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Ilustração: Bruna Bertolacini
Ilustração: Bruna Bertolacini
Ilustração: Bruna Bertolacini
Ilustração: Bruna Bertolacini

Ela era bem-nascida, linda, rica, mas levava uma vida tediosa. Seu maior medo era virar uma “peruinha óbvia”. Até que, no dia do casamento, nossa personagem trocou o noivo por uma convidada da festa. Depois de beijá-la, abriu-se para ela um admirável mundo novo (ficção baseada em fatos reais)

Por Paulo Sampaio para J.P de Janeiro de 2017 | Ilustrações Bruna Bertolacini

Fazia algum tempo que a stylist Patrícia de C. Salles* se sentia sufocada por um cotidiano tedioso. Bem-nascida, rica, linda, ela já não via mais graça em coisa alguma. Tinha pena de si mesma: “Uh!”, suspirava, quando seus colegas da Central Saint Martin, de Londres, a definiam como “well dressed” e “well traveled”.  Chegou a matricular-se em um curso de história da arte no MoMA, mas perdeu o voo para Nova York. Descobriu, “em análise”, que aquilo havia sido um ato falho. “Sabe, Ângela”, disse ela à terapeuta, “eu não quero ser apenas mais uma peruinha óbvia.” Ângela piscou seus olhinhos inteligentes, cheios de rímel, e soltou o pensamento do dia: “Isso depende de você”. Orientou Pat a “tentar sair da casca”, “romper com o preestabelecido”. Pat bocejou. Sem ânimo, ela se arrastou até seu Evoque, abriu a porta, sentou-se no banco alto e apoiou a cabeça no volante. Colocou o DVD de Florence no kit multimídia. Tentou chorar. Nada. Embora não tivesse muita importância, ela de vez em quando se lembrava que iria se casar dali a dois meses. Vera Salles, mãe de Patrícia, só pensava na festa. A igreja fora reservada, os convites estavam distribuídos, o cardápio degustado. A wedding planner Elaine Siqueira ligava todos os dias para falar das últimas providências, a embalagem dos bem-casados, as cores das flores, a montagem da pista de dança, o DJ. Apesar de necessário, o noivo era pouco mencionado. Do alto de seus 30 anos de experiência na área, Elaine costumava dizer que amor não é prioridade: “Casamento é companheirismo. O importante é o respeito mútuo”. Patrícia de C. Salles se casaria com o advogado Fábio Saruf, filho do doleiro Josef “Juca” Saruf, que cumpria prisão domiciliar. Para evitar deslocamentos que fizessem a tornozeleira eletrônica apitar, Pá e Fá optaram por receber os convidados na casa de 3 mil m2 de Juca, no Morumbi, zona sul de São Paulo.

Ilustração: Bruna Bertolacini
Ilustração: Bruna Bertolacini

ELEMENTO SURPRESA

Apesar de a noiva dizer que não alimentava grandes expectativas, o casamento mudou sua vida para sempre. Contrariando a mãe, que queria um modelo Sandro Barros, Pat comprou um Valentino anos 1960 em um brechó do Marais, em Paris, e apareceu na cerimônia descalça. Ela era mesmo diferentona, e isso todo mundo já sabia. O que nem ela esperava – e foi o elemento surpresa que a libertou do claustro existencial em que vivia – ocorreu na pista de dança montada sobre a piscina. Até Elaine Siqueira, tonta em seu estupor, precisou se segurar no suporte do toldo. Os noivos dançavam animadamente com um grupo de amigos, quando se aproximou da roda uma garota ruiva, não exatamente bonita, acompanhada de um primo de segundo grau de Fá. O nome dela era Vivian. O dele, Ricardo. Embora não fosse de chamar atenção, Vivian tinha uma personalidade brejeira, alegre, libertária, e acabou se tornando a protagonista da festa. Não é sempre que alguém beija a noiva na boca, sem ser o noivo. Aconteceu assim: numa animada evolução de passinhos, giros, idas e vindas, Vivian envolveu Pat em um abraço que a colou em seu corpo.  Por um momento, todos em volta acharam que o “chega pra cá” fazia parte da algazarra. “KKKKK”, riram alto. Mas, então, diante dos olhares incrédulos de seus amigos de infância e do noivo, Pat correspondeu a um beijo profundo de Vivian.

Enquanto a luz estroboscópica piscava descontroladamente, o DJ Felipinho Biscateli emendou o clássico “Volare”, de Domenico Modugno, com “La Vie en Rose”, na voz de Grace Jones. A primeira reação de Vera Salles, que estava cumprimentando os convidados nas mesas dispostas ao redor da piscina, foi engasgar-se em uma gargalhada descompensada. “Uahaacof-cofuahacof-hu-huh-uó.” Sem saber o protocolo em uma situação daquelas, ela foi atrás de Elaine Siqueira. A wedding planner havia se trancado no lavabo para tomar fôlego. Em surto, Vera socou a porta: “Abre já!”, gritava. “Você viu o desastre? Espero que tenha alguma ideia para abafar isso! Se não, eu cancelo a segunda parcela do pagamento!” Grogue de Rivotril, Elaine passou a implorar aos fotógrafos das colunas sociais que não publicassem aquelas imagens: “Pelo amor de Deus, isso vai ser um escândalo! A Vera está em choque!”. Mas a situação fugiu completamente de controle.

Pat estava no céu: agora, sim, aquele era o dia mais feliz de sua vida! A essa altura, Vivian já afundava a mão na parte de trás da saia ampla do Valentino anos 1960. Sob o efeito de um ecstasy e de muitas doses de champanhe, a noiva pegou Vivian pela mão e a conduziu até o bolo de Isabella Suplicy. Partiu uma fatia grande, tirou-a do prato com a mão e passou esfregar pedaços alternadamente na própria boca e na de Vivian. Fabinho Saruf tentou puxar a ex-futura mulher pelo braço, falando em seu ouvido que ela havia passado dos limites, mas levou vários safanões. Em determinado momento, ela se desequilibrou e caiu sentada. Elaine deu um jeito de colocar um comprimido de Stilnox em sua bebida, e pediu a seu Alberto, o motorista, que a arrastasse até o carro. Pat foi levada para a própria cama, sem o noivo, e, bem, tudo indicava que nunca mais dormiria com ele.

Ilustração: Bruna Bertolacini
Ilustração: Bruna Bertolacini

SONHO MEU    

Naquela noite, a noiva teve um sono agitado, sonhou com uma princesa que beijava um sapo no dia do casamento. Em seu delírio, ela se via como um sapo que vira “sapa”. Acordou depois de fazer xixi na lingerie La Perla, com o rosto molhado de suor, o cabelo todo desmantelado. Embora estivesse confusa, sem se dar conta do que havia acontecido, ela sabia que tinha se casado. Mas tinha mesmo? Checou a hora no relógio da mesa de cabeceira, passava do meio-dia. Levantou-se, foi ao banheiro, entrou debaixo do chuveiro e deixou a água morna cair sobre seu corpo durante 20 minutos. Precisava de um café. Na sala de almoço, Cida, a copeira, contou que Vera tinha sido sedada. Em nenhum momento a noiva amanhecida sentiu remorso. Apesar da ressaca, ela agora despertava para o dia, para o sol, para a vida. Checou o WhatsApp, havia 103 mensagens: as amigas próximas perguntavam o que deu nela; as maldosas se propunham a ajudá-la.  A única mensagem que ela respondeu foi a de Vivian, que a convidava para tomar um drinque logo mais. Vinha com o emoji do diabinho roxo. “Topo”, escreveu, sentindo um arrepio na nuca.

O relacionamento com Vivian não chegou a evoluir para o namoro, mas abriu para ela as portas de um admirável mundo novo. Pat agora era uma “sapatrícia”! Deixou para trás seus amigos do polo do Helvetia, fez uma limpeza em sua agenda do WhatsApp e passou a frequentar festas hipster. Adotou lemas como: “Cada um deve ser o que é! Julgar pela aparência não tem nada a ver!”. Sua nova turma era composta pela galera da arte, a vanguarda da fotografia independente, o povo da moda e “os nada a ver com os outros”. Enfim, gente de atitude. Passou a postar fotos dela mesma pelada, ou pagando peitinho, e imagens conceituais, como de coqueiros contra a luz; rostos pela metade; mãos sobre a areia; e textos estilo os do instapoeta João Doederlein: “lua. é quem o sol pediu em casamento. é decidir nunca se casar (e tudo bem). é dama. é atriz principal. a testemunha do  primeiro beijo de um casal. é quem veste a noite feito um vestido e desfila pela madrugada. é saber dividir o próprio palco. é lua. é luana”. Tomada pelo espírito da transformação, Pat fez uma faxina no closet e passou a vestir peças que davam a ela uma aparência desencanada: misturava H&M e Topshop com sapatões Dr. Martens (não as botas) e camisas clássicas brancas; o corte de cabelo era minimalista, com franja, estilo bonequinho da Lego; ou ondulado curto, tipo  “chanel tropical”.  Para usar a terminologia de sua nova ambiência, a ex-peruinha óbvia transformou-se em uma “gótica suave”.

Em um trabalho cirúrgico, o tatuador Tinico Rosa transformou as estrelinhas que ela tinha no pulso em um “bracelete xavante”. No começo do verão, Pat passou a bater ponto no Lourdes Bar, de frequência artsy.  Enquanto virava uma Catuaba com as amigas, beijava várias. No Carnaval, trocou o bloco Gueri-Gueri pelo Tarado Ni Você.  Apesar do comportamento transgressor, a sapatrícia mantinha alguns cacoetes dos velhos tempos: não conseguia, por exemplo, relaxar em filas – só sossegava quando alguém a colocava para dentro da festa.  Na pista, seu maior orgulho era a convivência com a diversidade! Chegou a engatar com uma lésbica assumida chamada Nana,  muito  popular na cena gay (era guitarrista de banda e promovia a festa “sapa” mais bombada de SP). Recentemente, Pat embarcou para a Califórnia para filmar um documentário sobre as “roller girls”, um time de garotas que jogam uma espécie de futebol sobre patins. Na volta, ficou com um “surfista gostoso” e, graças às descobertas feitas em relação ao próprio corpo, sentiu um prazer inédito. A promessa hétero, porém, ficou por ali. Para a verdadeira sapatrícia, liberdade é tudo!

P.S.: Embora tenha recuperado a autoestima, Vera ainda chora pelos cantos da casa e vive a poder de calmante.

*os nomes citados acima são fictícios

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