O ex-ministro da Fazenda de Itamar Franco almoça com PODER e não se furta a falar abertamente das polêmicas do passado, de sua trajetória política nem sobre os recentes embates que tem tido com o PT na imprensa
por Fábio Dutra para revista PODER de novembro
O Plano Real começava a ser implantado. O presidente do Brasil era Itamar Franco e o ministro da Fazenda que preparou o plano, Fernando Henrique Cardoso, havia saído do governo para se candidatar à Presidência em outubro de 1994. Coube a Rubens Ricupero assumir a pasta e garantir que todas as medidas previstas pelos economistas que idealizaram a estabilização fossem cumpridas e que a população apoiasse o plano. Ele foi à luta, defendeu o governo, explicou às pessoas como se daria a conversão da moeda, apareceu em todas as publicações, programas de televisão e de rádio que conseguiu e garantiu que as coisas andassem. O empenho foi tal que lhe rendeu o apelido, dado por Itamar, de “Sacerdote do Real”. Em 1º de setembro de 1994 não foi diferente. Ele deu 23 entrevistas para diversos veículos para afirmar que as coisas iam bem e estava tudo sob controle – os índices de inflação do primeiro mês após o início do plano foram o dobro do esperado e na semana seguinte seriam divulgados os números do segundo mês. O clima no país era de apreensão já que os seis planos anteriores fracassaram e o país não conseguira vencer a inflação desde o cruzado, a primeira tentativa, em 1986. A vigésima terceira sabatina seria no Jornal da Globo, ao vivo. O repórter, Carlos Monforte, era casado com uma prima de Ricupero e os dois tinham alguma intimidade. Enquanto os técnicos testavam a transmissão (naquela época, alugava-se da Embratel um canal via satélite para esses testes que as parabólicas conseguiam captar), eles conversavam informalmente. O ministro reclamou das estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “um covil do PT”, chamou empresários de “bandidos” que poderiam tentar sabotar o plano e, ao falar sobre os dados da economia, soltou a frase que ficaria para sempre associada a seu nome: “Eu não tenho escrúpulos: o que é bom a gente fatura; o que é ruim a gente esconde”. O escárnio público foi tamanho que uma de suas filhas radicou-se na França desde então.
Chegamos para almoçar com o ex-ministro no Rodeio do Shopping Iguatemi, em São Paulo. O “escândalo da parabólica” estava entre as perguntas que deveriam ser feitas, mas temíamos incomodar esse senhor de 77 anos com o tema que tanto o assombrou nas últimas duas décadas. Nada disso: simpático, ele narrou toda a sua trajetória de forma linear, sem interrupções, e, ao chegar naquele episódio, contou sua queda tranquilamente, em detalhes, fazendo severa autocrítica: “Não posso me dizer perseguido por ninguém, a culpa ali foi toda minha. Eu mesmo pedi demissão no dia seguinte pela manhã, antes mesmo de o presidente ter assistido, ele até achou que eu estaria exagerando. Eu estava cansado. E ali entrou a vaidade, uma porção de coisas. Como diria a boneca Emília [personagem de Monteiro Lobato], eu abri a torneirinha de asneiras”, resigna-se ele, que só não perdoa o PT: “Eles trituraram minha vida, fizeram isso com muita gente. A eleição da Dilma é desastrosa, vamos num caminho terrível. Reservo a eles aqueles versos do samba de Cartola: ‘Herdarão o cinismo e acabarão por resvalar no abismo que cavaram em seus pés’”.
NO OLHO DO FURACÃO
Rubens Ricupero cumprimenta todos os presentes com imensa cordialidade, criando uma intimidade sem nenhuma timidez inicial, puxando assunto, de uma maneira que só os que já passaram de certa idade conseguem fazer. Os ombros um pouco baixos quando ele se levanta entregam um pouco o avançar do tempo, mas a vitalidade com que fala, em português antigo, como o dos radialistas da velha guarda, e gesticula são de um homem que ainda se mantém de pé na arena do debate público. Sentamos na mesa, ele empunhando o suco de tomate que pediu na espera, e fomos às bebidas. Água com gás é a pedida dele, que desiste da opção anterior. O professor Ricupero, diplomata de carreira aposentado e diretor do curso de economia da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo, pergunta como funciona a entrevista. Ciente de que se trata de uma conversa informal focada em sua trajetória, dispara a falar. Com exceção de breves interrupções e questionamentos, ele seguirá nesse ritmo, elencando diversos fatos históricos que presenciou – sempre de forma linear e em ordem cronológica, citando o maior número de nomes famosos possível.
Nascido no Brás – fato que não se cansará de repetir, garantindo que saiu da cidade de São Paulo aos 21 anos e não conhece mais nada além da região central antiga, hoje “deteriorada” – em uma família de italianos, conseguiu entrar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. “Eu não seria um bom advogado, já que passava a maior parte do tempo na biblioteca lendo periódicos franceses de arte e literatura que a instituição assinava”, ri, ao se lembrar dessa época. “Um amigo que estava um pouco à frente na faculdade me disse que prestaria o concurso do Itamaraty. Nunca tinha ouvido falar de lá e fui pesquisar. Aprovado, ele me mandou cartas explicando melhor e me enviando a prova que havia feito. Vi que era difícil, mas não impossível e me pus a estudar. Eu entrava na Biblioteca Mário de Andrade quando abria e só saía à meia-noite, quando fechava. Nunca estudei tanto, mas fui aprovado em primeiro lugar. E também fui o melhor da minha turma no curso do Instituto Rio Branco”, relembra, orgulhoso.
Uma vez aprovado, era necessário esperar muito tempo por promoções demoradas. Mas Brasília havia sido construída e os postos lá não eram nada disputados, já que a sede do Itamaraty continuava no Rio de Janeiro – só foi transferida em 1972. O ano era 1961 e a chance de ocupar um cargo melhor, com melhor remuneração e direito à moradia e outros benefícios, levou o jovem Ricupero, ansioso por ter condições financeiras de se casar com a noiva Marisa (sua mulher até hoje, com quem tem quatro filhos), a se candidatar. O ministro das Relações Exteriores era San Tiago Dantas. O primeiro-ministro, Tancredo Neves. Responsável por fazer a comunicação burocrática entre o ministério e o poder central, o embaixador viu de tudo, além de ficar próximo de Tancredo e San Tiago – e, alegadamente, de todas as figuras históricas que cruzaram sua vida, e não foram poucas. Dessa época, ele, que acompanhou tudo por dentro, leva a lição da clarividência e do equilíbrio de San Tiago Dantas, um dos primeiros a vislumbrar a crise institucional que levaria ao golpe de 1964 e diligente em tentar evitá-lo, mesmo já bem doente. “Ele deveria ter sido o primeiro-ministro quando Tancredo saiu. Assim como Jango deveria ter ouvido seus conselhos, como o de não participar do comício da Central do Brasil para não acirrar os ânimos. Ainda bem que não viveu para ver os militares no poder, que ele bem anteviu que ficariam por muitos anos”, defende. Entre uma cenoura e outra, até que quase acabasse com todas do couvert, o professor, que disse comer muito pouco, segue seu raciocínio.
MUDA BRASIL
Durante a ditadura, Ricupero preferiu servir fora do Brasil, achava que não era o caso de estar aqui para ver o absurdo autoritário em que o Brasil havia se transformado. Voltou no governo Ernesto Geisel (1974-1979), “quando tudo já era mais ameno, começava a abertura”. Nessa época se reaproximou dos velhos contatos políticos. Quando Tancredo Neves começou sua bem-sucedida trajetória rumo ao posto de primeiro presidente civil após o golpe, lembrou-se de Ricupero para assessorá-lo em assuntos internacionais. Inclusive viajou pelo mundo na comitiva que Tancredo levou para visitar vários chefes de Estado depois de eleito. Foi herdado por José Sarney, de quem foi assessor especial. Foi Sarney, aliás, quem se lembrou de Ricupero para a Fazenda quando Itamar procurava um bom nome. Ele não aceitou o primeiro convite, anterior a FHC. “Eu não tinha a menor condição, teria caído, como caíram tantos”, explica. Chega o bife de tira acompanhado de farofa e vinagrete. Acabou convidado para o recém-criado Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal por sua experiência com a região no governo Geisel. Foi de lá que ele saiu, convocado para a Fazenda, destinado a lançar um plano que mudaria a história do Brasil. O acaso havia dado a ele a oportunidade de virar protagonista, chance que ele rasgaria mais tarde. Extremamente estigmatizado depois do “escândalo da parabólica”, aceitou um cargo na Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad) da ONU e passa anos longe do Brasil.
Aposentado, Ricupero voltou à cidade em que nasceu em 2005, dessa vez vivendo em Higienópolis, onde sempre vê “o Fernando”. Tornou-se professor da Faap e sua participação na vida pública se resume a artigos polêmicos publicados na imprensa. Recentemente, na Folha de S.Paulo, alertou sobre o desmonte das estatais e a crise imposta ao BNDES pelo aparelhamento do banco pelo PT. A cúpula rebateu o texto defendendo os bons números da instituição e ressaltando a taxa de 0,7% de inadimplência, a menor do sistema financeiro nacional. Ricupero respondeu na Folha que estava falando sobre rumos do direcionamento político do BNDES que afetariam o futuro. No almoço, reclamou que as estatais estão sucateadas e aparelhadas, mas disse que o banco não é dos piores, “até porque o Luciano Coutinho (presidente do BNDES) é figura que respeito muito, sério e competente”. Ele toma apressadamente o café e se dirige à saída do restaurante que não conhecia – “eu saí de São Paulo muito novo, só conheço o Brás”. Uma consulta médica de rotina no Sírio-Libanês está marcada para dali a meia hora e o embaixador, como manda o protocolo, não quer se atrasar.
Picapau amarelo
Não foi só a boneca Emília, ao explicar sua verborragia, que Ricupero citou. Ele é tão aficionado pela obra de Monteiro Lobato que cogitou tornar-se engenheiro de minas após ler O Poço do Visconde. Só foi dissuadido às vésperas do exame vestibular depois de passar por uma sessão de orientação vocacional. O jovem Ricupero, inclusive, é uma das poucas pessoas ainda vivas que foi ao velório de Lobato, acompanhando todo o trajeto do cortejo fúnebre desde a Biblioteca Municipal até o enterro no Cemitério da Consolação.
Raposinha
Eleitor assumido de Aécio Neves, Ricupero conta que o conheceu muito jovem, durante a campanha presidencial de Tancredo Neves. Aécio também integrou a comitiva que viajou pelo mundo com o recém-eleito Tancredo. Dessa época, ele lembra ter notado a extrema habilidade do mineiro no trato: “O presidente Mitterrand, da França, fez um convite para irmos à sua casa de veraneio, no sul do país. Enviou um jatinho para nos buscar, mas não havia lugar para todos. Coube a Aécio avisar a mim e a outros que tinham papéis de menor importância que não poderíamos viajar. Ele o fez de forma tão suave que quase agradecemos a ele por não ir”, lembra, sorrindo, o ex-ministro.
À moda antiga
Marcar o almoço com o professor Ricupero não foi tarefa difícil, mas um pouco trabalhosa, sem dúvida. Tradicional, ele não tem telefone celular e só utiliza e-mails no horário comercial. Em meio à conversa, entretanto, ele se esqueceu o nome da atriz de Hollywood que hospedou quando foi embaixador em Washington, nos Estados Unidos. Não teve dúvida: pediu um celular emprestado para perguntar à mulher, Marisa – Ricupero demonstrou extrema intimidade com o aparelho –, o nome da atriz (e cantora): Shirley MacLaine.
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