Em 1982, um jovem Donald Trump de 36 anos começou o que se tornaria um esforço anual – fazer lobby junto à revista americana Forbes para tentar convencer a publicação especializada em economia e negócios que merecia figurar mais próximo do topo em sua renomada lista dos 400 americanos mais ricos, conhecida simplesmente como “Forbes 400”. Naquele ano, o magnata do setor imobiliário estreou no ranking junto com seu pai, Fred, ambos com um patrimônio combinado então estimado em US$ 200 milhões (aproximadamente R$ 1 bilhão, ou R$ 3,2 bilhões atualizados). Apesar de ser o maior fã do patriarca da família Trump, morto em 1999 e fundador do império que eventualmente passou a ser tocado pelo filho mais famoso, aquele que viria a se tornar o 45º presidente dos Estados Unidos, hoje com 77 anos, tinha ambições de ser listado sozinho.
Alguns anos adiante, em 1989, Trump enviou uma declaração à Forbes, afirmando ter, sozinho, um patrimônio líquido de US$ 3,7 bilhões (R$ 18,7 bilhões, ou cerca de R$ 46,5 bilhões atuais). Isso marcou o início de um ritual anual que perdura desde então, e um em que Trump protesta ou sua omissão da lista – como nos casos de seus três episódios de falência – ou reclama de subestimações ou cálculos excessivamente conservadores que resultam em estimativas cujos valores, em sua opinião, não refletem o verdadeiro tamanho de sua riqueza.
Um episódio notável ocorreu em junho de 2015, quando Trump afirmou que sua fortuna, na época calculada pela Forbes em US$ 4,1 bilhões (R$ 20,7 bilhões), era pelo menos US$ 8,7 bilhões (R$ 43,9 bilhões). Aí incluindo US$ 2 bilhões (R$ 10,1 bilhões) em empreendimentos turísticos como resorts de luxo, e outros US$ 3,3 bilhões (R$ 16,7 bilhões) atribuídos à “marca Trump”. Avançando para 2023, em meio a tensões crescentes no sul de Israel provocadas pelo Hamas – um problema regional que ameaça se tornar uma crise global – Trump se vê envolvido novamente em uma disputa acirrada envolvendo suas finanças.
Dessa vez, o conflito surgiu da decisão da Forbes de excluí-lo da nova edição da “Forbes 400”, divulgada na semana passada. O tíquete mínimo de entrada no clube dos bilhões dos quatrocentões americanos nesse ano subiu para US$ 2,9 bilhões (R$ 14,6 bilhões) dos US$ 2,7 bilhões (R$ 13,6 bilhões) de 2022. Portanto, quem tem menos que a mais dessas duas cifras continua sendo bilionário – mas não quatrocentista o suficiente para pertencer a esse nicho da elite americana, uma espécie de ‘quem é quem’ lá na ponta da pirâmide. Trump, que a revista estima possuir US$ 2,6 bilhões (R$ 13,1 bilhões), agora aparece apenas na lista geral como os maiores bilionários do mundo, na posição de número 1.217, e entre 2.640 desses abonados. E isso realmente o enfureceu.
Na mesma segunda-feira (09) tensa na Faixa de Gaza, o político usou sua rede social Truth Social, versão do X que lançou em fevereiro do ano passado, a fim de expressar seu descontentamento. Proclamou que a Forbes “perdeu grande parte de sua relevância há muito tempo” e que sabe tanto a seu respeito “quanto Stormy Daniels e Rosie O’Donnell” – a primeira sendo a primeira sendo a atriz da indústria de entretenimento adulto que o levará ao banco dos réus no começo de 2024, e a outra a comediante e apresentadora de televisão americana – ambas suas rivais de sagas históricas do passado.
Na mesma edição da “Forbes 400” que divulgou – curiosamente – exatamente na segunda anterior (03), a revista explicou que a fortuna de Trump encolheu US$ 600 milhões (R$ 3 bilhões) nos últimos doze meses em razão da situação atual difícil pela qual passa a Trump Organization, a holding que controla os negócios dele, o “o tornou pobre demais para ser figurado na seleção“. Porém, acima de tudo foi a primeira investida de Trump nas redes sociais, e uma que ainda não mostrou a que veio e consumiu quase US$ 200 milhões (R$ 1 bilhão) em investimentos, que mais contribuiu para a queda.
A plataforma, que Trump uma vez vislumbrou como o ringue digital perfeito para brigar de igual para igual com a Meta Platforms (outra rival histórica), sofreu uma desvalorização significativa. Praticamente sem dinheiro em caixa e bem atrás da concorrência, estacionada nos 6,5 milhões de seguidores desde seu advento, esse revés da Truth Social depois de um começo até promissor fez com que a participação de 90% de Trump na empresa que a controla cair de US$ 730 milhões (R$ 3,7 bilhões) para menos de US$ 100 milhões no momento (R$ 505 milhões). Mas pode voltar a atingir ou até mesmo superar o valor de mercado que teve no auge, vale lembrar. Inclusive o de US$ 22 bilhões (R$ 111,1 bilhões) que seu acionista majoritário declarou como fato já nos primeiros dias de funcionamento da rede, e não como um objetivo em vista ou uma estimativa de projeção.
O debate em torno da fortuna de Trump deverá ser mais frequente daqui pra frente. Em setembro de 2022, a procuradora-geral de Nova York Letitia James o acusou de deturpar os valores de seus ativos, em seguida sendo corroborada por uma surpreendente decisão do Supremo Tribunal do estado americano, que constatou existirem evidências de que o ex-morador da Casa Branca por ter usado uma tática legal, mas arriscadíssima por causa justamente do potencial que tem para ‘disfarçar’ dados em balanços, sem querer apagando a linha que define o limite da legalidade. Conhecida como pena de morte corporativa, a manobra é uma dissolução judicial forçada por uma própria corporação para fins estratégicos, e a Justiça americana acredita que Trump pode tê-la usado para cometer fraudes por anos.
Dúvidas sobre a integridade financeira de Trump vêm de longa data. Grande parte dessa fortuna em declínio está atrelada ao mercado imobiliário da Big Apple, que passa por uma fase ruim devido ao aumento das taxas de juros. Além disso, seus empreendimentos e imobiliários de alto padrão não tiveram bom desempenho. A marca que ele afirma valer bilhões, e que dá a entender ser sua personificação comercial (pelo CPF, por assim dizer), na verdade, não existe. Trump tem utilizado amplamente seu nome como uma marca, especialmente em imóveis comerciais, contratos de entretenimento e outras iniciativas. Ao longo dos anos, a marca Trump apareceu em fachadas de hotéis, campos de golfe, cassinos, perfumes, linhas de roupas e até deu nome a uma companhia aérea.
Fundada em 1959 por Elizabeth e Fred, a The Trump Organization, que gere os interesses econômicos dos Trumps, detém inúmeras marcas relacionadas ao ao sobrenome do clã. Essas marcas protegem o uso desse sobrenome em diversos setores e indústrias, permitindo que a holding (o CNPJ, portanto) a licencie para outras entidades. Por exemplo, dos arranha-céus nos EUA e no resto do mundo com um “Trump” em dourado cintilante na fachada, nem todos são de propriedade da Trump Organization. Muitos têm acordos de licenciamento nos quais os desenvolvedores de propriedades pagam pelo direito de usar a marca “Trump”, capitalizando sua associação com luxo e prestígio. Como no caso da Trump Tower, erguida em 1982. Avaliada entre US$ 600 milhões (R$ 3 bilhões) e US$ 800 milhões (R$ 4 bilhões), a torre que é uma das mais fotografadas de Manhattan nunca foi 100% de Trump, dono de parte de seus espaços comerciais e da cobertura do prédio de 58 andares, e somando tudo isso a fatia dele gira em torno de US$ 200 milhões (R$ 1 bilhão), de acordo com a Forbes, mas esse número pode ter sido inflacionado, suspeita a procuradora-geral James.
Quanto à distinção pessoal vs. corporativa, ou CPF vs. CNPJ, a marca Trump, enquanto marca que realmente existe, é gerida e protegida por entidades corporativas por meio de outras marcas registradas e acordos de licenciamento. Ainda que intrinsecamente ligada à persona de Trump, legalmente, é a organização que gerencia e monetiza o nome como uma marca. E a maioria dos ativos imobiliários majoritariamente pertencentes à organização são empreitadas valiosíssimas que hoje estão nas mãos do atual patriarca dos Trumps, mas foram empreendidas pelo anterior, pai dele. Ou seja: de um jeito ou de outro, o antecessor de Joe Biden ainda não conseguiu o brilho solo que busca desde 1982. E mesmo morto e quase relegado pela história, o velho Fred continua e eternamente deverá ser a sombra mais inalienável em frente ao herdeiro.
No espelho do legado: O desafio invisível de Trump no horizonte
A psique humana do vínculo-pai filho pode ser uma das mais complexas e reveladoras. Freud, em sua teoria do complexo de Édipo, sugere que os filhos, em um estágio do desenvolvimento, podem experimentar sentimentos de rivalidade em relação ao genitor do mesmo sexo, conduzindo a um desejo inconsciente de superar ou eclipsar seu legado. Essa competição latente, ainda que muitas vezes não reconhecida, pode motivar um filho a buscar distinção, impulsionado pela necessidade de se afirmar contra a sombra imponente do pai. Mesmo em sua ausência, o legado do pai pode se tornar uma constante comparação, um padrão a ser superado, um desafio que o filho sente que precisa enfrentar para estabelecer sua própria identidade e valor.
Ou talvez não. Em palcos onde os protagonistas parecem mais cativados pelo brilho dos holofotes do que pela substância de suas ações, e onde o poder das sombras é tão forte que quase os cega, surge um aspecto diferente. Em cenários onde o amor e o respeito floresceram, o anseio de um filho para superar o legado do pai pode ser impulsionado não pela competição, mas pela profunda admiração. Aqui, o filho não busca ofuscar, mas homenagear – uma ode ao pai que ele tanto venerava. A sombra do legado paterno não age como barreira, mas como um lembrete da profundidade da influência do pai. Movido por um amor genuíno, o filho aspira não só a continuar, mas a elevar esse legado. Entretanto, esse amor, em certos momentos, pode também ser pelo brilho sedutor da fama, do dinheiro e do poder que, quando intensos o suficiente, mantêm certos segredos convenientemente ocultos na penumbra.
O pai da psicanálise, aliás, também explicaria porque alguns bilionários dos EUA prezam tanto por suas aparições na “Forbes 400”. Um equivalente da listagem do século 19 ilustra bem isso: o “Social Register”, índice semianual que virou hit na Era Dourada, quando o dinheiro velho começou a brigar com o dinheiro novo. Muito mais do que uma simples lista de nomes de gente rica, era um manifesto detalhado da elite americana. Estar nele não apenas autenticava a posição social de uma pessoa, mas abria portas, tanto literal quanto figurativamente. Quem conquistava tal feito não apenas ganhava o prestígio e o acesso aos grandes salões, mas também se beneficiavam das oportunidades sutis e explícitas que vinham com o upgrade. Também uma chave para círculos exclusivos onde grandes negócios eram fechados em pomposos escritórios residenciais, alianças estratégicas eram formadas e, às vezes, casamentos eram arranjados, muitas vezes para consolidar fortunas ou, em alguns casos, resgatar famílias tradicionais que haviam perdido tudo, restando o pedigree nominal como seu último ativo valioso.
Em psicologia social, o conceito de “percepção de status” aborda isso como um outro conceito, o dos “sinais sociais”. A percepção de status se refere à avaliação, muitas vezes automática e inconsciente, que se faz da posição de alguém na hierarquia social ou corporativa. São pistas ou símbolos que as pessoas usam para transmitir informações sobre si mesmas, como riqueza, competência, afiliação ou disponibilidade.
Ser excluído do “Social Register”, que ditava quem importava em um momento em que fortunas estavam nascendo de outras, poderia ser equivalente a um rebaixamento social, e indicação de que alguém havia, de alguma forma, caído em desgraça ou não se encaixava mais nos padrões exigentes do high society da ocasião. Se é ou não o caso de Trump, mas certas feridas no ego vão além da mera vaidade e custam caro. E doem menos na ribalta, já que são sensíveis à luz.
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