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Camila Sosa Villada
Foto: Laura Zanotti

Uma travesti que se transforma em mulher-lobo nas noites de lua cheia, a lobiscate. Outra que, dia a dia, se metamorfoseia em um pássaro. Duas travestis que, numa boca de fumo no Harlem, cruzam com ninguém menos que Billie Holiday. Na literatura da argentina Camila Sosa Villada, nada nem ninguém é realmente o que parece ser.

A voz completamente original, que mistura fantasia com dramas demasiado humanos e toques autobiográficos, fez a escritora e atriz ser classificada com diferentes rótulos, como o de herdeira do realismo fantástico latino-americano, que ela entende, mas não endossa. Prefere, como disse bem humorada na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty onde foi uma das atrações, o termo “ficção científica travesti pobre”.

“O Parque das Irmãs Magníficas” (Ed. Planeta), seu primeiro livro lançado por aqui, narra o cotidiano de um grupos de travestis que se prostituem no Parque Sarmiento, em Córdoba, experiência semelhante à que a argentina viveu antes de se formar em Comunicação e Teatro e montar a primeira peça. Já a recém-lançada coletânea de contos “Sou uma Louca por te Querer” traz histórias como a das travestis que se tornam amigas da diva do jazz, intérprete da canção que dá título ao livro.

Na imaginação deslumbrante de Villada, real e imaginário se misturam a suas muitas referências, que incluem de Garcia Lorca às novelas brasileiras. “Elas me influenciaram a pensar nas tramas. Vi muitas novelas brasileiras, como ‘Pantanal’, ‘Hilda Furacão’, ‘Dona Beija’, ‘Xica da Silva’, ‘O Clone’, ‘Avenida Brasil’”, contou ao GLMRM durante sua passagem pelo país.

Na conversa, a autora falou também de como escrever foi seu “primeiro ato de travestismo”, de como trabalha a violência em suas obras e de suas impressões sobre o Brasil, onde já havia estado com uma de suas peças e que descreve com a riqueza de imagens que lhe é peculiar. “Aqui parece que a natureza está constantemente sussurrando algo. Tenho a sensação de que, se parasse por um segundo, a natureza me comeria viva”.

GLMRM – Como você começou a escrever? Era aquele tipo de adolescente que escrevia diários, poemas?

Camilla Sosa Villada – Desde pequena. Aprendi a escrever e já comecei a fazer poeminhas, cartas para minha mãe e para meu pai. Depois, no primário, quando tinha uns 8 anos, nos mandaram ler García Lorca e aquilo me virou a cabeça: “Uau, isso pode rimar, isso pode ser dito de mil formas.” Foi um bom encontro com Garcia Lorca e depois não parei mais.

GLMRM – Você já disse que seu “primeiro ato oficial de travestismo foi escrever, antes de sair nas ruas vestida de mulher”. Esses processos se cruzam? Escrever te ajudou a assumir quem era de fato?

CSV – Naquele momento eu não sabia, como também não sei agora, mas eram coisas que eu fazia em segredo: escrever e me travestir. Fazia sozinha em meu quarto, trancada, quando meus pais dormiam. Suponho que a travesti chegou depois da escritora, ainda era muito difícil para mim falar de gênero naquele momento em que era muito jovem, tinha 11, 12 anos. Em todo caso, não sei dizer se uma coisa ajudou a outra, mas, sim, escrevi como mulher antes de sair às ruas como mulher.

Foto: Laura Zanotti

“Eram coisas que eu fazia em segredo: escrever e me travestir. Fazia sozinha em meu quarto, trancada, quando meus pais dormiam”

GLMRM – Também li que você, desde pequena, via suas tias assistirem às novelas brasileiras, como “Pantanal”. Estas histórias influenciaram de alguma maneira sua ficção?

CSV – Sim, sobretudo me influenciaram a pensar nas tramas. Há escritores que pensam como escrever uma história. O que me faz me julgar uma escritora tem a ver com a palavra, independentemente de uma história, de um feito. Gosto das tramas, de contar uma história que pode ter só um princípio. Com as mudanças ao longo dos anos, foi mudando essa missão dos vilões, heróis, das tragédias. Mas, claro, as novelas foram uma influência, como os filmes e os desenhos animados. Vi muitas novelas brasileiras: “Pantanal”, “Hilda Furacão”, “Dona Beija”, “Xica da Silva”, “O Clone”, “Avenida Brasil”…

GLMRM – Você usou uma expressão engraçada na Flip quando perguntada sobre ser uma herdeira do realismo fantástico latino-americano. Disse que via sua literatura mais como uma “ficção travesti pobre”. Como definiria seu estilo?

CSV – Não sei. Na verdade, não tenho a menor ideia do que vou fazer. Mas quando me perguntam se o que faço é realismo fantástico ou não, eu digo que tem a ver com o que eu gostaria de escrever. Já pensei que parece mais com o neorrealismo, um neorrealismo cordobês, mas não sei. Gostaria muito de escrever ficção científica, não a pobre que escrevo. Entendo as pessoas usarem termos como realismo fantástico como uma necessidade que há de rotular um romance e torná-lo algo mais palatável, reconhecível para a crítica, os leitores e até para os inimigos, fica mais fácil de identificar. Não tenho nada contra, mas nunca vou saber o que é.

Foto: Laura Zanotti

GLMRM – Já ouvi de outras artistas travestis uma preocupação de não reproduzir a violência diária que sofrem em suas obras, visto que estamos no país que mais mata pessoas trans no mundo. Nos seus livros, a violência está presente, embora não seja o foco. Você tem essa preocupação quando escreve?

CSV – Não, de jeito nenhum. Gosto de escrever sobre a violência. Não só essa, mas a violência da natureza, das cidades, da solidão, da fome. Há muitas maneiras de interpretar a violência e é interessante poder falar dela. Assim como gosto de falar de crianças, de animais, de outras regiões que não a de onde venho.

“Gosto de escrever sobre a violência. Não só essa diária, mas a violência da natureza, das cidades, da solidão, da fome”

GLMRM – Você já veio ao Brasil outras vezes e conhece o trabalho de artistas brasileiras, como Liniker e Linn da Quebrada. Se tivesse que escrever uma história ambientada aqui, como imagina que seria?

CSV – Jup do Bairro também, eu adoro! Mas uma história no Brasil… Não sei. Estive em uma mesa com Chico Felitti, que escreveu o livro “Rainhas da Noite”, que fala sobre umas travestis que dominaram a máfia noturna de São Paulo durante os anos 1970 e alguns anos depois. Bom, escreveria algo assim, certamente. Mas não sei se me atreveria a escrever sobre um país tão grande. Talvez escrevesse sobre as travestis nas regiões mais remotas do Brasil, distante do que chega de propaganda do país, da paisagem carioca, da floresta, das praias, do futebol.

Foto: Laura Zanotti

GLMRM – Você está escrevendo um novo livro? O que pode dizer sobre os projetos?

CSV – Estou reeditando um romance, que na verdade teve uma edição muito pequena no jornal argentino Página 12, chamado “Tesis sobre una domesticación”. Agora em janeiro começamos a fazer a adaptação para o cinema dessa história e devo participar da direção também. E estou escrevendo um livro sobre o trabalho dos vendedores ambulantes, uma espécie de ensaio poético, romantizado.

“Se tivesse que escrever uma história no Brasil, talvez escrevesse sobre as travestis nas regiões mais remotas, distante da propaganda, da paisagem carioca, da floresta, das praias, do futebol”

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