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Victoria's Secret Emily Ratajkowski
Emily Ratajkowski. Foto: Reprodução/Carlijn Jacobs

Na era vitoriana, período de grande restrição sexual e puritanismo, roupas íntimas femininas raramente eram mencionadas pela sociedade educada da época. Ainda assim, lingerie e afins eram consideradas verdadeiras obras de arte, confeccionadas com um capricho ímpar, dado o ‘encanto’ a ser escondido sob suas camadas. Lembrando disso, é no mínimo intrigante que uma marca americana batizada ‘Victoria’s Secret‘ surgisse, na segunda metade do século 20, usando justamente esse fascínio pelo pudor oculto como sua identidade.

Sobretudo nesse momento em que um despudorado revival do icônico The Victoria’s Secret Fashion Show – o desfile de moda mais famoso do mundo, guardado na geladeira há quatro anos – acabou de ser revelado ao público com um entusiasmo moderado que quase beira o tédio. O megaevento, que já foi comparado ao Met Gala pela mídia e por fashionistas, em seu auge, voltou a ser produzido em 2023 com tamanha cautela que faria até as mais conservadoras ladies do período do reinado da rainha Victoria parecerem antenadas.

Historicamente, o público-alvo da VS eram as mulheres das gerações Baby Boomer (1945-1964) e X (1965-1981). Conforme analisou o The Wall Street Journal em 2005, a então estratégia de marketing da grife fundada em 1977 pelo casal Gaye e Roy Raymond, na cidade californiana de Palo Alto, atendia aos sonhos e aspirações de ambas, as garantindo acesso a um toque de alta moda sem o preço proibitivo de luxo.

Intitulado “Victoria’s Secret: The Tour ’23”, o ‘desfile’ saiu da telinha para tentar vingar no streaming, agora sob a batuta da Amazon Prime Video. Saiu o ‘glam’ dos tempos de Gisele, Heidi e Tyra para dar lugar a uma abordagem em estilo documental, na penumbra, e que evoca com brio um certo desejo por distância da teatralidade original que o alçou à fama. Ainda assim, sob a sobriedade da estética moderna, resiste nele um pouco do familiar encanto da marca. Mas também surgiu a dúvida: será que a VS conseguiu evoluir em compasso com seu público fiel ou tenta desesperadamente se apegar aos ecos de relevância passada?

A nova atração, embora seja um esforço louvável, parece se desviar de suas raízes. Ainda que contenha rostos familiares, como a brasileira Adriana Lima e a sul-africana Candice Swanepoel, falta sex appeal e alguém que ‘cause’. Em sua fase de pré-produção, pipocaram até alguns rumores dando conta da participação de Gisele Bündchen, o que até aconteceu de certa forma, mas não na passarela. Embora o documentário promova a inclusão com um elenco diversificado, apostando sobretudo nas modelos plus size, muitas das peças de suas coleções principais continuam não servindo em muitos corpos.

Desde seu advento, o Big Data se tornou estratégico para a indústria de marketing, e é essencial para as marcas que se alinham a plataformas de OTT, uma das maiores beneficiadas pelos grandes dados, já que refletem seus públicos-alvo com precisão e mostram saber onde estão pisando. As estatísticas de usuários do Prime Video, porém, fazem sua escolha como o novo lar da VS e cenário de sua multimilionária tática de publicidade parecer estranha, no mínimo.

Boa parte da base global de assinantes do maior concorrente da Netflix está na faixa etária de 25 a 34 anos, representada por 32,63% do total, e seguida de perto pelo grupo mais jovem de 18 a 24 anos, com 29,16%. Esse último não é o histórico público-alvo da VS. Contudo, à medida que se avança na escala etária dos espectadores do braço de entretenimento da Amazon, salta aos olhos uma notável desigualdade de gênero: os homens são, com uma maioria de 60,92%, os ‘tops’ do pedaço.

A decisão de transmitir no Prime Video, diante de tanta testosterona, aí fica parecendo um movimento de xadrez intrincado. E a dúvida se a VS ainda não entendeu o que aqui fica implícito ganha ares de bizarro mistério. Quando era um colosso, ela tecia sonhos com rendas e sedas, e os vendia como fantasias tangíveis que, de fato, atraíam muitos marmanjos – os de Wall Street, claro, seduzidos por seu valor de mercado, que chegou ao recorde de US$ 29 bilhões (R$ 148,8 bilhões) em novembro de 2015.

Assim a VS permanecia resiliente diante das tempestades que abalavam o restante da indústria da moda. Mas o céu estrelado se fechou quando escândalos sexuais, inúmeros e todos envolvendo seus executivos mais poderosos, começaram a render mais manchetes do que as beldades que posavam para seus catálogos. O negócio foi crescendo, vieram as ondas dos movimentos #MeToo e da positividade corporal, por fim formando o tsunami que abalou as estruturas da maison das calcinhas e sutiãs.

A concorrência também surgia no horizonte como uma paisagem de ‘lingerie democratizada’. Novas marcas, como a de shapewear Skims, de Kim Kardashian, e a Savage x Fenty, joint venture entre Rihanna e o LVMH, apostaram nas curvas de suas fundadoras popstars para monetizar a inclusão, com o extra de ainda terem redefinido a sensualidade da mulher moderna. A grande charada da VS é sua incapacidade de adaptação, oposto de suas colegas veteranas.

Como as de “The Supermodels“, hit recente da Apple TV+, que por sinal faz uma ode às lendas dos desfiles de meados da década de 1980 ao começo da seguinte. Cindy Crawford, Naomi Campbell, Christy Turlington e Linda Evangelista, todas com idades que as senhoras vitorianas entendiam como velhice digna de luto, continuam dando tanto o que falar desde a estreia da docusérie, no último dia 20, que conseguiram chamar atenção para ofuscar descaradamente a do VS Fashion retalhado – na quinta-feira passada (26). Alguém notou?

A VS, que já foi a pioneira dessa mesma evolução provocativa, se encontra em tal encruzilhada porque, resumidamente, não envelheceu bem. E o tempo que perdeu tentando redescobrir seu próprio ‘segredo’ enquanto apostava na sensualidade do sigilo, quem diria, permitiu que as concorrentes com uma pegada do século 21 desvendassem o enigma antes dela.

Hoje valendo pouco mais de US$ 1,2 bilhão (R$ 6,2 bilhões) na bolsa, uma cifra tímida quase 96% menor do que a alta histórica de quatro anos atrás, a VS tem um e-commerce bem desenvolvido e um plano de expansão internacional que inclui o Brasil. Tem ainda a calçada da fama mais desejada por aspirantes a modelo, mas parece sofrer de um acanhamento crônico que a imobiliza em seus trajes menores.

Justiça seja feita, seu espetaculoso fashion show na televisão, mesmo não tendo vingado no streaming, é um case televisivo com mais de duas décadas que entrou para a cultura pop. Vai que um case maior aguarda a Victoria’s Secret na maior e mais mítica de todas as telas. Histórias de bastidores picantes para um bom enredo é o que mais tem nesse caldeirão.

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