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Zé Celso posa para a revista PODER||Créditos: André Brandão

 

Zé Celso posa para a revista PODER||Créditos: André Brandão
Zé Celso posa para a revista PODER||Créditos: André Brandão/Revista PODER

José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, topa abandonar a nudez e se vestir elegantemente para falar de cultura, poder e caretice

Por Fábio Dutra
Fotos André Brandão
Styling Luna Nigro 

Respeitável público, aqui temos José Celso Martinez Corrêa, nu, no centro do palco. “Hoje não quero ficar pelado, já fiquei muito sem roupa na vida. E tá frio!”, disse ele, para risos generalizados, enquanto provava os costumes bem cortados que vestiria para esta sessão de fotos. Zé Celso, como é mais conhecido, tornou-se célebre com seu grupo de teatro, o Oficina, famoso por suas peças para lá de modernas que abrem mão do chamado palco italiano, o tradicional, para valer-se da interação entre plateia e atores em narrativas não necessariamente lineares e repletas de influências da dança e de rituais religiosos, principalmente indígenas e africanos. A companhia, que nasceu amadora há 56 anos quando ele ainda era estudante na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (o jurista Cândido Rangel Dinamarco, notável processualista, é seu contemporâneo; o vice-presidente Michel Temer, seu calouro), ficou famosa pelas montagens de “Roda Viva” – peça escrita por Chico Buarque que foi invadida pelo Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, em 1968, um marco da intolerância que marcou aqueles tempos – e de “O Rei da Vela”, peça de Oswald de Andrade, sua maior influência intelectual. Mas continua extremamente atual, capaz de chocar e atrair seguidores como se novidade ainda fosse. A burguesia, afirma o diretor, já não frequenta as performances como outrora, mas todos os fins de semana os jovens lotam o espaço que ele mantém no Bixiga, no centro de São Paulo.

O Teatro Oficina, projetado pela grande amiga do dramaturgo Lina Bo Bardi para abrigar a companhia, é uma passarela em descida entre duas arquibancadas de três andares que lembram andaimes. Uma delas, à esquerda de quem entra, tem a metade do comprimento de sua análoga, terminando em um pequeno palco baixo, da mesma largura, que abriga a banda – a partir daí o corredor se torna plano. Acima do lugar em que os músicos se instalam estão grandes janelas de onde é possível ver a cidade acontecendo – com um fluxo enorme de barulhentos automóveis, por sinal, já que o teatro fica na beira dos viadutos que levam à avenida Radial Leste, uma das mais movimentadas da Pauliceia. Por entre as paredes e as janelas desse palco há uma árvore cesalpina, um pau-brasil plantado por Lina, que a obra abraçou ternamente tornando-a símbolo do Oficina (atualmente, Zé Celso anda furioso porque perfurações no terreno ao lado teriam atingido suas raízes). No lado oposto da entrada, pequenas arcadas em tijolinhos aparentes, dessas de passar agachado, como se fossem pequenas passagens de antigas prisões medievais, dão para o estacionamento que cerca o espaço e pertence a seu famoso vizinho, Silvio Santos. Até pouco tempo atrás, um bar era montado ali e os espectadores entravam para a peça pelas arcadas, mas a relação com o Grupo SS piorou e esse uso foi vetado. Lá dentro não há muita proibição: o público senta onde quiser.

“O Silvio é um homem das artes, do vídeo. Contracenamos há 34 anos nessa história do terreno. Houve um tempo em que queriam fazer um shopping center por aqui, mas hoje não é mais permitido pelas atuais normas de zoneamento urbano. Ele tem a grandeza de perceber a importância da cultura e já topou trocar o terreno por um perto do SBT a ser doado pelo governo federal, mas o executivo que cuida dos investimentos imobiliários do conglomerado é casca grossa”, explica, gesticulando incessantemente como que para ilustrar o que diz, num movimento que lembra bastante (o cineasta baiano) Glauber Rocha, a quem fez referência algumas vezes durante nossa conversa. Mas SS não é o dono da caneta? Ele não morde a isca, recusando-se a acusar o homem do Baú: “Tenho certeza que ele resolverá essa questão da melhor maneira para a cultura brasileira”, desconversa.

Glauber dizia que “nosso povo é negro, é índio, tem mais influência da macumba que da ópera”. Caetano Veloso, em seu famoso destempero durante o Festival Internacional da Canção de 1968, quando foi vaiado durante a apresentação de “É Proibido Proibir” por fazer uso de guitarras elétricas – o que seria um símbolo imperialista para o público da esquerda universitária presente –, gritava “é essa a juventude que quer tomar o poder?”, arrematando que “vocês não entenderam nada. Nada!”. O que eles têm a ver com Zé Celso? Todos são filhos do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, uma ode ao Brasil que se assume brasileiro e bebe de sua própria diversidade; busca a rica cultura dos povos ditos primitivos que formam seu povo, mas não fecha os olhos para o que vem do estrangeiro, apenas tomando o cuidado de digerir o importado e amalgamá-lo ao que temos, sem aceitações ou negações cegas de qualquer informação. Cinema novo, tropicália e Teatro Oficina são alguns dos expoentes dessa maneira de ver a nação. “O manifesto é do ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha, devorado pelos índios caetés – o Lula, aliás, é da cidade de Caetés, o que é prenhe de significado –, ou seja, ele não foi só ao futuro, ele voltou ao passado pré-português, resgatando algo que nos era negado. Ele ali deixa de ser moderno, como foi durante a Semana de Arte Moderna de 1922, para se transformar no primeiro pós-moderno”, divaga, empolgado, o diretor.

Apesar de não parecer inteiramente à vontade nas roupas formais que está vestindo, Zé Celso conta que usou muito terno na juventude, feitos sob medida, como os que seu pai usava em sua Araraquara natal. Hoje não mais: tem apenas um, que raramente enverga. “A Lina adorava me ver de terno. Por isso, usei nos eventos de comemoração de seu centenário ano passado”, conta. Não usa, mas deveria: somado aos óculos Ray-Ban aviador que não pode tirar por conta de uma recente cirurgia de catarata, Zé Celso lembra um mafioso de filme americano, o que talvez até ajudaria na negociação com os vizinhos. Mas apesar de travestido em uma figura sisuda, o diretor segue falando, como um menino deslumbrado, de vanguardas artísticas e políticas. Lina é sempre lembrada para retomar as ideias de direito à cidade com o homem e a cultura no centro. “Eu já dirigi, mas hoje detesto automóveis. É impressionante como a especulação imobiliária está matando São Paulo”, reclama. Contudo, não há lugar para pessimismo em suas ideias. Para ele, a esquerda tem um momento-chave para transformar o país em meio ao atual caos político. Zé Celso tira do bolso um papel em que transcreveu a lápis o artigo 153 da Constituição Federal, inciso VII, que diz que é dever da União instituir imposto sobre grandes fortunas. “Qualquer fortuna no sistema capitalista é fruto de alguma corrupção, em algum momento alguém se corrompeu, ainda em que em gerações passadas. Por isso, é importante que se doe de volta à sociedade, à cultura, como bem fazem figuras como Milú Villela (herdeira do Itaú) e os irmãos Moreira Salles (herdeiros do Unibanco). É preciso dar, não há nada melhor que dar”, diz, fazendo leve trocadilho com cara marota, mas sem perder o raciocínio: “Tenho uma pensão por conta da anistia porque fui vítima de tortura. É o que me dá alguma segurança financeira. Mas vivo distribuindo esse dinheiro quando vejo pessoas a minha volta com dificuldades, não há nada mais prazeroso. Os ricos têm de parar com essa retenção toda. Um banco que tem 8 bilhões de lucro tem de devolver pelo menos 5 para a sociedade. Doem para a cultura, doem para o Oficina”, defende ele, que sempre dá um jeito de pedir recursos para a companhia durante a conversa, mesmo fora de contexto.

Vamos entrando nos camarins e o papo não se interrompe: ele não parece ter tempo para posar em meio a tanto que tem a dizer – sempre pedindo para a equipe de vídeo filmá-lo. “Se não estiver gravando eu não falo, tem que registrar isso”, repete a todo momento. Ele explica que é adepto do sistema Stanislavski, russo, de atuação (de forma simplista: quando os atores de fato “entram” no personagem, assumindo sua personalidade e não fazendo uso de memórias afetivas para simular emoções), mas que, a partir de Oswald, chegou ao teatro de entidades, xamânico. “É quase uma macumba o que fazemos, incorporamos os personagens”, jura. Fotos feitas, erudição vomitada, loucuras explicadas, estamos prontos para ir. Ele pede para fazer fotos com toda a equipe e aproveita para “dirigir” o repórter, mostrando como deve se mover o corpo naquele palco heterodoxo. “Olha para cima, para trás, tem de falar com a pessoa que está aqui na frente, ali atrás e também lá em cima. Solta essa cintura! Você já fez tai chi chuan? Para atuar aqui tem de fazer”, ensina o veterano teatrólogo. Ele pede um táxi para o bairro do Paraíso, onde vive em um república com Roderick Himeros e Igor Marotti, atores de seu grupo, e Marcelo Drummond, ator veterano que começou com ele e hoje também dirige suas próprias peças. “Não tenho nenhuma propriedade, dei minha vida toda para o teatro. Não me arrependo, minha vida é plena”, orgulha-se.

ESTÔMAGO
O veterano ator Pascoal da Conceição lê, sentado no trono, uma notícia futurista sobre a utilização de sêmen de jovens brilhantes nos EUA para uma seleção eugenista dos seres humanos por nascer. O ator Roderick Himeros simula a narrativa, masturbando-se ao vivo em roupas colegiais. Em seguida, Pascoal defeca em um pote, com closes da cena projetados nos três telões do teatro. Começa então uma encenação quase ridícula de algum tipo de juízo final mitológico, com seres fantásticos, muita dança e alguma escatologia. No fim, o público é convidado a cheirar as fezes recolhidas em um pote desses de laboratório. É assim a montagem de Para Dar um Fim no Juízo de Deus, encenada no Oficina quase de forma improvisada (em algumas cenas os atores quase gargalham) durante as quintas-feiras de maio de 2015. O recado é simples em tempos de onda conservadora: pode-se negar o que é ser, ignorar a m…, mas ela existe. E Zé Celso se diverte ao esfregá-la, chocantemente, na cara da sociedade.

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