O professor de Direito Econômico da USP e ex-conselheiro do Cade, Alessandro Octaviani, acaba de lançar o livro Estatais, um diagnóstico das empresas brasileiras e sua comparação com a política dos países ricos sobre o assunto, e garante que o “família vende tudo” não é a solução para países que queiram crescer e se desenvolver
Por Fábio Dutra / Fotos João Leoci
O garçom entrega um belo copo de suco de tangerina e é recebido em êxtase pelo advogado paulistano Alessandro Octaviani: “É uma explosão de sabores. Quando está na época, eu não dispenso. Sempre penso que um imperador do passado não tinha acesso a isso, fruta brasileira eu gosto muito”, diz ele, animado. O nacionalismo é uma marca de toda a conversa – ele conta que tem uma bandeira do Brasil na sala e teve muitos embates com amigos da esquerda que não entendem essa exaltação –, e pode-se dizer que há sempre um tom desenvolvimentista no ar. A desconfiança aumenta quando ele cita os patriarcas e o cânone brasileiro democraticamente – de José Bonifácio a Darcy Ribeiro, passando por Juscelino Kubitschek e Anísio Teixeira – e repete incessantemente a necessidade de termos um projeto de desenvolvimento planejado. Sobre JK, inclusive, escreveu um livro, mais precisamente sobre as provas do possível assassinato do ex-presidente pela ditadura militar. Recentemente, em abril de 2019, lançou um seriíssimo livro, Estatais, em que, ao lado de Irene Nohara, traça um perfil das empresas brasileiras e da tendência mundial no assunto. Num momento em que o governo se prepara para colocar um grande plano de desestatização no ar, veio muito a calhar. Se o Brasil precisa “tirar as crianças da sala” e aprofundar bastante as discussões acerca do modelo de desenvolvimento nacional, a publicação surge mesmo no momento certo.
“A gente já está diante de algo que provavelmente não é real: nos Estados Unidos, até um tempo atrás, a grande panaceia era perseguir os comunistas, emplacar ditaduras militares mundo afora, aí ficaria tudo bem; mas não aconteceu, e foram mudando de tempos em tempos seu inimigo, dos comunistas para as drogas, árabes islâmicos, e quem sabe o que vem por aí depois? Detentores de reservas de água doce do mundo que não cuidam bem do patrimônio ambiental, talvez?”, ironiza, para em seguida explicar que o mundo é mais complexo. No caso da Previdência, por exemplo, há um fato: algumas carreiras impactam o custo público. Por outro lado, ao abrir mão de enriquecer no setor privado, os grandes profissionais que decidem entrar no serviço público ganham em troca pensões maiores. “É um pensamento estratégico sobre carreiras de Estado – e claro que devem ser definidas quais carreiras são essas e se não existem distorções”, define. E crava: “O Brasil tem muito mais problemas, só a Previdência não vai resolver tudo”.
Sobre a onda liberal e desestatizante, o professor de Direito Econômico da USP e ex-conselheiro do Cade, entre 2011 e 2014 (tempos em que o órgão ganhou força com a edição de uma nova lei de concorrência que aumentou seu poder), é um pouco cético sobre o que chama de “amplo processo de precarização de direitos sociais, trabalhistas previdenciários, esvaziamento da universidade pública e vendas da maioria das estatais”. Octaviani acredita que a conta não fecha porque “o grande capital que uma sociedade pode ter é a capacidade de gerar e gerenciar complexidade e criatividade econômica que está na sua população”, acredita. Ato contínuo, passa a citar um sem-número de grandes brasileiros, de Aleijadinho a Pelé, passando por Machado de Assis e Miguel Nicolelis, para provar sua tese. E, de quebra, impressionou os presentes com sua capacidade de memorização de nomes, datas e acontecimentos e encadeá-los de forma extremamente eloquente, cacoete que parece advir da docência.
A desindustrialização brasileira, assunto diário do noticiário econômico, merece uma análise profunda, com evocações a textos de Charles Wright Mills, grande sociólogo norte-americano dos anos 1950 que estuda os conflitos da elite local. Para ele, essa disputa explica em parte como o Brasil foi paulatinamente desfazendo a estrutura industrial que havia montado a partir da década de 1940. Ao lado disso, a voracidade por ganhos no curto prazo gera uma convergência de interesses entre o ganho do empresário individual e a agenda de desregulamentação, mas há, no médio prazo, a supressão de infraestruturas tecnológicas e científicas que nenhum empresário sozinho vai ser capaz de fazer. Como exemplo, o professor lembra da Embrapa e dos cultivares que a empresa criou, e que hoje garantem o sucesso do agronegócio brasileiro.
Podemos ter calma, porém. Para o professor o jogo não acabou e não dá pra dizer que o mundo passou num cavalo que não montamos e o Brasil estaria condenado ao subdesenvolvimento. A China, lembra ele, até poucas décadas atrás, era o exemplo a não ser seguido: bilhões de habitantes, grau de analfabetismo enorme, linhas abaixo da miséria de todas as marcas ocidentais, guerras, e agora se prepara para passar os Estados Unidos como maior economia do mundo. “Recompuseram a elite, hoje conectada ao povo, e usaram a densidade demográfica a favor da criatividade e complexidade econômica… Qualquer país que consiga equacionar essas questões vai ter o futuro brilhante pela frente, e o Brasil é o único país planetário da Terra, diria Darcy Ribeiro, e isso não é pouca coisa, essa mistura é nossa”, atesta, com dose controlada de ufanismo.
Bem brasileiro, claro, pede logo um picadinho, tradicional no cardápio do La Tambouille, em São Paulo. Tem dificuldade para conseguir comer tamanho o interesse que tem em explicar todas as formas como o Brasil pode sair da recessão. E passa por boa política, repactuações. Superar a polarização também é importante, e ele sugere nomes à esquerda e à direita que podem fazer acontecer – sobram elogios para Flávio Dino, Manuela d’Ávila e Ciro Gomes, de um lado, e Antônio Carlos Magalhães Neto, de outro, como figuras que podem conduzir tais conversas e fazer o Brasil entrar no século 21: “Os países discutindo 5G e aqui essa polarização que definitivamente não dá conta da complexidade do mundo”, insiste. A ausência de um nome petista demonstra a divergência com o partido e a certa altura ele cutuca: “Lula Livre pra quê do ponto de vista político? Para colocar o Henrique Meirelles na Fazenda?”.
Sobre a venda das estatais, Octaviani provoca: “Paulo Guedes pretende arrecadar cerca de R$ 80 bilhões com a venda das estatais, exatamente o lucro delas em 2018. Eu topo, mas só se a China, a Alemanha ou os EUA toparem nos vender alguma das estatais gigantescas que têm pelo resultado do último ano”. Ele explica que é falsa a noção de que o Brasil tem muitas estatais – são poucas centenas contrastadas com milhares norte-americanas, por exemplo. E vários países reestatizaram diversas das empresas vendidas nos processos liberalizantes dos anos 1990 pós-consenso de Washington. Na Alemanha, é notório que os serviços públicos municipais, saneamento, energia elétrica e afins foram quase todos recuperados pelo Estado, já que se percebeu que a lógica privada não funciona para esses serviços básicos. O diagnóstico do livro é simples: há que se investir nas estatais lucrativas e/ou que sejam estratégicas para um projeto de desenvolvimento bem definido. E a impressionante pesquisa com dados profundos e bem esmiuçados pelos escritores sobre a situação das estatais brasileiras e mundo afora para haver comparativo é uma grande contribuição para um debate duro que vem pela frente e merece maturidade e argumentos técnicos para ser enfrentado.
De aparência bem mais jovem do que seus 44 anos, ele recusa a política partidária para si e apoia candidaturas avulsas para atrair boas figuras para a política que não querem fazer parte do jogo de partidos e os beija-mãos de grandes empresários e políticos por financiamento de campanha. Para ele, viver é político: “Ser capaz de ler o país ou tratar com dignidade os funcionários do seu escritório, tudo isso são atos políticos, mas não me dou bem com as burocracias partidárias – nem com sua subordinação aos financiadores de campanha”, resume, e aproveita para lamentar que a reforma política não foi feita nem pelos tucanos nem pelos petistas quando puderam, o que é uma lástima para o país. Mas ele segue otimista que dá para fazer: “A desesperança em uma disputa já é um resultado alcançado pelo seu adversário; isso não significa ser irrealista, e sim não tomar a postura de que não há mais saída”, ensina. E lembra que “Churchill era um bêbado sarrista, intratável, estava derrotado e entregue a uma depressão etílica em seu sítio quando foi buscado para liderar a resistência à maior máquina de guerra criada até então, o Exército alemão de Adolf Hitler. Ele era um líder fora do comum e salvou o mundo do nazismo. Podemos adulterar nossa situação histórica, essa é a lição que se tira”. Alessandro Octaviani é filho de um imigrante galego que largou a escola nos primeiros anos e de uma brasileira que estudou até a oitava série. Seu extenso currículo acadêmico e profissional e vasto léxico de dar inveja a filólogos da Academia Brasileira de Letras parecem corroborar tal visão otimista de que somos senhores de nosso destino.
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