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Maria Dirce Morganti chega à delegacia após ter sido presa pela polícia de São Paulo, em 1984

Para se vingar da traição do marido, a engenheira Maria Dirce Morganti recorreu à mandinga – mas sua cartomante a aconselhou a resolver o caso “aqui embaixo mesmo”. Dois anos depois, em 1982, ela foi acusada de orquestrar a morte do usineiro Ivo Morganti, assassinado quando saía da casa da amante. Pegou 15 anos de prisão

Por Paulo Sampaio

Até agosto de 1980, quando já estava casada havia 28 anos, a engenheira química Maria Dirce Farani Morganti considerava seu marido uma pessoa de “costumes rígidos, quadrada”. No parecer dela, o usineiro Ivo Morganti possuía “uma moral muito forte”. No dia 24 daquele mês, ao receber a notícia de que Morganti estava preso por ter baleado um homem, Maria Dirce foi obrigada a rever seus conceitos. O motivo do entrevero entre o usineiro e o funcionário público Euclides Rodrigues de Souza, vulgo Didi, foi uma mulher. Os dois disputavam o amor da professora Maria Célia Police Casati, 40 anos. Herdeiro de uma família muito rica de São Carlos, cidade de 240 mil habitantes no interior de São Paulo, Morganti ainda tentou explicar à mulher que o caso com Maria Célia era passageiro, mas não houve jeito. Maria Dirce, então com 56 anos, não o perdoava por tê-la exposto à vergonha pública e pediu a separação. Naquele dia, ela mudou-se para o quarto de hóspedes da fazenda. “Nossa relação passou a ser apenas de amizade. Entre nós, não havia mais intimidade”, declarou, dois anos depois, ao se defender da acusação de ter mandado matar o marido. Ivo Morganti foi assassinado no dia 25 de fevereiro de 1982, aos 57 anos, quando saía da casa da amante. Ao confessar o crime, o atirador Manoel Jerônimo Pereira, 25 anos, arrastou com ele para o banco dos réus vários suspeitos de coautoria, incluindo a própria Maria Dirce. Mãe de um filho de Morganti, Ivo Jr., 26 anos na época, ela nunca admitiu ter contratado os serviços de Pereira, embora não escondesse a mágoa que a consumiu depois da descoberta da traição.

FEITIÇARIA
Ivo Morganti não aceitou a separação, mas, com o tempo, acabou deixando a casa onde morava com a mulher e o filho e foi morar na do pai, que ficava na mesma fazenda. Para justificar-se, disse que recebeu um ultimato da amante – e que tinha receio que ela testemunhasse contra ele no episódio com Didi. Inconformada, Maria Dirce dizia aos quatro cantos que ninguém entendia o que Morganti via em Maria Célia, “uma mulher sem nenhuma qualidade física, nem intelectual”. Passou a acreditar que fosse feitiçaria: “Gente da minha confiança diz que ela fez um trabalho para conquistá-lo”, afirmava. Resolveu buscar ajuda no ocultismo. Ouviu de algumas videntes que seu marido deixaria Maria Célia, desde que se realizasse um trabalho para invalidar o que foi feito pela amante.

Quando estava prestes a achar tudo aquilo uma bobagem, Maria Dirce foi levada por uma empregada de confiança, Geralda Maria dos Santos, 68 anos, a uma cartomante chamada Adélia Vieira de Córdova, 47 anos, na Vila Maria Baixa, zona norte de São Paulo. Na ocasião, Adélia tentou fazer contato com seus guias espirituais, mas, como não obteve sucesso, explicou à cliente que o mais indicado naquele caso seria resolver “aqui embaixo mesmo”. “Posso arranjar alguém que faça o trabalho para a senhora”, disse, referindo-se a um matador. Dias depois, conduzidas por Ivo Jr. em um Corcel II, patroa e empregada foram à Vila Maria Baixa para acertar os detalhes do “serviço”. (Pelo que Adélia disse em seu depoimento, Ivo Jr. não sabia da trama. Achava que as duas estavam apenas se aconselhando com a cartomante, tanto que Maria Dirce pediu que a mulher não revelasse nada a ele.) O contato com Manoel Jerônimo Pereira foi arranjado pelo filho de Adélia, Rui Vieira. Por sua vez, Pereira chamou um cunhado, Waldir Teixeira, o “Ticão”, para dirigir o carro no dia do crime. Ficou acertado que Adélia receberia 3 milhões de cruzeiros – atualizados, cerca de R$ 300 mil – para dividir com os comparsas.

LONGE DOS OLHOS
A essa altura, Maria Célia morava em uma casa espaçosa comprada por Ivo Morganti em um lugar distante do centro de São Carlos. Segundo Ivo Jr., o pai garantiu que pretendia se separar da amante e que levá-la para longe era uma maneira de se afastar “aos poucos” e “ficar em paz”. A princípio, a ação dos assassinos estava marcada para quarta-feira, dia 24, mas naquela noite o usineiro não esteve na casa da amante. Tiveram de voltar no dia seguinte. Morganti chegou por volta das 20h15. Pereira estava a postos desde as 17h, em um terreno baldio vizinho, munido de um revólver Taurus calibre 38. Ticão aguardava o matador em um Fusca azul, no acostamento da Rodovia Washington Luís, que ficava ali perto.
A visita de Morganti à amante levou cerca de duas horas. Perto das 22h, quando as luzes no andar de cima da casa de Maria Célia se apagaram e Morganti saiu pela porta da frente, Pereira se aproximou até uma distância de cerca de 30 metros. Embora também estivesse armado, o usineiro não percebeu a presença do assassino a tempo de sacar sua pistola Beretta e contra-atacar. Pereira disparou quatro vezes, mas apenas um tiro acertou a vítima. Maria Célia, que ficou na janela para acenar para o amante, correu para socorrê-lo. A bala atingiu Morganti na altura da base do rim direito e saiu do outro lado do tronco, 15 centímetros abaixo do mamilo esquerdo – ele não resistiu aos ferimentos e morreu pouco depois no hospital.

PREÇO BOM
Em São Paulo, onde passavam uns dias, Maria Dirce e Ivo Jr. foram despertados por volta das 2 da madrugada pelo advogado da usina, Aldo de Cresci. Ele informou que Morganti estava no hospital e que seu estado inspirava cuidados. Depois de uma pequena pausa, completou: “Precisamos pensar onde será o velório, caso o pior aconteça”. O corpo foi trasladado para a Usina da Serra, de propriedade da família. O enterro aconteceu na capital. No mesmo dia, de acordo com o combinado, Pereira foi à casa da cartomante buscar sua gratificação. Até então, o matador não sabia que a fortuna dos Morganti estava estimada em mais de US$ 150 milhões (esse foi o patrimônio de Maria Dirce e Ivo Jr. que a Justiça bloqueou durante o inquérito). Ao ler nos jornais o obituário da vítima, ele começou a achar que tinha levado pouco pelo serviço. Procurou Adélia e pediu mais. Ela ficou de falar com Maria Dirce. Conseguiu o equivalente a R$ 70 mil a mais para ele e R$ 30 mil para Ticão. Em seguida, para não ter de lidar mais com os assassinos, Adélia mudou-se para Canoas, no Rio Grande do Sul, dizendo aos vizinhos que estava indo para o Paraná. Pereira até a procurou de novo, mas nunca mais a encontrou.

Maria Dirce afirmou que só soube que haviam descoberto o assassino no domingo, quando uma repórter do jornal “O Estado de S. Paulo” a procurou para entrevistá-la. “Fiquei surpresa porque até então pensava que era Didi”, disse. Ao confessar o crime e entregar Maria Dirce como mandante, Pereira só fez acender o pavio de uma bomba que há anos ameaçava explodir na família do usineiro. O pai de Morganti, Nello, aproveitou as acusações contra a nora para relativizar a parte dela e a do neto na herança (Ivo Jr. também foi indiciado como suspeito de participar da orquestração do crime). Em seu depoimento, Maria Dirce contou que, oito dias após a morte do marido, Nello havia constituído outro testamento, beneficiando a filha, Iva. Segundo ela, na época de seu casamento com Morganti, em regime de comunhão de bens, ele possuía 36% das ações da usina, e Nello, 64%. O patriarca agora queria que 18% das ações de Ivo fossem doadas a Iva, para que os dois tivessem partes iguais. “Só que essa igualdade seria entre Iva e o espólio de Ivo, ou seja, eu e meu filho”, calculou Maria Dirce. “Não aceitamos a proposta, e, a partir daí, começaram a pressionar Ivo Jr., a ponto de ele não ter condições de trabalhar na usina.”

Adélia Vieira de Córdova, a cartomante da Vila Maria Baixa, zona norte de São Paulo, que ajudou a armar o esquema para matar Morganti

À FRANCESA
Por sua vez, a cartomante Adélia Córdova contou na polícia que, depois da morte de Morganti, a empregada Geralda dos Santos a procurou para dizer que Maria Dirce andava muito aborrecida com o “velhinho” (Nello) e que “seria bom” se pudessem “tirá-lo do caminho” porque ele estava “atrapalhando o inventário”. “Eu não queria mais saber daquilo”, garantiu Adélia em juízo. “Estava muito nervosa.” Segundo ela, Maria Dirce chamava o sogro de “Popó” e dizia que “ele mal arrasta os pés, mas atrapalha muito”. Um primo do usineiro, Biaggio Morganti, e a mulher, Maria Rosa, afirmaram que Maria Dirce e o filho se desesperaram com a recusa do marido/pai em fazer vasectomia, e tentaram mais de uma vez envenenar a comida dele. “Isso seria trágico, se não fosse risível”, reagiu Ivo Jr. ao depor.

Alegou que seu pai saberia reconhecer facilmente algum elemento estranho na comida, pelo cheiro ou o paladar, já que também era engenheiro químico. Argumentou ainda que nem ele nem sua mãe costumavam ir à cozinha, porque as refeições eram servidas à francesa. E que seu pai bebia apenas uísque, “o qual sai diretamente da garrafa”. De acordo com Ivo Jr., sua tia Iva e o filho dela, José Roberto, estavam fazendo “uma grande pressão” para incriminá-lo, porque, se eventualmente ele fosse condenado, os dois obteriam “vantagem de ordem econômica”. Sem acusar a mãe, disse que gostava muito do pai e que não havia motivo que o levasse “sequer a pensar em sua morte”, uma vez que sempre teve tudo o que precisava e até mais do que isso. A título de exemplo, contou que aos 20 anos ganhou um automóvel Mercedes-Benz; aos 21, outro, e aos 23, um Porsche. (Vítima de sequestro, o rapaz viveu boa parte da adolescência cercado por seguranças, coisa que ele repudiava.)

CLAMOR AOS CÉUS
Manoel Jerônimo Pereira foi o primeiro a ser condenado, depois de um julgamento que durou 16 horas. Pena: 18 anos de detenção. Ticão pegou 12 e Adélia, 13. Depois de conseguir um habeas corpus e livrar-se da prisão preventiva, Ivo Jr. acabou absolvido. A denúncia contra ele foi considerada “vazia” – ou sem provas suficientes. Maria Dirce e Geralda tiveram prisões preventivas decretadas em setembro de 1982, mas permaneceram foragidas até abril de 1984. Quando as duas reapareceram, a defesa alegou que elas não haviam fugido, apenas se retiraram para evitar cumprir uma decisão ilícita. Como na volta estavam doentes, elas ficaram “presas” na Santa Casa de Misericórdia de São Carlos.
Ambas foram a júri em 1987. Geralda acabou absolvida e Maria Dirce condenada a três anos de detenção. “Clama aos céus a injustiça de tal decisão!”, reagiu o promotor Luís Gonzaga Silva Rodrigues de Almeida, pedindo a anulação do júri. Com um discurso inflamado, Almeida acusava Maria Dirce de ser “a principal responsável pela cena de sangue, ódio e violência que marcou a tranquila, ordeira e pacata cidade de São Carlos!”. Recurso acatado, a ré foi submetida, em 1993, a novo júri e condenada a 15 anos de prisão. Recebeu indulto em 1998. Defesa e promotoria entraram com novos recursos, mas o juiz manteve a pena. Levaram-se em conta não só as provas cabais, mas também a defasagem da pena de Maria Dirce, se comparada com as dos demais culpados. “Adélia também tem idade, passa por problemas de saúde e, mesmo assim, está presa já faz alguns anos”, argumentou o promotor, rebatendo os três argumentos da defesa.

ILHAS CAYMAN
O advogado Márcio Thomaz Bastos, contratado por Maria Dirce e Ivo Jr. para defendê-los, entregou o que prometera. A absolvição de apenas um dos dois já garantiria o direito à posse da herança. Por sua vez, o próprio Thomaz Bastos obteve uma polpuda fatia do patrimônio da família. Na ocasião, foi catapultado à fama não só pelo “barulho” que a causa fez, como pela remessa de US$ 4 milhões que Maria Dirce e Ivo Jr. fizeram em nome dele no principado europeu de Lichenstein. O dinheiro já havia passado pelo Uruguai e pelas Ilhas Cayman, conhecido paraíso fiscal.
De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, em junho de 2006, a Polícia Federal abriu uma investigação em 2003 – dez anos depois da condenação de Maria Dirce – para verificar a remessa de dinheiro. A apuração foi arquivada em 2004, sem que se efetuassem os procedimentos básicos de uma averiguação de crime financeiro. O advogado negou que tivesse recebido os recursos. Em três entrevistas concedidas ao jornal, Ivo Jr. confirmou o depósito. “Ele (Thomaz Bastos) disse: ‘Me pague em tal conta’. E eu falei: ‘Tá bom’.” Maria Dirce assentiu: “Foi para pagar ele (Thomaz Bastos), sim. Ele disse que não foi? (…) Mas foi, sim”. J.P tentou falar com Ivo Morganti Jr., hoje com 57 anos, mas foi informada de que ele acompanhava a mãe, internada por problemas de saúde decorrentes da idade avançada. Maria Dirce completa 90 anos este mês. 

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