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“Esta é a novidade do pós-vírus: responder juntos à falta de pensamento”, quem disse isso foi Dom Lorenzo Leuzzi, bispo e médico italiano que, diante de tantas incertezas lançadas pela pandemia do novo coronavírus, escreveu um manifesto valorizando a experiência com a intenção de estimular a sociedade a recomeçar de uma nova maneira. O título de seu novo livro, “O Mundo Sofre por Falta de Pensamento”, é frase famosa do papa Paulo VI (1897-1978) e algo que o filósofo francês Gilles Deleuze, morto há 25 anos, concordaria.

Suze Piza, professora da Universidade Federal do ABC e doutora em filosofia pela Unicamp, explica que para Deleuze “pensar não é natural porque o pensamento não é uma passividade. O processo de pensamento exige que algo externo, uma força avassaladora, te afete, atravesse ou violente, que um incômodo aconteça”. E que baita incômodo tem sido a pandemia, não? Aliás, a sindemia – neologismo que combina ‘sinergia’ com ‘pandemia’ criado pelo antropólogo médico americano Merrill Singer, nos anos 1990, para explicar os danos sociais maiores que uma epidemia causa. “Já passamos do ponto de estarmos vivendo apenas uma pandemia. Estamos enfrentando questões ambientais e sociais. São tantas determinações que vira algo sindêmico”, diz a filósofa.

Em entrevista ao Glamurama, Suze fala sobre o pensar não-natural, o pensamento pós-vírus e ainda compartilha o que anda ocupando seus pensamentos nos últimos tempos. Confira a seguir.

“As pessoas raciocinam muito, mas pensam pouquíssimo. Pensar não é só raciocinar”

Suze Piza

“Perdemos a nossa casa. Podemos trabalhar de vários lugares, mas o que nos constitui enquanto seres humanos é o nosso cantinho”

Suze Piza
  • A pandemia já se mostrou ser essa tal força avassaladora capaz de criar o processo de pensamento que Deleuze falava. Acredita que sairemos disso pensando mais?

  • A pandemia seria, segundo Deleuze, um grande intercessor, pois possibilita esse processo que poderia disparar um pensar potente. Ela cumpre essa tarefa. O problema é que não é só isso que está acontecendo. Então, acredito que não podemos usar só isso como premissa. Se fosse só essa premissa, a resposta para a sua pergunta seria sim, diante de um contexto tão avassalador, a partir de agora, nós poderíamos começar a pensar inclusive em um nível mais elevado, com conteúdo ético. No entanto, junto com esses atravessamentos todos a gente também tem muitos processos sociais de mobilidade, confusão mental, falência da palavra e pós-verdade. Tudo isso vem junto. Então, me parece que, quantitativamente, neste momento, a gente tem mais elementos contra a possibilidade de pensamento do que a favor, infelizmente.

  • “O mundo sofre por falta de pensamento”, esta frase do papa Paulo VI é tão significativa que mesmo 43 anos depois de sua morte ainda é repetida. Você concorda com ela?

  • Pensamos muito pouco, não tenho dúvidas. Fizemos uma escolha histórica, enquanto espécie, por uma racionalidade muito simplista e assim que as sociedades complexas foram formadas, optamos não deliberadamente por um raciocínio que funciona em torno da eficiência, da eficácia, do acumulo e da velocidade. O resultado disso é que as pessoas raciocinam muito, mas pensam pouquíssimo, e essa é justamente a provocação de Deleuze. Pensar não é só raciocinar, porque o processo da construção do pensamento implica ter uma relação saudável com o tempo, pensar a longo prazo, avaliar as múltiplas dimensões, uma coisa que a racionalidade que a gente adota não tem muito, caso contrário não estaríamos destruindo o planeta, por exemplo. Concordo com a frase do Paulo VI, o prejuízo pela falta do pensamento é bastante evidente. Estamos nos matando e matando outros seres vivos também.

  • Muitos estudiosos já falam em “novo normal” e usam expressões como “depois do mundo de antes”. Outro são até mais diretos e afirmam que “nada será como antes” e a própria OMS já declarou que “o mundo não vai recuperar a normalidade em um futuro previsível”. Do ponto de vista filosófico, quais são as consequências não só da crise sanitária mas também das restrições sociais para a nossa sociedade?

  • Filósofo gosta de questionar a pergunta. Qual normalidade estamos querendo voltar? Essa é a grande inquietação. Que não voltaremos a viver como estávamos vivendo antes da Covid-19, isso é óbvio. Afinal, toda vez que temos uma pandemia, como já tivemos tantas outras na história da humanidade, as coisas mudam. Agora, chamar aquilo que a gente estava vivendo de normalidade, ainda mais em um país como o nosso, é muito maluco. Esse é o ponto. Considerando que vamos conseguir erradicar o vírus, como já fizemos com várias outras doenças, precisamos questionar se é a pandemia que faz com que tudo mude. Diria que o grande problema não foi, especificamente, a doença, mas nós termos criado outras formas de relação que são mediadas apenas por tecnologia e por um tipo específico. Não sou contra a mediação tecnológica, nós fazemos isso desde que deixamos de ser macacos, tecnologia é a nossa cara. Mas, hoje, nós temos pouquíssimos recursos e eles são muito parecidos uns com os outros. De maneira geral, planetária até, usamos uma mesma formatação de acesso. Esse desgaste e cansaço desse mesmo tipo de relação já está trazendo impactos na saúde mental da nossa sociedade. Transtornos, ansiedade e outras patologias que vêm por aí me preocupam. Me questiono se quando “a vida voltar” vamos conseguir usar essas ferramentas na dose certa. Estou confiante de que vamos erradicar a pandemia, mas tenho sentido que talvez a gente mude coisas que estavam relativamente boas sem a necessidade de mudar.

  • Depois de tanto tempo de trabalho remoto, muitas empresas já nem consideram mais voltar ao sistema presencial. Qual o seu pensamento sobre isso?

  • Eles dizem que não faz sentido voltar o presencial, né? Dentro da racionalidade do capital, realmente não faz. Só que se formos pensar, o que não faz sentido é perdermos a nossa casa. A minha, por exemplo, mudou completamente de março de 2020 até hoje. Meu marido também é professor e tenho uma filha de 12 anos que estava estudando em casa até pouco tempo atrás. Nós perdemos a nossa casa. Trabalhar, na verdade, podemos de vários lugares, mas o que nos mantém como seres humanos e faz com que a gente ainda consiga se constituir como pessoas saudáveis e com o mínimo de estabilidade é o nosso cantinho. Sua cama não pode ser o lugar da reunião, sua mãe não deve acompanhar sua reunião de trabalho, seu companheiro não tem que te ver se manifestando com uma colega, porque isso não é da alçada deles. Além disso, nós somos bichos coletivos. Com a educação, é pior ainda. Se estamos juntos, dou uma aula. Se estamos no digital, dou uma palestra, faço uma exposição. O processo educativo precisa da troca de olhares, a criança aprende coisas na sala quando o colega derruba algo no chão. Na sala de aula, tudo funciona para o processo educativo. Fico chocada de ver como as pessoas acham que tudo bem ter um jovem estudando no quarto. Isso vai criar psicopatas, não precisa ser muito inteligente para chegar nessa conclusão.

  • Quais têm sido os seus pensamentos nos últimos tempos?

  • As discussões sobre produzir pensamento me ocupam bastante, já faz muito tempo que estudo e pesquiso sobre o tema. Também tenho me debruçado sobre o quanto o racismo funciona para a operação da pandemia e a maneira como a sociedade brasileira se articula em torno desse elemento de muitas formas e de múltiplos formatos. Isso é uma questão que tem me incomodado bastante, além de mais umas trezentas milhões de coisas, porque sou bem atormentada.

  • Qual pensador deveríamos todos ler? Por quê?

  • Tem bastante literatura bacana para ler no mundo. Hoje, temos o privilégio de ter muita leitura que vem de outras perspectivas, porque passamos muito tempo lendo só os europeus. Por isso, vou fazer duas indicações, ligadas à pauta racial que é uma questão que me atravessa muito. Um do filósofo africano Achille Mbembe que se chama “Crítica da Razão Negra”. Ele é um texto de fácil leitura, apesar de ser filosófico e teórico, muito importante para fazer uma avaliação e uma discussão crítica dos fundamentos de vários discursos racistas que a gente tem na modernidade. E o segundo é um livro novo de um amigo, Jessé Souza, também sobre a questão racional, mas já mais relacionado ao Brasil, chama-se “Como o Racismo Criou o Brasil”.

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