas com a inconfundível “bag” laranja com aquele estranho bigode branco estilizado no verso. Plataforma digital de delivery fundada na Colômbia, em 2015, a Rappi, ao entrar no Brasil, teve de enfrentar uma concorrência já bem estabelecida. Mas mesmo com iFood (do grupo brasileiro Movile), Uber Eats (do Uber) e Loggi por aqui, a Rappi vem fazendo a rapa. Contou muito no sucesso da empresa no Brasil, que cresce à razão de 30% ao mês segundo Ricardo Bechara, diretor de expansão e hoje principal figura da operação tapuia, os diferentes “verticais” com que a Rappi atua. Pois não haveria novidade nenhuma em entregar ao consumidor – “usuário”, como Bechara prefere – cheesebúrguer ou sushi. Com seus “shoppers”, que fazem ponto nos supermercados, a Rappi faz compras para o usuário, com graus variados de complexidade, no Pão de Açúcar, Extra, Mambo, nas refinadas Casa Santa Luzia e Quitanda e no centro gastronômico Eataly; vai de madrugada às farmácias das redes RaiaDrogasil e outras; pega na última hora em lojas de conveniência as bebidas que faltaram para a festa. Mais ainda, entrega “qualquer coisa” – nome, aliás, de uma das categorias do app. De cigarro a presentes, passando por dinheiro, documentos ou a chave de casa esquecida na mesa do escritório, a Rappi quer fazer esse “corre” pra você. Não só esse corre, aliás. Ou, melhor dizendo, a Rappi não quer fazer só corres. Seguindo a trilha já aberta na Colômbia, soluções de pagamento e mobilidade já podem ser encontradas no app brasileiro. Se não dá para cravar que o delivery era apenas uma cabeça de ponte para a conquista de outros territórios, é de se esperar que esses novos “modais” tragam parte significativa da receita da operação brasileira da empresa. Embora tenha sido marombada no Vale do Silício, num desejado programa da aceleradora Y Combinator, em 2016, é nos apps das empresas chinesas, que tentam reunir num só ambiente todas as soluções para as demandas do usuário, que a Rappi se inspira. É um modelo apropriado para locais em que ter um único aplicativo com múltiplas funções é melhor que contar com uma dezena deles. Esse “superapp” faz sentido em países e continentes mais pobres, como a América Latina, onde grande parte da população opta por smartphones mais baratos, com capacidade reduzida de armazenamento – a cada app baixado, um monte de fotos tem de ser limado. Assim, além do delivery, o app da Rappi já permite executar o RappiPay, que, à maneira dos “pays” da Apple e da Samsung, faz pagamentos pelo celular por meio da leitura de um QR code, além de transferências a partir de um cartão de crédito pré-cadastrado para que amigos possam “meiar” uma conta; e, da mesma maneira como faz a empresa Yellow, o app da Rappi desbloqueia patinetes elétricos – neste caso os da mexicana Grin, que acaba de entrar no Brasil numa associação com a local Ride. “O objetivo da Rappi é resolver num único app os problemas de mobilidade e de tempo das pessoas, como um assistente pessoal. Acho que isso dá certo em cidades de trânsito caótico e onde seus moradores valorizam a hiperconveniência”, disse Bechara a PODER na sede brasileira da Rappi, em São Paulo. A ideia é que as pessoas “salvem tempo”, como diz o executivo, ao terceirizar a ida ao supermercado, por exemplo. Para resolver esses problemas da população é preciso, contudo, de muito metal sonante, e a forma tradicional de financiamento dessas plataformas, à parte as diversas rodadas de investimentos estrangeiros, é jogada nas costas dos “parceiros”, os estabelecimentos visitados pelos entregadores da Rappi. E aqui a lei da selva, melhor dizendo, a lei do mercado, impera. Para ter seus shoppers no Pão de Açúcar, eles têm de ficar de fora do Carrefour (o Mambo, tudo bem – por enquanto). Como disse Bechara, “a Rappi quer os melhores, não todos”; por outro lado, a plataforma chega a oferecer uma espécie de consultoria técnica aos estabelecimentos parceiros, visando um aumento de receita geral do cliente – o que acabaria, claro, por beneficiar também os negócios do delivery. O interesse em crescer e fidelizar os usuários nesse “modal” fez com que o app criasse um serviço de assinatura, outra exclusividade da Rappi: por R$ 19,90 ao mês, o Rappi Prime oferece fretes gratuitos ilimitados para compras acima de R$ 20. Há algumas restrições: as entregas têm de ser feitas num raio de até 4 quilômetros e, caso elas se enquadrem na categoria “qualquer coisa”, há valores a ser acrescidos.
PRECARIZAÇÃO
Como o Uber, Airbnb ou outras empresas símbolo do mundo digital e da nova sociedade compartilhada, a Rappi não põe a mão na massa – nenhum de seus entregadores é seu funcionário. O custo de manutenção de motos, bikes e outros veículos utilizados nas entregas também não diz respeito à companhia. Para prestar serviço para a Rappi, os entregadores precisam ser microempreendedores individuais (MEI). Assim, a companhia se livra de custos trabalhistas e previdenciários e da responsabilidade em caso de acidentes de seus condutores. Pela “bag” que levam às costas os “boys” pagam R$ 60, mas não precisam fazer o desembolso no ato de retirá-la. A propósito, em novembro, um grupo de motoboys paulistanos chegou a ensaiar uma paralisação em protesto contra a redução do valor do frete da Rappi.
Novos tempos esses do chamado trabalho “precarizado”, em que pagamentos de férias e 13º salário e de outros direitos adquiridos no século 20 viraram pó. Caso precisassem assumir esses custos, Uber, Rappi, iFood et caterva certamente não virariam os potentados que hoje são. A Rappi, com efeito, é o mais novo “unicórnio”, como são chamadas as companhias que alcançam valor de mercado de US$ 1 bilhão sem precisar lançar mão de IPO, a atuar no Brasil. Aqui ela segue os passos do Nubank (cofundada, por coincidência, por um colombiano, o atual CEO David Vélez) e à 99Taxis, vendida ao conglomerado chinês Didi Chuxing. Para ganhar seu desejado chifre, a Rappi contou com investidores de peso, como o fundo americano Sequoia e a alemã Delivery Hero, curiosamente uma concorrente da Rappi na Colômbia.
CENTRO ACADÊMICO
O status de unicórnio não teve o condão de tirar a sede da Rappi de seu QG histórico, que ocupa três andares de um prédio entrado em anos no Itaim Bibi, em São Paulo. Seus mesões coletivos e as folhas sulfite com mensagens motivacionais presas à parede exalam um ascetismo comovente, que até poderia evocar as primeiras entrevistas coletivas do presidente eleito em sua casa caso não houvesse tanta gente jovem trabalhando – a idade média dos funcionários é de 26 anos. O escritório da Rappi está mais para sede de centro acadêmico do que de empresa pujante da nova economia. Se há pufes e mesas de sinuca por lá, elas estavam bem longe do campo de visão da reportagem. Deu, contudo, para ver afixada na parede a seguinte frase, traduzida aqui do inglês: “Faça acontecer. Choque todo mundo”. Essa falta de afetação – a crer que não seja afetação a falta dela – pode estar ligada à curtíssima história da empresa no Brasil. Mesmo a frase citada, muito parecida com um mantra que o Facebook renegou em 2014 – “seja rápido e quebre as coisas” –, trai a juventude dos executivos no Brasil, que, contudo, têm rodagem razoável no empreendedorismo digital. O paulistano crescido em Ribeirão Preto Ricardo Bechara, 30 anos, e Bruno Nardon, ex-country manager e agora “advisor” da Rappi, trabalharam juntos na Rocket Internet, fundo de investimentos e incubadora de startups. Pela Rocket o duo criou e consolidou no Brasil os varejos de roupa Kanui e Tricae, que ficaram sob os cuidados de Nardon, e o e-commerce pioneiro de móveis Mobly, tocado por Bechara. Na Rappi brasileira ainda figura em posição de comando o colombiano Juan Zarruk, que, no ano passado, ainda na matriz, liderou a implantação do RappiPay e do serviço Rappi Prime. Bechara, que se formou em administração na Universidade Federal de Viçosa (UFV/MG) e fez pós-graduação em varejo na FIA de São Paulo, leva uma vantagem competitiva em seu negócio: entende de programação. Também domina o léxico básico do neoempreendedorismo. Para ele, por exemplo, liderança é “estabelecer de forma clara onde se quer chegar e distribuir responsabilidade e sentimento de pertencimento ao time”. Como é comum no seu metiê, não revela com precisão nenhum dado relevante, notadamente aqueles que lhe dizem respeito, os do mercado brasileiro. Sintomaticamente, durante a entrevista consultou a assessora de imprensa sobre o que deveria ou não falar. Eis uma seleta do que a Rappi brasileira lhe permite veicular – advertência: não é preciso tirar as crianças da sala: a) depois da Cidade do México e Bogotá, São Paulo é a terceira cidade mais relevante entre os sete países da operação mundial da Rappi – além do Brasil e da Colômbia, México, Argentina, Peru, Chile e Uruguai. Mas a capital paulista é onde o negócio cresce mais rápido; b) pouco menos de um quarto dos 3,6 milhões de usuários no mundo, cerca de 800 mil pessoas, estão no Brasil, onde atuam 16 mil entregadores ativos; c) estabelecimentos parceiros são “milhares”, ainda que possam também ser “dezenas de milhares”. Outro número desembargado é o do “pace” de pedidos da operação global, 11 mil por hora ao fim de 2018. O Brasil é mercado mais do que crítico, por ter a maior população entre os sete países em que a Rappi opera e ostentar uma utilização massiva de smartphones. Além disso, só o negócio de delivery dos restaurantes mensurados pela Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) movimentou R$ 10 bilhões em 2017. Está no escopo da Rappi abocanhar parte dessa receita, claro, mas os vetores de crescimento estão em muitas outras frentes. E eles nem sempre passam pelos estabelecimentos parceiros, que hoje sustentam o negócio. As transações do RappyPay via QR code, por exemplo, podem – devem – vir a ser feitas até nos pontos que hoje não integram o serviço de delivery da Rappi. A ambição da Rappi não é pequena. De certa forma, ela quer se tornar aquela bolacha famosa do pacote, ou, em termos menos metafóricos, o aplicativo indispensável do seu smartphone.
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