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Assédio moral: quando as palavras viram armas

Por Fausto Salvadori para a Revista Joyce Pascowitch de junho

A violência nunca caberia no seu mundo. O mundo de uma mulher de 33 anos, bonita, independente, sem filhos, cabeça esclarecida por quatro anos de análise, corpo esculpido nas sessões de pilates e coração habituado aos relacionamentos longos e tranquilos. A violência poderia vir de fora, quem sabe na forma de um ladrão que levasse o seu smartphone. Jamais imaginou que a violência poderia estar ali, acordando ao seu lado, ouvindo seus CDs de alta cultura e compartilhando com ela as sessões da Mostra Internacional de Cinema. “Sempre achei que estava à parte disso e que conseguiria me afastar de alguém que tivesse tendências violentas”, lembra ela, que prefere não ver seu nome publicado. E não havia por que achar que seria diferente quando começou a namorar com um colega de trabalho com quem tinha uma química imensa. Tudo bem que às vezes discutiam, e ela notou que os bate-bocas iam além do que os de seus relacionamentos anteriores – imaginou que isso melhoraria com o tempo. Não melhorou. Pequenas discussões que terminavam com o parceiro chamando-a aos berros de louca e largando-a sozinha, aos prantos, logo viraram rotina. De tanto ser chamada de doida, ela convenceu-se de que tinha mesmo algum problema mental, trocou a análise por um tratamento psiquiátrico e passou a se encher de tarjas-pretas que lhe davam náuseas – mas em nada diminuíam sua tristeza. Sentia-se velha, acabada, desinteressante. Pegou-se agindo como as heroínas das comédias românticas de Hollywood, imaginando que a magia do amor faria com que ele mudasse e deixasse tudo de ruim para trás. Uma fase passageira.

Em dois anos de namoro, houve um único episódio de agressão física, mas são as marcas deixadas em seu psicológico que permanecem até hoje, um ano e meio após terem se separado. “Ainda ando nas ruas e não consigo olhar direito para as pessoas. Ainda me sinto desinteressante em muitos momentos”, desabafa. Dentro dela, permanecem abertas as feridas de uma forma sutil de brutalidade que os especialistas chamam de assédio moral, violência psicológica, violência simbólica ou bullying. No dia a dia, chamamos até de chantagem emocional. Todos os nomes definem o mesmo: uma forma de violência em que se usam olhares, gestos e, principalmente, palavras, para estilhaçar, emocionalmente, o outro.

O assédio moral costuma passar despercebido, principalmente por quem acredita que violência é uma palavra que só cabe aos criminosos ou espancadores, mas faz parte do nosso dia-a-dia mais do que gostaríamos de admitir. Ele pode ocorrer em relacionamentos afetivos, no trabalho, na família, na escola, em empresas, condomínios, instituições públicas. E pode estar ao nosso lado ou dentro de nós, já que tanto podemos ser vítimas como autores. “Violência é tudo o que afeta a integridade física e mental de alguém e, por isso, conduz a algum sofrimento não-consentido”, explica o filósofo Mario Sérgio Cortella, professor da PUC-SP e da Fundação Dom Cabral. Assim, o assédio moral também é uma forma de violência, que “acontece todas as vezes em que gero constrangimento em alguém, obrigando ou impedindo a pessoa de fazer algo fora do limite da ética da convivência reciprocamente saudável”.

Na sua versão mais sutil, o assédio moral vem embalado como humor. Na cultura brasileira, tão amiga da cordialidade, é comum que humilhações sejam disparadas na forma de piadas, mas quem se sente ofendido evita reclamar para não ser visto como alguém que “não sabe brincar”. Cortella sugere uma diferenciação simples para separar a brincadeira da humilhação. “Brincadeira de fato é quando todos e todas se divertem; quando, em uma brincadeira, alguém não se sente engraçado (cheio de graça) e sim desgraçado (sem graça), não é mais brincadeira”, compara.

Palavras que num contexto são vistas como inofensivas podem ser transformadas em instrumentos de violência quando usadas em outras circunstâncias. Quem aponta é Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Instituto de Psicologia da USP. “Uma mesma fala, que soa como uma brincadeira entre pessoas íntimas, pode se tornar uma ofensa ou mesmo um assédio sexual quando praticado entre estranhos”, diz. A palavra, lembra a psicóloga, é a principal arma do assédio moral. “A palavra é muito poderosa e pode ser traumática”, afirma. Segundo ela, toda violência provoca traumas psicológicos capazes de desencadear graves consequências para a mente, como a perda da autoestima, depressão, desejo de vingança, e, sendo assim, é capaz de conduzir a diversos tipos de doenças físicas.

O cinema sabe dessas coisas. Numa eleição dos 100 melhores vilões de todos os tempos, a enfermeira Ratched, de Um Estranho no Ninho (1975), do diretor Milos Forman, conquistou o quinto lugar, superando de lavada monstros como Alien ou gângsteres como Don Corleone. Sempre calma, maternal, a personagem – que rendeu o Oscar à atriz Louise Fletcher – não pratica nenhum gesto de violência física ao longo do filme, pois precisa apenas da sua fala e dos seus dons de manipulação emocional para dominar os internos de um hospital psiquiátrico, liderados por Jack Nicholson, e levar um deles ao suicídio. As mesmas habilidades que Joan Crawford usa para enlouquecer Bette Davis em O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, de Robert Aldrich (1962).

Ninguém gosta de se identificar com esses personagens, mas não é difícil se transformar no vilão de uma prática dessas no mundo real. “Quem pratica assédio moral geralmente não admite ou percebe o mal que está criando”, afirma George Barcat, consultor em ética do Banco Itaú-Unibanco. A causa, segundo ele, está na incapacidade de observar a si próprio – um defeito que todos temos, mas que costuma ser ampliado no ambiente das empresas, especialmente hierarquia acima.

Acontece que ninguém leva para casa o desaforo disparado por um colega, mas a maioria se cala quando o abuso vem de um chefe, que está protegido pelo cargo. Para evitar que alguém, sem perceber, se torne um pequeno ditador ao assumir um cargo mais elevado, Barcat recomenda que todo chefe abra canais de feedback contínuos com sua equipe. Os funcionários devem se se sentir à vontade para comentar as atitudes dos seus líderes, sem temer represálias, e quem comanda deve mostrar que está levando a sério o que lhe dizem, por meio de mudanças na sua maneira de agir. Outra recomendação é o cuidado com o estresse. “Não se permita trabalhar com o ânimo alterado, para evitar humilhar outras pessoas”, afirma Barcat.

Um relacionamento que chega ao fim também é um momento delicado, que pode facilmente se transformar num ringue emocional, em que os dois lados passam a se digladiar com golpes, muitas vezes baixos, de violência psicológica. A advogada Renata Mei Hsu Guimarães, especialista em direito de família e sucessões do escritório Guimarães Bastos Chieco, recomenda que nessas horas o melhor é terceirizar o desgaste. “O casal que está se separando, que está envolvido num momento de tensão muito forte, deve evitar debater diretamente sobre as questões do divórcio, como guarda, pensão, partilha. Essa discussão deve ser feita pelos advogados das partes, que são os profissionais indicados para lidar com esse conflito”, afirma. A outra recomendação é nunca usar os filhos como moeda de troca nesse tipo de disputa. “Uma coisa é disputar a guarda, outra é transformar o filho num instrumento de disputa, negociando guarda com pensão, por exemplo. Essa é uma violência enorme, que pode deixar marcas nos filhos para o resto da vida”, alerta.

Se palavras, gestos e olhares podem ser instrumentos da violência, atitudes brutais também podem ser praticadas com o oposto: o silêncio e a indiferença. É a violência que praticamos quando deixamos de cumprimentar o porteiro ou damos ao faxineiro que varre nosso local de trabalho a mesma atenção que dedicamos ao mobiliário. Quando resolveu trabalhar junto com os garis que limpavam a Cidade Universitária da USP para saber como pensavam, o psicólogo Fernando Costa Braga descobriu que os profissionais da limpeza se sentiam humilhados – não por ouvirem broncas ou desaforos dos outros funcionários, mas justamente por serem ignorados por todos, como se fossem invisíveis. “A cegueira de gente que não vê gente é traumática, causa angústia”, dispara o autor no estudo que deu origem ao livro “Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social” (Globo, 2004).

O combate a todas as violências – sejam estas feitas de murros, tiros, palavras ou silêncios – passa pelo olhar para o outro. “Não faça com os outros o que você não quer que seja feito com você”, lembra o rabino Shmuel Lemle, professor do Kabbalah Centre do Rio de Janeiro. Ele afirma que o controle da violência passa pelo controle das próprias palavras, já que “a boca é uma das armas mais poderosas que existe”. Para ajudar nessa tarefa, Lemle lembra um dos mitos da cabala, segundo o qual cada um de nós vem ao mundo com um estoque limitado de palavras para serem pronunciadas ao longo da vida: assim que atingimos a cota de palavras que nos cabe, morremos. “Quer dizer que, quanto mais falamos, mais perdemos força vital”, explica. Mas o próprio mito aponta uma saída: as palavras boas, que dizemos para ajudar outras pessoas, não entram nessa conta.

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