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Mario Sergio Cortella é filósofo, doutor em educação, professor aposentado da  PUC-SP e autor de diversos livros sobre ética

por Fábio Dutra fotos Alexandre Makhlouf

“Como o Washington Olivetto disse certa vez, não frequento restaurantes em que a comida vem crua e o guardanapo, cozido”, ri Mario Sergio Cortella ao explicar que não come sushis e sashimis por conta da alergia a iodo que afasta de sua mesa frutos do mar e algumas espécies de peixe. Em seguida, antes mesmo de fazer uma pausa para respirar, ele faz questão de corrigir um possível equívoco na citação, “não tenho certeza se a frase é do Washington, mas ele costuma usar”, um claro cacoete de acadêmico do primeiro time. A reportagem, um tanto constrangida, pede desculpas por ter escolhido um restaurante japonês para o almoço, mas recebe, aliviada, um pronto desagravo: “Eu adoro comida japonesa, a diferença é que peço gyozas e tempurás, enfim, o que as pessoas costumam comer de entrada. Antecipar a vocês minha restrição alimentar iria causar um desconforto desnecessário”. Uma atitude ética, opina a reportagem, no que ele consente. Filósofo, doutor em educação, professor aposentado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor de diversos livros sobre ética, inclusive o recente Ética e Vergonha na Cara! (Papirus 7 Mares), em parceria com o também filósofo Clóvis de Barros Filho, Cortella parece fazer questão de atuar conforme seus ensinamentos.

Aguarda a reportagem sentado nas mesas de espera da entrada do Kosushi, restaurante de frequência estrelada no Itaim, em São Paulo, ao lado da namorada, Claudia Hamra, diretora do Teatro Faap. Ele explica que sempre chega adiantado, é extremamente pontual, “coisa de professor”. Sua rotina começa religiosamente às 4h30 da manhã, quando define as atividades do dia, escuta meia hora de música e se dedica a leituras e estudos. Nessa ordem. Há quatro décadas. “Sou um pouco metódico, sistemático”, admite o filósofo de 60 anos diante de uma Claudia que, imediata e silenciosamente, confirma com a cabeça. Rotina, explica, é importante, condiciona a mente. Mas nada de monotonia. A rotina tem de ser diversa, para estimular o pensamento e a criatividade. “Procuro sempre o olhar do estrangeiro. Quando ando pela avenida Paulista, por exemplo, presto atenção à minha volta porque se simplesmente andar por ali, um local conhecido, perderei uma série de detalhes”, explica, sobre a estimulação frequente da mente que permite a ele não perder, na mesmice do dia a dia, a inspiração para escrever as dezenas de livros que já publicou.

A pontualidade, porém, não é só fruto de uma mente obcecada com a ética e com a rotina. Para Cortella, essa é uma maneira de não se estressar. “Vocês vieram correndo para cá, olhando no relógio, nervosos, enquanto eu estava sentado tranquilamente, tomando água e conversando”, cutuca, trazendo à tona os cinco minutos de atraso da reportagem que foram tabu até aquele momento. A questão do estresse, aliás, é uma de suas preocupações filosóficas. Tema de vários textos publicados imprensa afora e de comentários que faz na rádio CBN e no Jornal da Cultura, além das inúmeras palestras para as quais é contratado por empresas de diversos segmentos, a “laborlatria” – a adoração do mundo do trabalho segundo o rico léxico de Cortella – é tratada por ele de forma instigante. Com uma impressionante capacidade de citar pensadores e passagens literárias de cabeça, voz e dicção de locutor de rádio e a didática de um professor de cursinho, desses com fila de alunos na porta da sala, o filósofo se põe a divagar sobre trabalho e emprego, cansaço e estresse, a um ritmo de quatro frases densas por minuto. Com a naturalidade e a simpatia de quem foi apenas comer tempurá com amigos. Sobre a Copa, por exemplo, ele faz a comparação com o carnaval: “doente não é o povo que para por uma semana para dançar; doente é aquele que não o faz. Parar é sinal de bem-estar de uma sociedade.” E completa lembrando que o Brasil campeão de recessos é mito. “Somos só o 12º país em feriados, perdemos até pro Japão”, arremata.

Gyosa e estresse

O garçom anota os pedidos: Claudia, magra, honra a silhueta e pede uma porção de shiitake e cinco fatias de sashimi de atum. Cortella é uma surpresa – para alguém com porte de viking como ele – e pede uma porção de gyozas no vapor e duas duplas de tempurá, uma de cenoura e outra de abobrinha. Em poucos minutos ele estará comendo pausadamente, tomando água mineral, enquanto segue sua aula. Calma que contrasta com o assunto, que ainda é o estresse. “É preciso diferenciar trabalho de emprego. Emprego é fonte de renda e trabalho é fonte de vida. É claro que algumas pessoas, como é o meu caso, conseguem fazer do trabalho seu emprego. Mas nem sempre isso ocorre. Numa lógica produtivista como a que vivemos, faz com que se troque o importante (aquilo que não pode deixar de ser feito) pelo urgente (aquilo que deve ser feito logo). As pessoas entram no automático, se esquecem do porquê fazem o que estão fazendo, e isso estressa”, expõe. E continua: “O cansaço é resultado de um esforço intenso, ao passo que o estresse é resultado de um esforço que a pessoa não compreende por que está fazendo. Jogar uma hora de futebol com os amigos, por exemplo, cansa, mas não estressa. Solução para o cansaço é descanso. Para o estresse, mudar de rota. Tem um teste que é importante para identificar um e outro: o despertador toca às seis da manhã de uma segunda-feira. Se a pessoa quer dormir um pouco mais, é cansaço; se não quer levantar, é estresse”.

As distinções entre falsos sinônimos e os jogos de palavras fazem parte do arsenal didático do professor Cortella. Sobre o combate ao estresse, e em defesa do ócio (“que é diferente de vagabundagem”), ele pontua também que o essencial e o fundamental não são conceitos claros em nossa sociedade. “Essenciais são as coisas que fazem a vida valer a pena e fundamentais são as coisas que permitem chegar ao essencial, são ‘escadas’. O dinheiro é fundamental, mas não é essencial. O essencial não se compra, é a lealdade, a vitalidade, a amizade, a felicidade etc. A carreira é uma escada que permite atingir alguns objetivos, ajuda a realizar, é fundamental. Mas algumas pessoas param no meio da escada e se agarram a ela…”, clareia. E aproveita para cravar que buscar o essencial é a única maneira de ter uma vida com propósito, não automática. E, portanto, de não se estressar. “Perceber-se a serviço de uma causa que não é a sua não é agradável. É comum ouvir as pessoas dizerem: ‘Eu não faria isso, mas como sou jornalista…’ ou ‘Eu não faria aquilo, mas como trabalho na empresa tal…’. O bonito nessa história é que é uma escolha. Ética pressupõe liberdade de escolha”, diz, cada vez mais animado com o assunto.

Escravidão High Tech

A defesa do ócio não combina com um homem que acorda às 4h30 da manhã e escreveu 15 livros nos últimos cinco anos. Outro conceito que a reportagem parece não ter compreendido. O ócio envolve deixar a cabeça livre, é a chave da criatividade, não tem a ver com gastar o tempo – mas preenchê-lo de maneira diversa. O ócio seria a morada da epifania, ao que parece. “Karl Marx chegou a escrever que o tempo do homem deveria ser dividido entre o trabalho e o ócio. Trabalhar poucas horas e depois ir pescar, por exemplo. Naquela época, imagine como foi criticado”, raciocina Cortella. Mas o sociólogo italiano Domenico De Masi com suas ideias sobre “ócio criativo” – de que a tecnologia aliviaria a carga de trabalho do homem e permitiria que cada vez mais tempo fosse dedicado ao “dolce far niente” ou, como querem os pensadores, à criatividade – acabou por se provar equivocado já que os avanços só geraram mais conexão ao trabalho, não? “O ‘ócio criativo’ foi adotado em peso pelas empresas pontocom, até porque a maioria nasceu da diversão. Nesse sentido, De Masi tinha razão.

Mas não é a mesma coisa, já que o ócio obrigatório não tem o mesmo efeito”, defende, mas evita se aprofundar no porquê trabalhamos 24 horas por dia por meio dos smartphones: “O ser humano virou escravo das ferramentas que produz”, limita-se a dizer, quase triste. O diagnóstico leva a crer que Cortella tem uma descrença enorme na geração que engatinhou em tablets e deu o primeiro beijo pelo WhatsApp. Ao contrário. O filósofo lecionou para a graduação até 2002, manteve-se na pós-graduação e ministrando cursos na PUC-SP até 2012, quando se aposentou, e garante que segue tendo forte contato com as novas gerações. Até escreveu um livro de filosofia para crianças – O Que É a Pergunta? (Cortez). Além disso, é bom lembrar que seu doutorado foi em educação.

E cereja do bolo: Paulo Freire, o educador mundialmente famoso pela metodologia de ensino que criou, foi seu orientador. Apresentadas as credenciais que o autorizam a opinar sobre as novas gerações, vamos lá: “Eles têm vantagens enormes quanto à conectividade, à mobilidade, à espontaneidade e à simultaneidade, mas não têm senso histórico nem paciência. E grande parte da culpa é nossa, que nega isso a eles com ideias como ‘vocês não tiveram infância, eu que tive’. Eles só têm o presente e tendem a se entregar à pior das filosofias romanas, criada no século 1, mas aplicada durante a derrocada do império no século 5, o carpe diem”, afirma, recomendando às gerações mais velhas: “O mundo que vamos deixar para os nosso filhos depende dos filhos que vamos deixar para este mundo, já diriam os gregos”.

Nessa altura da conversa, Cortella tinha olhado o relógio três vezes. “ Ainda temos 14 minutos”, diz, sorridente antes de pedir um abacaxi de sobremesa. Dá tempo para um café também. E segue falando e comendo com calma, apesar de ter deixado claro que estávamos contra o relógio. O papo vai chegando ao fim e ele quer saber se há mais perguntas. Como foi ser orientando de Paulo Freire? Ele enumera os feitos do educador, relembra pontos de sua biografia e define aquele que foi o maior ensinamento que retirou de convivência com o mestre: “Ele me ensinou a ser humilde sem ser subserviente”. O professor Cortella se despede. De pé, ainda conversa sobre a cidade natal dos repórteres, conta mais alguma piada e sai calmamente apressado.

Mestre dos mestres 

Patrono da educação brasileira, Paulo Freire foi o grande mestre de Cortella, com quem trabalhou por 17 anos. Com Freire, ele diz ter aprendido a ter humildade intelectual – “que é a capacidade de saber que não sabe tudo que pode ser sabido e saber que não é o único que sabe aquilo que pode ser sabido” –, a recusar à negligência e não fazer as coisas de forma medíocre. O discípulo chegou a suceder Freire na Secretaria de Educação da cidade de São Paulo. “Ele é o brasileiro com maior número de doutorados da história. São 36 entre Harvard, Princeton, Cambridge etc. É reconhecido no mundo todo e pouco lembrado no Brasil, e mesmo assim não teve mágoas, um sinal de grandeza. Ele não tem sucessor: eu sucedi ao cargo de secretário…”

Silêncio  

A leitura de qualquer reportagem sobre o professor Cortella leva, quase sempre, à informação de que ele teria sido seminarista na juventude. “É um equívoco comum. Seminário é para crianças em idade escolar que estudam o ginásio e o colegial na instituição religiosa se preparando para a atividade clerical. Eu decidi viver no convento da Ordem Carmelita Descalça aos 18 anos, quando já estava na faculdade. Foi uma escolha de viver na clausura que durou três anos”, lembra o filósofo, que tem uma religiosidade forte, uma reverência à vida, mas não frequenta a igreja cotidianamente.

Tio do Pavê

Em meio a assuntos tão sérios quanto ética e laborlatria, Mario Sergio Cortella sempre faz questão de introduzir histórias divertidas e até piadinhas infames – que, com sua retórica privilegiada, arrancam gargalhadas. Diante dos sushis que chegaram à mesa antes de seus tempurás, recomendou aos presentes: “Não me esperem, comam antes que esquente”. Quando o assunto passou pelo futebol, revelou ser apaixonado pelo esporte e entregou seu time: “Morei no convento. Então, não poderia torcer para outro que não o Santos Futebol Clube”.

 

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