Mais de 40 anos separam a primeira vez que Zezé Motta foi convidada para gravar um comercial e a última campanha estrelada pela atriz, aos 78 anos. A artista contou no Twitter que chegou a ser chamada para fazer um comercial para uma marca de tecidos na década de 1970 que sequer foi ao ar.
“Eles me convidaram e me desconvidaram”, disse Zezé ao GLMRM, rindo. “Na época, disseram que a clientela deles é de classe média, que a classe média é preconceituosa e não aceitaria sugestões de uma negra“.
Com uma frustração do tamanho do mundo, a atriz e cantora, uma das principais referências das artes do país, percebeu que havia algo de errado com a sociedade. “Ali foi o primeiro gatilho para começar a pensar realmente em tentar virar esse jogo.”
Ela juntou suas forças e se inscreveu em um curso sobre cultura negra com ninguém menos do que Lélia Gonzalez, uma das principais intelectuais do movimento antirracista brasileiro, de quem virou amiga até a sua morte, em 1994.
“Lélia falou uma coisa na aula inaugural que foi definitiva para eu gerir uma angústia que o racismo me causou. Ela disse: ‘Eu sei o porquê de vocês estarem aqui, mas quero lembrar que não temos tempo para lamúrias. Temos que arregaçar as mangas para virar esse jogo'”, lembra Zezé.
Cabelo alisado
Mesmo com um caminho árduo, as aulas de Lélia ajudaram Zezé a parar de sofrer com as dores que racismo causa, arregaçar as mangas e virar o jogo. Perseguida durante a ditadura, a artista, conhecida principalmente pelo papel no longa “Xica da Silva” e na novela homônima, passou por um processo de embranquecimento muito grave na adolescência.
“Passei a alisar meu cabelo porque minha mãe alisava o dela”, diz. Zezé pensava em afinar o nariz e diminuir os quadris para encaixar em um padrão branco. “Olha que loucura! Foi uma ideia totalmente destrambelhada e fora da casinha”.
Seus cabelos crespos eram alisados por um ferro quente com vaselina. A dor de Zezé era tanta que, além do processo, usava uma peruca com corte chanel para cobrir seus fios. Ela só foi perceber que não se sentia bem quando viajou com o espetáculo “Arena Conta Zumbi”, de Augusto Boal, para uma turnê pelos Estados Unidos.
Batismo no teatro
A peça terminava com uma fala de punho cerrado em que os atores diziam: “Eu sou o Zumbi dos Palmares”. “Agora, você imagina uma pessoa com punho cerrado dizendo ser Zumbi dos Palmares enquanto usava uma peruca?”, ela lembra, em referência ao gesto símbolo dos Pantenas Negras.
“Com ajuda do diretor, eu cheguei no hotel depois da peça, tirei a peruca e me enfiei embaixo do chuveiro para o meu cabelo voltar ao normal. Eu considerei esse banho como um batismo.”
“Eu cheguei no hotel depois da peça, tirei a peruca e me enfiei embaixo do chuveiro para o meu cabelo voltar ao normal. Eu considerei esse banho como um batismo”
Nos EUA, onde jantou com representantes dos Panteras Negras, Zezé percebeu outra diferença gritante entre os negros norte-americanos e os brasileiros.
“Eu já estava reflexiva, pensando: ‘Engraçado, no Brasil os negros têm uma postura corporal diferente’, andavam de cabeça baixa, curvados. Lá, eles tinham a espinha dorsal ereta, o queixo erguido e o olhar firme. Cheguei à conclusão de que os negros no Brasil tinham a autoestima baixa porque falavam que eles eram feios e acreditavam”.
Apesar de toda dificuldade em encarar sua própria história, o processo foi revolucionário para Zezé. “Foi um alívio me aceitar do jeito que eu sou, do jeito que eu nasci”, enfatizou.
Garota-propaganda
De volta ao presente, rosto de campanhas para marcas de beleza como Avon, Vichy, Nívea e L’Oréal, Zezé diz estar vivendo o auge de sua carreira aos 78 anos. Enquanto conversava com o GLMRM, a artista se preparava para o show “Zezé Canta Caetano”, que apresenta nesta sexta (22), no Rio, com renda revertida para o Retiro dos Artistas, que acolhe artistas idosos em dificuldades econômicas e sociais.
Mesmo com uma carreira vasta entre novelas, filmes e música, Zezé ainda faz muitos planos. Entre eles, o de voltar a dirigir um espetáculo. Ela lembra que já dirigiu uma de suas referências, Jamelão, durante o Projeto Pixinguinha. “Lembrei dessa época e fiquei pensando: ‘Por que não?'”. Nada parece impossível para Zezé hoje.