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Frequentemente, me pego pensando: O que significa ser a gente por inteiro? Essa pergunta ganha contornos ainda mais complexos quando me deparo com as limitações e as possibilidades das línguas que falamos — e, consequentemente, das vidas que vivemos através delas. O enigma de sermos inteiros numa língua e fragmentados em outras é uma reflexão que às vezes surge aqui dentro de mim.

Ser inteiro, ao meu ver, é uma busca constante por autenticidade, por uma expressão quase que sem filtros de quem somos. Mas, essa totalidade parece se esquivar quando tentamos nos traduzir em idiomas que não nos viram crescer. A minha língua materna, berço das minhas primeiras palavras e pensamentos, é o meu lugar de conforto. Nela, cada coisinha carrega um universo de significados e memórias. É nesse terreno conhecido que me sinto inteira, sem partes faltando.

Sei que já comentei aqui sobre o filme “Past Lives”, mas vou precisar citá-lo novamente porque tem uma cena muito marcante sobre isso, talvez a mais marcante do filme inteiro. Em um determinado momento, um dos personagens percebe que nunca poderá conhecer sua esposa por inteiro, porque ela sonha em uma língua que ele não fala. Essa cena ressoa com uma verdade que vivencio: a sensação de que, por mais que tentemos compartilhar nossos mundos, sempre haverá lugares inacessíveis àqueles que não falam nosso idioma. Ou seja, minhas amigas aqui de Paris, por mais próximas que estejam, e por mais que sejamos fluentes no inglês, parece que elas nunca vão conhecer a versão 100% de mim, simplesmente porque as palavras que moldam essa totalidade são de uma língua que elas não compreendem.

Decidi escrever esse texto também porque vivi uma situação recentemente que me fez pensar ainda mais sobre isso. Estes dias, estava sentada numa praça aqui em Paris, em um dia lindo de sol. Não sei se é impressão minha, mas aqui todo mundo parece mais feliz e aberto quando o sol aparece, até porque às vezes ele passa semanas sem aparecer. Então, depois de alguns minutos, uma senhorinha pediu para compartilhar o banco em que eu e uma amiga conversávamos. Antes de ir embora, ela começou uma conversa conosco, falando algumas das coisas mais bonitas que já escutei. Ela falou sobre paixão, sobre o amor por si e pelo próximo e sobre o apreço que tem pela cidade.

Aquele pequeno momento me fez refletir sobre o poder de existir em diferentes lugares através das línguas que falamos. É quase um “falo o idioma, logo, existo”. Se eu não falasse francês, teria sido privada desse momento em toda a sua grandeza. Talvez tivesse entendido uma coisa ou outra através do contexto, mas não da forma que entendo por compreender a língua.

Então é muito doido pensar nessa multiplicidade de existências, porque ela vem acompanhada de uma melancolia: será que a gente é capaz de capturar e transmitir a profundidade de certas experiências na mesma medida em outro idioma? Porque não consigo me imaginar, por exemplo, escrevendo um texto como este, com a mesma profundidade, em uma língua que não seja a minha.

Essa é a complexidade de se falar mais de uma língua: vivemos vidas paralelas, às vezes convergentes, mas frequentemente divergentes, dependendo da língua em que nos expressamos. Somos inteiros e, ao mesmo tempo, divididos; somos autênticos e, simultaneamente, adaptáveis. Mas, não posso deixar de dizer que esse é um dilema de uma posição extremamente privilegiada de poder aprender novas línguas e existir em diferentes lugares. É um dilema que nos leva a valorizar ainda mais os momentos de conexão verdadeira e a buscar incessantemente por maneiras de compartilhar nossa essência, independentemente das barreiras linguísticas. Mesmo que eu sinta que minhas amigas de outros países talvez não me conheçam na minha totalidade, sinto que elas conhecem muito de mim. Sinto que nossa linguagem corporal fala, nossas escolhas falam, nossos gestos falam e por aí vai.

Ser inteiro certamente vai muito além do idioma. Talvez o segredo esteja em abraçar essa multiplicidade de seres que habitam em nós, reconhecendo que cada faceta do nosso ser nos oferece uma visão única do mundo e de nós mesmos. Definitivamente podemos aprender a ser inteiros não apenas na língua que nos viu nascer, mas em todas aquelas que nos permitem ser e existir. Então, acho que posso dizer que “quero, logo, existo”.

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