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Lydia no living de seu apartamento, nos Jardins, em abril||Créditos: André Giorgi
Lydia no living de seu apartamento, nos Jardins, em abril||Créditos: André Giorgi

Houve um tempo em que as casas noturnas de São Paulo não permitiam a entrada de mulheres desacompanhadas. Inconformada com a discriminação, Lydia Chagas criou nos anos 1980 uma noite especialmente dedicada a elas. Sucesso instantâneo, o baile pôs um fim definitivo à descortesia dos caretas

Por Paulo Sampaio para a Revista J.P de maio
Fotos André Giorgi

É uma injustiça com as mulheres. Toda vez que se fala em feminismo, aparece alguém associando a militância a seres radicais, agressivos e masculinizados. Lydia Chagas, 84 anos, fez a sua parte sem precisar apelar para nada disso, apenas se divertindo. Sua contribuição para o movimento veio na forma de uma noite que ela criou nos anos 1980, em um bar chamado L’Abissinthe, em São Paulo, com o intuito de promover o ingresso de mulheres desacompanhadas em casas noturnas da cidade. Até ali, se quisessem beber em bares, elas teriam de arrumar alguém do sexo masculino para levá-las – ou correr o risco de ser barradas. Lydia resolveu tomar uma atitude quando ela própria foi impedida de entrar com uma amiga no Plano’s Bar, um dos mais famosos da região dos Jardins. Apesar de ter sido criado por uma mulher, a decoradora Sylvia Kowarick – que era muito moderna, por sinal –, o Plano’s barrava a entrada de avulsas. Não é de espantar que o Baile Maria Cebola, como foi batizado, tenha se tornado um sucesso instantâneo. Realizado sempre às segundas-feiras, atraía cada vez mais mulheres – e homens também. “O número de frequentadores crescia a olhos vistos. Duplicava, triplicava a cada semana”, lembra a administradora Elcy Belluzzo, 70 anos, que nos primeiros meses ajudou Lydia com as contas. “Ela não tinha experiência na parte administrativa. Um dia, me perguntou quem era Sabesp.”

O nome do baile foi inspirado nos quadrinhos de Ferdinando Buscapé, criado em 1934 nos Estados Unidos pelo desenhista Al Capp. Na famosa saga de Ferdinando, que se passa no Brejo Seco, um dos episódios mais conhecidos é o Dia da Maria Cebola, em que todas as mulheres da região travam uma corrida para ver quem agarra primeiro um solteirão para se casar. No Maria Cebola do L’Abissinthe, os homens não eram barrados na porta. Um deles ficou especialmente feliz: Waldemar Issa, o dono da casa, que estava praticamente quebrado e conseguiu alavancar incrivelmente as finanças. Quando Issa propôs a Lydia o cargo de relações-públicas do lugar, ela impôs como condição comandar uma noite para mulheres. Desquitada, ela não havia se recuperado completamente da experiência pessoal com o machismo. Seu primeiro marido, José Carlos Figueiredo Ferraz, com quem se casou aos 18 anos e teve quatro filhos, a tolhia em todas as suas tentativas de se tornar minimamente independente. Quando enfim ela resolveu se separar, Figueiredo Ferraz – que mais tarde se tornou prefeito de São Paulo (1971-1973) – disse que não contasse com um tostão dele. Lydia não se apertou: foi revender produtos Avon. Figueiredo Ferraz levou os dois filhos homens consigo, dizendo que ela não saberia educá-los. E ainda rogou praga. “Você vai ter oportunidade de ver quem de fato é seu amigo, quem é só por minha causa”, disse. Ela pensou que seria mesmo uma excelente chance de verificar. E, graças a Deus, conta, “sempre me vi rodeada de muita gente”.

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Lydia em seu apartamento, nos Jardins, em abril||Créditos: André Giorgi

(SEGUNDO) MARIDO JOVEM

Algum tempo depois, passou a viver com o advogado recém-formado José Gustavo Macedo Soares, um “duro” quase dez anos mais jovem que ela. “Eu o conheci em uma festa de São João. Ele não tinha nem carro”, diverte-se. Os filhos nunca a reprimiram em seus relacionamentos. “Diziam que eu poderia me casar quantas vezes quisesse, contanto que não tivesse mais filhos.” Com a primogênita, Maria Marta, Lydia viveu a experiência mais dolorosa de sua vida. A adolescente não reagiu bem quando os pais se separaram e, para tentar ajudá-la, eles a enviaram para uma temporada de estudos em Paris. Foi pior. Lá, ela passou a tomar remédio para emagrecer, tornou-se viciada e nunca mais conseguiu abandonar de vez as drogas. Quase 20 anos mais tarde, aos 33, depois de um casamento relâmpago com um noivo nada a ver, Maria Marta se matou. Lydia é econômica ao falar do assunto. Compreensivelmente, passa a ideia de que a vida precisava prosseguir.

Seu casamento com José Gustavo durou quatro anos. Antes de criar o Maria Cebola, ela ainda trabalhou com turismo por mais de dez anos, organizando grupos em viagens ao exterior. Até que foi convidada por um amigo para tocar órgão no restaurante dele. (Ela já tinha o instrumento havia muito tempo. Ganhou quando era casada com Figueiredo Ferraz, que à época perguntou: “O que você prefere, um anel de brilhante ou um órgão?”. Apaixonada por música, ela respondeu imediatamente: “Um órgão!”). Mas é a seu terceiro marido, o empresário Mário Fix, que ela atribui seu début na boêmia. “Ele era uma pessoa maravilhosa, adorava estar no meio dos músicos, nossa casa vivia cheia. Ia Toquinho, Vinicius, Trio Mocotó, uma porção de gente boa”, lembra. Ela calcula ter ficado dez anos com ele. E por que o casamento acabou? “Por causa da boêmia (ela ri). Não dá para viver só nisso.”

Quando começou a trabalhar à noite, tocando órgão, Lydia passou a sentir de perto a discriminação. No caso das desquitadas, como ela, piorava muito. “Um dia, acordei pensando no problema da mulher socialmente desamparada. Sempre quis fazer algo para agregá-la. Não achava aquilo justo.” O Maria Cebola era um precursor dos “singles” (ou “bares para solteiros”, que mais tarde se reproduziram aos montes pela cidade), só que sem nenhuma malícia. Lydia bebia uísque com guaraná (“uma dose durava a noite toda”), enquanto entretinha os frequentadores com brincadeiras como a do “baralho do mico”. Cada carta representa um bicho que, por sua vez, tem o seu par. O dono da figura do coelho, por exemplo, deve encontrar a “sua” coelha no salão. A psicóloga Heloísa Carneiro, 69 anos, se recorda do Maria Cebola com saudade. “O baile era uma sensação, principalmente pelo ineditismo da proposta. Não havia nada igual em São Paulo, e nem vai haver. Os tempos são outros.” Elcy Belluzzo, a administradora dos primeiros tempos, também frequentava a casa. “O ambiente era de alto nível, a fina flor da sociedade. A seleção das frequentadoras era feita já pelo manobrista e o porteiro. Não havia a menor possibilidade de entrar gente que não tinha a ver com o baile.” Quer dizer, então, que as mulheres podiam ser barradas ali também? “Não dava para abrir muito, porque ficaria difícil manter o conceito original. O baile surgiu como uma espécie de clube privê. A própria Lydia ligava pessoalmente para convidar as mulheres.”

Sérgio Rosa, que durante seis anos foi relações-públicas do baile, é só elogios a ex-chefe. “Sempre digo que fiz duas faculdades, engenharia mecânica e publicidade, mas nenhuma me ensinou tanto como a experiência com a Lydia.” Rosa conta que encarava o Maria Cebola como um trabalho social, “da mesma maneira que existe com crianças abandonadas ou velhinhos nos asilos”. “Naquela época, as mulheres separadas, principalmente com 40 anos ou mais, não tinham para onde ir sozinhas.” Ele conta uma história emblemática para ilustrar: “Certa vez, uma senhora desquitada, mulher de um ministro do governo federal, me ligou a 1 da manhã e disse: ‘Sérgio, hoje eu faço aniversário, meus três filhos jantaram comigo e foram embora. Eu estou sozinha, sem sono e gostaria de ouvir música. Posso ir até aí?’”. Quando Sérgio respondeu “Claro!”, a senhora completou: “Só te peço uma coisa, que você me espere na porta para eu não entrar sozinha”. Ele considerou o episódio “uma das grandes recompensas que o baile proporcionou”.

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No sentido horário: em foto para reportagem da revista “Interview”; com o terceiro marido, Mário Fix, e amigos, em Acapulco; e entre Estêvão Bottini e o colunista Tavares de Miranda, promovendo o champagne René Lalou||Créditos: Arquivo pessoal

É FANTÁSTICO

Lydia desconversa quando perguntam se o lugar era frequentado por homens casados. Ao contrário do que se imagina, ela garante que não tinha acesso a informações privilegiadas. Apesar de sempre chegar ao Maria Cebola por volta das 21 horas e sair apenas depois que o último cliente fosse embora, ela jura que nunca soube de casos de maridos adúlteros no baile. “É verdade que na época das férias, quando as mães desciam para o litoral com as crianças, o baile enchia de gente (risos).” No auge do sucesso, quando o programa Fantástico, da TV Globo, esteve no Maria Cebola para gravar uma reportagem, uma das entrevistadas escondeu o rosto do seu “coelho” dizendo: “É que ele é casado kkk.” (Ao fundo, nessa reportagem, muito jovenzinho, vê-se en passant a figura de um personagem que ficaria famosíssimo nos governos de Lula e Dilma: o ex-ministro Guido Mantega.)

Com a consagração, o Maria Cebola cresceu rapidamente, e o L’Abissinthe ficou pequeno para abrigá-lo uma vez por semana. Logo Lydia recebeu convites para estabelecer seu baile em casas noturnas maiores, como a lendária discoteca Ta Matete, na avenida 9 de Julho. No Regine’s, frequentado pela alta sociedade paulistana, ela recebia para almoço, aos sábados. “O Ricardo Amaral (dono do Hippopotamus) queria porque queria que eu fosse trabalhar com ele, mas eu não tinha ambição de crescer muito, apenas de continuar fazendo algo personalizado”, lembra. Depois de seis anos no Ta Matete e uma passagem pelo Saint Paul, outro bar que fez história na cidade, o baile voltou ao L’Abissinthe. Um dia, um amigo de Lydia apareceu no bar com o executivo americano Charles Hussey, que estava em viagem de trabalho no Brasil. Hussey se encantou com Lydia. Muito respeitoso, deixou seu cartão e disse que voltaria. Ela avisou de saída que seria preciso esperar o fim da noite para receber atenção. Mesmo assim, para surpresa dela, ele voltou na semana seguinte, os dois começaram a sair e acabaram se casando. Ela chegou a se mudar com o marido número 4 para Chicago, mas não se adaptou.

No sentido horário: com Maria Lúcia e Felipe Lutfalla, em um jantar no Abissinthe; segurando uma foto feita na época; e com Charles Hussey em Saint Moritz, num Réveillon||Créditos: Arquivo pessoal
No sentido horário: com Maria Lúcia e Felipe Lutfalla, em um jantar no Abissinthe; segurando uma foto feita na época; e com Charles Hussey em Saint Moritz, num Réveillon||Créditos: Arquivo pessoal

Lydia Chagas recebeu J.P no apartamento que ficou para ela, quando se separou de Hussey. Apesar de estar se recuperando de uma queda que a impossibilitou temporariamente de fazer alguns movimentos, e de já não escutar muito bem, ela se animou muito com a ideia de rememorar o Maria Cebola e a movimentada vida que levou. Fica claro que, apesar do preço alto que pagou pela própria independência, foi a partir dali que sua vida aconteceu. Isso explica por que ela não alimenta sentimento de culpa por ter feito sempre o que quis. Não seria justo. Lydia arrastou com ela uma geração de mulheres que até então eram sistematicamente impedidas de se divertir. “A Lydia teve a inteligência de bolar uma maneira de cuidar do maior abandonado”, afirma Sérgio Rosa. Sentada a um canto da sala de estar, muito elegante em seu relato, Lydia Chagas passa mesmo a imagem de uma dama vitoriosa.

 

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