Em 2020, no momento em que as restrições para conter o avanço da Covid-19 ficaram mais rígidas, a surfista carioca Maya Gabeira, de 35 anos, se isolou em sua casa em Nazaré, cidade portuguesa conhecida por suas ondas gigantes, e começou a pensar em mil e uma possibilidades para o futuro. Em um quadro branco, colou post-its com algumas ideias. Queria escrever livros e criar um protetor solar que não agredisse tanto o meio ambiente. Conseguiu. Agora em novembro coloca no mercado a Blue Aya, marca de bloqueadores feitos com algas encontradas no litoral brasileiro e 100% sem plástico.
Já sua primeira obra literária, “Maya and the Beast”, foi publicada apenas nos Estados Unidos, mas deve ganhar uma versão em português no início do ano que vem. Ela ainda esteve presente no Festival do Rio com “Maya and the Wave”, documentário dirigido por Stephanie Johnes que expõe de forma intimista os altos e baixos da atleta, a primeira mulher a surfar a maior onda do mundo.
“Nunca fujo de quem eu sou. Tenho minha essência e sei o que faz sentido para mim. No passado, fui garota-propaganda de uma marca de protetor solar, o que é óbvio já que ganho a vida surfando. Mas meu desejo era produzir algo mais limpo. Minha mãe, a estilista Yamê Reis, é especialista em moda sustentável, porém uma grife de roupas não estava nos meus planos. Peguei sua vocação eco-friendly e levei para outro ramo”, explica Maya, que foi “agenciada” por ela em outras fases da carreira.
Yamê fala sobre como é trabalhar com a filha: “Criamos uma relação forte de confiança e respeito. Gostamos de trabalhar unidas em projetos que dialoguem com o mundo de hoje”, diz ela. “Maya tem uma dedicação extrema a tudo que faz, sempre busca o melhor e tem um espírito crítico muito forte. Desde pequena é assim; e eu tinha certeza de que ela seria muito boa em qualquer coisa que fizesse. Ela sempre quis ter um lugar especial e isso a levou a viver intensamente e a correr muitos riscos. Mas a grandiosidade do sonho veio aos poucos, por meio de um caminho de glórias e de derrotas também.”
“Cada onda é diferente. Não acho que peguei a melhor onda da vida. E é justamente isso que me motiva todo dia a sair da cama e vir treinar. O surfe me transformou”
A coerência na vida – e nas escolhas profissionais – é creditada aos genes do pai, o jornalista, escritor e ex-deputado federal Fernando Gabeira. “Sou uma pessoa coerente e acredito que herdei isso de papai”, observa a surfista. Gabeira rebate: “O caráter é algo dela mesmo, fruto das dificuldades, quedas e vitórias de sua trajetória”.
Maya afirma que o pai, de maneira involuntária, a inspirou a escrever os três livros, dois ainda inéditos. “Mas sou amadora”, avisa a carioca. “Li e gostei, talvez não tenha dado mais do que uma sugestão”, pontua o pai, orgulhoso. Apesar de se tratar de uma ficção, “Maya and the Beast” flerta com a história da atleta.
“Ainda não é uma biografia. A linguagem foi simplificada para ser facilmente absorvida pelo público-alvo. É uma obra infantil que ganhará uma sequência em 2023: “Maya in the Sea”, que terá como mensagem central a preservação dos oceanos. A terceira publicação, “Beyond the Board”, será um retrato, mesmo que juvenil, da minha vida”, entrega ela, frisando que uma autobiografia não é uma urgência, ainda que não faltem episódios marcantes.
“Têm que me engolir”
Maya começou a surfar aos 14 anos nas águas do Arpoador, no Rio de Janeiro, influenciada por um antigo namorado e pelos colegas de escola. Aos 20, tornou-se profissional. “Mas percebi minha vocação para ser atleta na infância, quando dançava jazz e sapateado. Era absurdamente dedicada. O surfe, no entanto, despertou uma paixão em mim. Esse esporte, na verdade, é um estilo de vida. E o mais interessante é que cada onda é diferente. Não acho que peguei a melhor onda da vida. E é justamente isso que me motiva todo dia a sair da cama e vir treinar. O surfe me transformou.”
Obstinada e intensa, a carioca quebrou o primeiro recorde mundial em 2018, ao atingir a marca de 68 pés (20,72 metros), a maior onda já surfada por uma mulher. Em 2020, antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar epidemia, ela foi além ao bater 73,5 pés (22,4 metros), ambos em Nazaré, onde vive desde 2017.
“O primeiro recorde não foi homologado pelo Guinness World Records e eu precisei travar uma briga para registrar o feito. Foi mais um episódio de machismo que tive de enfrentar na minha caminhada”, recorda a atleta, que ouviu de muitos colegas que seu “ponto forte” era a aparência.
“No início, eles olhavam para mim e, por ser bonita, isso virava o foco, uma possibilidade de sucesso. Não conseguiam enxergar outra coisa. Hoje em dia, os homens têm que me engolir. Mas, ao longo da carreira, não perderam uma chance sequer de deixar bem claro que eu não era bem aceita.”
“No início, os homens olhavam para mim e, por ser bonita, isso virava o foco. Hoje em dia, os homens têm que me engolir”
Para fugir de qualquer tipo de investida e assédio, Maya acabou adotando uma postura mais “bruta e fechada”. “Sou privada e tenho até uma certa dureza e frieza perante meus companheiros de profissão. Não saio à noite e não socializo no meu meio. Também sou menos feminina. Acho que foi um jeito de me proteger de possíveis assediadores. Graças a Deus, consegui passar ilesa.”
Mas não se livrou de ataques por ser brasileira nos Estados Unidos. “Fui vítima de xenofobia por querer me destacar na América. E preconceito é algo que deixa cicatrizes profundas. Agradeço por não ter desistido e poder ser uma porta-voz para debater assuntos tão importantes.”
Transtorno de ansiedade
A pressão por resultados, os ataques machistas e a falta de acolhimento na América acabaram desencadeando problemas na saúde mental da atleta. Aos 30 anos, foi diagnosticada com transtorno de ansiedade grave.
“Minha ansiedade se manifestava por meio de doenças, principalmente com vômitos intensos, a ponto de ser hospitalizada. Tinha febres altíssimas. Tudo muito real, muito físico. E foi piorando. Até que não voltei ao normal em uma dessas crises. Tive tontura, não pensava com clareza e agilidade… Parei a vida para investigar o que estava acontecendo. A gente procurou qualquer doença no corpo para culpar até chegar à conclusão que meu caso era emocional.”
“Minha ansiedade se manifestava por meio de doenças físicas, a ponto de ser hospitalizada. Procurei qualquer doença no corpo para culpar até chegar à conclusão que meu caso era emocional”
Apesar de ter a consciência de que vida de atleta não é para sempre, Maya, que tem duas cachorras e duas cabras em casa, não pensa em se aposentar tão cedo. Não cogitou abandonar a prancha nem mesmo depois de cair de uma onda gigante em Nazaré, em 2013. Na época, ficou internada na UTI e precisou de cirurgias na coluna para voltar a ser uma atleta de alta performance.
“Lembro com muito carinho dessa primeira vinda à Nazaré. Foi um momento mágico de descoberta. Foi emocionante saber que a maior onda do mundo não estava nos Estados Unidos, estava em Portugal, e eu podia falar a minha língua. Houve o acidente, sim, mas evoluí no conceito de segurança que me fez estar no lugar que ocupo agora. Depois desse trauma, vieram os dois recordes mundiais.”
*Reportagem de Gilberto Júnior (leia a íntegra na nova edição da revista J.P, já nas bancas)
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