Ela já não sabe se bate panela na Paulista, se reprova a pediatra que parou de atender a criança porque a mãe era do Partido X, nem se toma a vacina contra gripe. Ainda precisa responder à manicure se prefere o Rose Taffeta, da Chanel, ou Heirloom Mix, da Dior
Por Paulo Sampaio para a Revista J.P de maio
A notícia de que o marido empreiteiro de Beatriz de M. A. P. (Trixie) foi preso por fazer doações ilegais a campanhas políticas deixou a boleira Cecilinha G. de C. muito perturbada. Naquela manhã, Luiz Octavio de M. A. P. foi levado de casa por agentes da Polícia Federal que cumpriam mandados de prisão em uma operação chamada Chapisco. Até então, Cecilinha repetia o discurso do marido, o empresário Mario B. G., e dos amigos do polo, que colocavam todos os crimes de corrupção política na conta do Partido X. “Vamos pra rua no dia 13, gente, vamos limpar o Brasil dessa imundície”, conclamava a boleira em seu perfil no Facebook, depois de tornar-se militante do Movimento Brazil Clean. Pior do que a surpresa da notícia da prisão estampada nos sites e na TV foi a decepção com Luiz Octavio. O marido de Trixie era seu amante e, por isso, ironicamente, Cecilinha se sentiu traída.
Para consolar-se, ligou para a própria Trixie, que passava uma temporada em Miami: “Amiga, pelo amor de Deus, me explica o que tá acontecendo!”, pediu. Do outro lado da linha, Trixie estava com os pés apoiados nos joelhos da manicure. Enquanto pensava em que cor de esmalte escolheria, fungou para simular tristeza. Não conseguia sequer decidir se preferia o Rose Taffeta, da Chanel, ou o Heirloom Mix, da Dior. “Ai, Ci, tô destruída! Falei com o Luiz Octavio agora, ele achou melhor eu não voltar pro Brasil. Acabei concordando. Nesse momento eu não vou poder ajudar em nada, só choro (funga).” Assim que desligou o celular, Cecilinha discou para o marido. Queria saber detalhes da Chapisco. Segundo Mario B. G., a operação não passou de “mais um gesto espetaculoso da PF”. Ele explicou para a mulher que, “se os empreiteiros não colaboram com as campanhas políticas, não sobrevivem”, e então Cecilinha suspirou aliviada. B.G. omitiu dela que estava ligado a um esquema de fraude na licitação de merendas escolares, e que ele próprio poderia ser preso. Por meio de um cunhado deputado estadual, sua empresa de fornecimento de kits de alimentos foi favorecida em diversas cidades do estado.
CRISE AGUDA DE ANSIEDADE
“Tô confusa, muito confusa”, repetiu Cecilinha, semanas depois, na festa de aniversário de 8 anos de América, filha de Maria Clara F. de M. América é amiguinha de Giulia e Maria Teresa, as caçulas de Cecilinha e Trixie. Alguns dias antes, as três mães discutiam se deveriam ou não aderir ao boicote à festa de aniversário de Bernardo, 8 anos, filho de um advogado do Partido X. O assunto surgiu em um grupo do WhatsApp formado por mães da escola bilíngue das crianças. “Os pais deveriam escolher uma escola de acordo com a ideologia deles para colocar os filhos”, argumentou Trixie. “Tô confusa!”, tornou Cecilinha. “A América não vai”, decidiu Maria Clara. “Desculpe gente, mas eu não quero minha filha numa festinha produzida com dinheiro roubado.” E para Trixie: “Eu sei o que você está pensando, mas a situação do Luiz Octavio é com-ple-ta-men-te diferente. Ele TEM de pagar esse ‘dízimo’, vamos chamar assim, para as campanhas políticas. O Zeca tava me explicando (Zeca era o marido de Maria Clara, também envolvido na fraude da merenda): se o Luiz Octavio não entrasse nesse esquema, a Lota (empreiteira) seria banida do mercado. Isso já é assim desde o tempo do nosso avô, Ci, a gente não tem culpa! Entendeu? O problema tá lá no início, na colonização. Sério, pensa!”.Mas a boleira já não conseguia se concentrar em nada. Vítima de uma crise aguda de ansiedade, Cecilinha passou a se torturar com questionamentos a respeito do emprego fantasma que o pai de Mario B. G. arranjou para ela, como secretária inexistente de um vereador. O salário era peanuts para o padrão deles, R$ 18 mil (mais tíquete-refeição, férias e 13º), mas pelo menos ela não precisava ficar pedindo dinheiro ao marido para o basicão.
Surpreendida por esse lado questionador, Cecilinha buscou apoio em seu professor de história da política no Solar do Conhecimento. Explicou a ele que estava muito confusa. O professor a chamou para um café, pegou na mão dela e a olhou nos olhos. Quando Cecilinha G. de C. deu por si, estava no Ford Fiesta do professor, quase deitada no banco reclinado, os dois trocando um beijo profundo. Descontrolada, ela saiu do carro batendo porta, abotoando o casaquinho Givenchy, toda borrada de batom. Ligou para Maria Clara, as duas marcaram um encontro. “Sério, Marie, tô confusa. Como é que eu posso participar de um movimento contra a roubalheira nos cofres públicos se eu tô ganhando pra não fazer nada? Eu não tenho moral para criticar o comportamento dos outros! Pensa!” Maria Clara olhou incrédula para ela, jogou o cabelo para trás e falou sério. “Ci, pelo amor de Deus, senta aqui. O que deu em você? Tira essa bobagem da cabeça, amiga, se concentra em Aspen, tá chegando! Pensa no après ski, nas raclettes, na cama maravilhosa do Little Nell…”
ATCHIM!
Naquela semana, veiculou-se com grande alarido que o país seria tomado por uma epidemia do vírus H1N1, causador da gripe suína. Em surto, as mães do grupo de WhatsApp da escola bilíngue reagiram na base do “salve-se quem puder!”. Logo, elas descobriram um posto de vacinação elitizado, nos Jardins, em São Paulo, onde se cobrava R$ 180 a dose. A fila não era grande, só tinha amigas e não havia o risco de esbarrar em infectados anônimos. Chamavam as crianças pelo nome de família: “Os M. A. P., por favor, aqui na frente!”, convocava a enfermeira, impecável em seu uniforme branco; “Agora, os G. de C.!”. Muita gente se arrependeu de ter entrado na fila quando, dias depois, uma “mãe descolada” publicou em seu Instagram que uma clínica estava oferecendo o serviço de vacinação em domicílio: “Essa gripe é coisa séria, gente”, postou a descolada.
Mesmo depois de esguichar um jato de Rivotril embaixo da língua, Cecilinha permanecia transtornada. Ela ouviu de uma amiga alternativa, diretora de arte de uma agência de publicidade dirigida ao público AAA, que seu médico antroposófico desaconselhou a vacinação de quem não estivesse dentro do grupo de risco. Por exemplo, crianças acima dos 5 anos, bem alimentadas e sem histórico de baixa imunidade – caso de Giulia. “Tô confusa”, murmurou Cecilinha, apoiando o queixo e o nariz nas mãos em concha. Maria Clara reagiu categórica: “Eu não vou ficar ouvindo esses malucos! Posso falar? O Chico é médico da América desde que ela nasceu, eu confio super nele. O cara disse: ‘Se você fica mais tranquila, vai lá e vacina’. Gente, desculpe, mas eu prefiro pecar pelo excesso”. E Cecilinha: “Tô muito confusa”. Sua perturbação aumentou quando ela soube que uma pediatra no Rio Grande do Sul deixou de atender a uma criança porque a mãe era do Partido X.
“Alguém me ouve, pelo amor de Deus! Não é possível que vocês não enxerguem o que está acontecendo. Não se trata de ser PX, PY ou PZ. A gente tá vivendo uma situação absurda!”, revoltou-se Cecilinha, com a mão trêmula apoiada na testa, acendendo um cigarro no outro. As mães passaram a se esconder quando ela aparecia. Se Cecilinha chegava em uma roda, logo ficava sozinha. No grupo do WhatsApp, ninguém respondia. Até Trixie e Maria Clara deram um tempo. Passaram a falar mal dela. “Gente, que cabelo desgrenhado é aquele!?”, perguntava Trixie. “E o abrigo, miga, de loja de departamentos? Tri, pelo amor de Deus… Será que a doida virou do PX mesmo?” Cecilinha G. de C. tornou-se aérea, lunática, já não tinha certeza nem dos benefícios da dieta gluten free. A da lactose ela manteve, porque nunca foi de leite mesmo. Agora, passava tardes inteiras com um copo de dry martini na mão, enquanto chorava em frente ao espelho da penteadeira que o decorador garantiu ter arrematado em um leilão de objetos de “um palácio francês demolido”. Todo aquele luxo já não tinha mais a menor importância para Cecilinha. Tudo o que ela conseguia dizer agora era: “Tô confusa”.
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