O teatro brasileiro está em luto. Morreu no final dessa quinta-feira, Antunes Filho. O diretor teatral estava internado há cerca de duas semanas no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde se tratava de um câncer no pulmão e não resistiu.
Antunes era paulistano do Bixiga, chegou a cursar Direito, mas se apaixonou pelos palcos e, em 1952, se tornou assistente de direção do Teatro Brasileiro de Comédia. O primeiro grande destaque de sua carreira foi a montagem de “Macunaíma”, baseada na obra de Mário de Adrade, em 1978. Depois desse período vieram outros grandes feitos como a criação do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), e da companhia Pequeno Teatro de Comédia. Além da produção e direção de filmes como “Compasso de espera”, em 1973, que abordava o racismo e direção de peças escritas por Nelson Rodrigues e William Shakespeare. A montagem de “Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse”, escrita por Jean-Luc Lagarce, foi seu último trabalho, realizado em 2018. Glamurama lamenta!
Por aqui, relembramos a entrevista de Antunes Filho para a revista Moda, em 2010. Sempre um ensinamento.
Antunes Filho, na primeira fila
O diretor de teatro, que ganhou o mundo valorizando autores brasileiros, aceitou o desafio de analisar o mundo da moda… E dos modismos!
por zeca gutierres fotos mário daloia
Cercado de jovens no Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, em São Paulo – de assistentes pessoais ao assessor de imprensa, passando por dezenas de alunos espalhados pelo chão da sala de ensaio – Antunes Filho, 80 recebeu a revista MODA meio assim, mal-humorado… Mas a máscara começou a cair por conta dos próprios discípulos: eles riam de canto com a insistência dele em falar: “Não entendo nada de moda. Por que querem me entrevistar sobre moda?”. Antunes aceitou fazer o “homem sério” para a câmera fotográfica, mas azedou no terceiro clique. Parou tudo e quis mudar de sala. Um dos assistentes, então, fechou parcialmente a cortina para deixá-lo à vontade. “Já disse, não sei nada de moda. Sei de teatro.” Sim, mas logo que foi sugerido dar início à entrevista pela arte que fez dele uma referência no país e no exterior, o diretor entrou logo com esta: “Nada disso! Nada disso! Vamos começar com moda!”.
Nesta entrevista, Antunes Filho, crítico ferrenho do consumismo, mostra uma visão positiva dos desfiles de moda, “ele é movimento e a vida é feita de movimentos”, mas desce a lenha nos excessos de quem se perde nos modismos.
Desconectado de tudo que envolve tecnologia, “não tenho Twitter, nem sei direito o que é isso”, o diretor de Macunaíma, peça que foi o divisor de águas no país ao valorizar autores nacionais, quer que os jovens descubram o Brasil. “Paraque tenham livre-arbítrio de verdade.”
moda: O senhor gosta de desfiles de moda?
antunes filho: O que sei de moda… Podem ser as
coisas mais controvertidas, talvez impressões perdidas aqui e acolá… Primeiramente, moda é sempre um evento e eu aprecio bons eventos. Gosto do movimento dos desfiles. As cores, as linhas. Ele é a criação de tudo. A criatividade está no movimento. O que dá vida ao universo
é o movimento. O que dá vida a nós é ele. E como
os desfiles de moda precisam de elementos insólitos, eles carregam originalidade. E essa originalidade me interessa, por curiosidade.
moda: E a moda de vestir?
af: Vejo a moda como uma maneira, uma manifestação, de ser agradável aos outros. De ser plausível aos outros…
Moda é uma saudação. O asseio é o primeiro item da moda. Depois vem o que você coloca nela: as cores, as linhas. A moda é o “bom dia”, é o “como vai?”
moda: Há preferidos na moda?
af: Aprecio muito a moda feminina. Gostava muito de Courrèges, daquele processo dinâmico, daquelas “Barbarellas” dos anos 60. Tenho pra mim que a moda é absolutamente feminina. Eu gosto de ver a mulher na moda.
Claro, aprecio o homem bem vestido, o viço da natureza…E a natureza precisa ser representada. No caso da moda, pelas linhas e pelas cores. Vejo a moda como uma criança brincando com linhas e cores, mas também com a libido ligada. A moda é um pouco a sacanagem interior. A roupa tem uma provocação libidinosa e, ao mesmo tempo, aprazível. É como um perfume que não está, mas que você sente. Ela p rovoca a sexualidade.
moda: Mais ainda a moda brasileira, certo?
af: Mesmo a moda europeia inspira sexualidade. Até as apresentações europeias, mais gélidas, têm uma alta sensualidade. Ela é mais acobertada, de certa maneira. É mais sofisticada. O brasileiro é mais tropical, né? Ele bota mais para quebrar (risos). Veja o sabor de Greta Garbo, por exemplo. E quem não aprecia a divindade de uma Greta Garbo?
moda: Alguma crítica à moda?
af: A moda faz parte dessa sociedade em que estamos vivendo, a de hiper-realidade. Ela nos ilude de diversas maneiras. Veja bem: não posso ficar trabalhando 30 horas sem parar… Preciso de suflê também, do couvert, da sobremesa. E a moda é, na vida, esse sentido de suflê, de descontração. E desse estimulo à libido. A libido te impulsiona. Ela também tem a ver com a criação. Ela te estimula, assim como a moda, que nos apimenta. Ao mesmo também, a moda carrega rituais: esse cheiro de coisas esotéricas, esses brancos perdidos na planície, essas coisas desérticas com movimento. A moda tem a ver com a miragem. É isso que eu queria falar sobre ela.
moda: Como leva isso tudo para o figurino de seus
espetáculos?
af: Como te disse: como uma criança libidinosa. O encantamento da criança brincando com as linhas. É
fundamental esse apetite à vida, à animalidade superior, que te impulsiona, que põe o seu leão para funcionar.
Levo ao teatro esse movimento de originalidade, de caracteres que é a moda.
moda: O nu é a roupa em alguns de seus espetáculos?
af: Sim! Uso muito o nu nesse sentido. Não pelo lado pornográfico, bobo. Sempre que eu coloco o nu no palco é porque ele tem alguma coisa meio de ritualístico. Para mim, ele tem alguma coisa bíblica, o paraíso perdido.
moda: O senhor usa muito preto em seus espetáculos. Por quê?
af: Uso quando são espetáculos que falam de um sentimento de moral. Medeia, por exemplo, falava de uma vingança.
Quando eu a fiz aqui, associei a personagem à vingança da mãe natureza. É o que estamos vivendo hoje. Ela está matando os próprios filhos. São tantos desastres acontecendo…Medeia para mim é o símbolo da natureza. Está se vingando das ações nefastas do homem. E o preto ajuda nesse sentido. Não tem cor: tem de ser branco e preto mesmo. Não tem respiro para falar desses assuntos. Tem de ser fechado. Não há cor para não haver respiro. A ideia é aprisionar a plateia no espetáculo, naquela tragédia que é a mãe matando o filho. As cores dão ponto de fuga, respiração visual.
moda: Então, a cor desvia o homem?
af: Se você está no branco e preto, está prisioneiro. Está asfixiado. Quando põe cor, dá liga, dá em orgia (risos)… Aí
você se perde na orgia. A moda em branco e preto é mais eclesiástica. Em certo sentido, entra para o sacerdócio.
Enquanto que, com cores, vamos a outras paisagens.
moda: Aliás, por que os gregos escreviam tantas tragédias?
af: Porque estavam discutindo a moral, o comportamento, a ética. Discutindo o pensamento humano a respeito das ações. Eles tentavam discutir tudo. Era importante que se discutisse o homem, o papel dele e de suas ações em
relação aos outros homens. É a democracia grega.
moda: A moda aliena?
af: É sempre encantador estar bem vestido. A moda é uma alienação encantadora. Eu adoro esse tipo de alienação
nas horas vagas, quando quero ver desfiles, quero tomar meu uísque, sabe? Mas, veja bem: não penso nem um
pouco em roupa. Gosto de ficar bem à vontade. Camiseta, camisa por cima, bem assim como estou hoje… Se me vestir muito bem eu me sinto mal (risos). Com gravata me sinto muito mal, sufocado. Ela me enforca. Gosto de ver os outros bem vestidos. Ah, sim, mas quando é superbem vestido não gosto, não. Eu prefiro mais quando se está mal vestido. Tenho medo, por exemplo, de “perua”. As “peruas” me assustam. Elas são excessivamente vestidas e aquilo fica um filme de horror japonês (risos). Eu acho que, com a idade, temos de simplificar, a tender para o branco. Ser mais monocromático, entende? A juventude vai bem com o colorido. Quando você vê aquelas pessoas mais velhas cheias de cores é estranho. Sim, e há também os “perus” (risos)…
moda: Mais alguma coisa lhe desagrada nos modismos?
af: Por exemplo: a pior coisa da moda é a plástica. É quando a pessoa se esforça demais para ser agradável aos outros e ser agradável a si mesmo. Tudo para fazer parte de uma roda social. Por outro lado, estar bem vestido é uma
questão de civilidade. Não estou dizendo para se estar superchique, mas a gente tem de estar limpinho, bem arrumadinho…Pode ser perua, mas com “it”, com charme…Tem até aqueles que fazem o sujinho charmoso (risos). É um estilo que a gente vê bastante por aí…
moda: O que ainda falta para o senhor fazer na vida?
af: Viver muito mais. Quero participar da festa até o limite. Gostaria de ser um dos últimos a sair. Assim como antigamente, quando eu era moleque. Era o último a sair das festas, dos restaurantes. Então quero ser o último a sair do mundo. Quero permanecer nesta festa.
moda: Além de Greta Garbo, mais alguma mulher inspira o senhor?
af: Louise Brooks, a mais linda de todos os tempos!
moda: O que o teatro novo está discutindo?
af: Está discutindo o próprio teatro e a própria civilização. A sociedade que estamos vivendo.
moda: Qual a principal função do teatro?
af: Ele tem de estar permanentemente se autoanalisando e analisando a sociedade. O ponto de análise da
sociedade tem de ser também o do teatro. Estamos vivendo em uma sociedade de consumo violento, vivendo a hiper-realidade. É uma forma de alienação. Por outro lado, vivemos uma era de acesso cultural, social. Mas o governo dorme e faz um desserviço na área cultural. Uma coisa importante no teatro atualmente é que ele discute esses avanços sociais que estamos vivendo. E temos de discutir a contramão que está havendo entre o avanço e a falta de cultura no Brasil. E é por isso que eu me dedico a levantar a cultura neste país. Levantar, inclusive, autores nacionais que pouquíssimas pessoas conhecem. Como ficar desconhecendo Lima Barreto (de Triste Fim de Policarpo Quaresma)? À medida que você consegue produzir Nelson Rodrigues, Macunaíma e ainda assim fazendo o público entender, isso é ótimo. Estou fazendo um trabalho revolucionário, porque no Brasil não se fala muito em cultura. Está se falando em avanço social, mas é só aparência. Se há avanço social, mas não há cultura, o efeito é de bumerangue.
moda: Uma luta difícil…
af: Claro. Tentamos levar as pessoas ao teatro, mas elas não têm cultura. A maioria, os novos acessados, até
gosta do teatro; mas eles estão ali pelo direito de estar no teatro, só que lhes falta cultura. Aplaudem, mas não estão entendendo o encadeamento. Não sabem o que está sendo discutido exatamente. Temos de dar uma base sólida cultural. Em uma sociedade de consumo, as pessoas compram, compram… Parece índio que se encanta com coisas que brilham. E aí voltamos à cor, que é um estímulo, que pode levar a todos os cantos: para fazer coisas úteis ou
para as inutilidades. Não estou falando de alienação política, nem é o caso. É, antes de tudo, a alienação do homem diante da realidade. Porque vive na sociedade do espetáculo. Então o teatro cumpre esse dever de dar consciência ao homem. Ele é levado, por enquanto. Ele pensa que tem livre-arbítrio. E acabou, chega de entrevista!!!
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