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Dizem que somos escolhidos pelos assuntos pelos quais nos apaixonamos. Eu tentei resistir, mas foi inevitável fazer deste espaço de troca um lugar para falarmos sobre o impacto que as transformações nas relações ser humano-máquina tem proporcionado para a cultura, o comportamento, o consumo e as comunicações nos tempos em que vivemos. Afinal, tais transformações estão manifestadas de forma cada vez mais complexas e latentes na nossa vida social e psicológica.

Muitos de nós sentimos isso tão forte como um soco nesses últimos dois anos. A quantidade de conteúdo consumidos, a insustentável agenda de reuniões por vídeo chamadas entre outras interações mediadas por telas, fatigaram de vez nossas habilidades sociais, até mesmo nossa tolerância para qualquer tipo de interação virtual. Mas este não será mais um artigo sobre como a pandemia mudou nossa forma de viver. Quero debater com vocês uma problemática que está em curso de agravamento há muito tempo.

Há poucos meses o Instagram anunciou mudanças bem significativas no foco da companhia, impactando a navegação, a exibição e a criação dos conteúdos na plataforma. No centro dessas mudanças estão os Creators, usuários superdedicados à produção de conteúdo, que terão mais destaque e apoio da plataforma ao seu trabalho. Segundo o presidente da empresa Adam Mosseri “isso tem relação com o deslocamento de poder das instituições para os indivíduos na indústria”. Entretanto, esse deslocamento de poder mascara a enorme desproporção da exploração digital que está levando Creators a profunda ansiedade e mal-estar, e é apenas um retrato do que também já está acontecendo com muitos de nós.

Nesse playground onde as regras do jogo ninguém sabe muito bem quais são, impera a uma certa estética do desempenho que promove uma perversa ideia da meritocracia, em que, como escreve Fabiana Moraes em seu artigo para o ‘The Intercept’, “o sucesso através das redes parece ser (e é) um viável meio de mobilidade social, uma chance de sair de uma condição que nossa concentração de renda e salários baixos, nosso desinvestimento em saúde e educação produzem e reproduzem historicamente”. Não à toa essa é a profissão dos sonhos para muitos jovens, mas esse lugar ao sol é realmente acessível a todos?

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Ainda que mudemos de perspectiva para uma audiência desinteressada, uma vez que a vida passou a ser pautada pela transmissão, não postar é como não existir. Não é só o algoritmo que penaliza o silêncio, afinal, você acharia normal o seu contatinho novo não ter rede social? Ninguém quer ser irrelevante digitalmente e é isso o que mostra o documentário People’s Republic of Desire. Na China, onde as lives são uma instituição muito mais consolidada, com celebridades e dinâmicas de monetização que movem bilhões com campeonatos por popularidade, vimos que esse mercado formou consumidores que sofrem de uma solidão profunda por relevância digital. Para o filósofo sul-coreano Byung Chul-Han isso se daria, entre outras razões, pelo fato do digital carecer de uma alma unificante, ainda que as redes sejam povoadas por comunidades construídas em torno de uma pauta em comum. Ao serem mediadas por imagens, as relações se mercantilizam e esse processo está associado às mesmas mediações que podemos compreender o consumo. A partir de todo o seu potencial estético como imagem, triunfa um modo de vida que irá consequentemente atender às dimensões lógicas de mercado. Somos no fim apenas um aglomerado de seres desejantes singularizados que compartilham de objetos de consumo similares.

Os sintomas que hoje se manifestam de forma mais evidente em Creators são sintomas de uma sociedade de desempenho em que prevalece a iniciativa e a motivação, no qual o corpo é objeto de otimização estética e o poder ilimitado é o seu mantra. Os termos sexy, fitness e até mesmo a dor são recursos econômicos que devem ser multiplicados, comercializados e explorados. Fato é que a contínua e incessante elevação do desempenho levará a um infarto da alma e o forcejar aos limites da performance acarreta um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando. Por isso, a importância da reflexão crítica sobre o que estamos tomando como parâmetro de uso e de influência nas nossas redes.

Victor Brandão é bacharel em comunicação social e especialista em Cultura Material e Consumo na perspectiva semiopsicanalítica pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Trabalha com pesquisas de comportamento e em estratégias de comunicação, marcas e negócios. oi@vicbrandao.com / @brandao.vic / linkedin.com/in/vicbrandao

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