Por Paulo Sampaio para a Revista Joyce Pascowitch
A publicitária Renata Guimarães Archilla sempre soube que seu pai e seu avô a rejeitavam, mas não imaginava que eles fossem capazes de elaborar um plano tão diabólico para matá-la. Na manhã de 17 de dezembro de 2001, quando fazia o caminho de todos os dias em direção ao trabalho, ela foi abordada em um semáforo do Morumbi por um Papai Noel que distribuía doces aos motoristas; ao se aproximar do Palio dela, o bom velhinho sacou de uma pistola Taurus 380 e, em vez de doces, distribuiu balas. Por uma série de fatores históricos, Renata suspeitou imediatamente que por trás daquela tentativa de assassiná-la estavam o fazendeiro Nicolau Archilla Messa, seu avô, e o filho dele, Renato Grembecki Archilla, seu pai.
Apesar de ter fechado as janelas do carro, ela foi atingida no rosto e no braço por três projéteis disparados pelo policial José Benedito da Silva, o homem por trás do Papai Noel. Embora Silva tenha deixado o local certo de estar com sua missão cumprida, as coisas não correram tão bem assim para ele. Socorrida às pressas pela polícia, a publicitária sobreviveu. Atingida no rosto, ela perdeu todos os dentes da arcada superior e foi submetida desde então a oito cirurgias de reconstituição do maxilar. Perdeu também 40% da sensibilidade no braço esquerdo, que ela levantou para se proteger.
Ao ser transportada para o hospital, Renata lembra de não ter reconhecido a própria imagem refletida no espelho retrovisor do carro da polícia: “Eu estava desfigurada. Tinha um rombo enorme na bochecha, estava sem os dentes, inchada e cheia de sangue. Chorava de dor e medo”, disse. Nos cerca de 70 dias que passou internada, teve pneumonia e síndrome respiratória. A primeira cirurgia de reconstrução do maxilar levou 11 horas. “Quando cheguei ao quarto, depois de sair da UTI, precisei ser atendida por um neurologista. Tinha ataques de sair fora de mim. Eu estava arrasada, não aguentavamais, fazia exames todos os dias.” Fora de perigo, ela quis justiça. Tinha, então, 21 anos.
Pré-Natal
O ódio de Nicolau Archilla pela neta era anterior ao nascimento dela. Ele sempre foi contra a união dos pais da menina, Renato e Iara Lúcia. Os dois começaram a namorar quando o rapaz estava com 19 anos e estudava administração na Fundação Getulio Vargas, e a moça, com 17. Herdeiro de uma família que fez fortuna no agronegócio, Renato tinha um padrão financeiro bem superior ao de Iara. Para desgosto de Nicolau, seu filho parecia apaixonado por ela. Pelo menos era o que indicavam as cartas de amor que escrevia – e que Renata depois guardou. Ao depor em juízo, ela fez questão de deixar claro que “não foi um relacionamento rápido”. “Meu pai frequentava a casa da minha mãe, e o meu avô, o pai dela, gostava muito dele.” Quando os dois se conheceram, no Guarujá, Baixada Santista, Renato a chamava de “prin”, em alusão à palavra princesa. Como Nicolau sempre quis ter um neto, a gravidez de Iara foi uma estratégia engendrada pelo jovem casal para levar o pai dele a aceitá-la. “O desejo de conceber a criança foi do meu pai. Ele tinha esperança de convencer o pai dele a deixá-lo se casar com minha mãe”, disse ela em seu depoimento. De acordo com Renata, a primeira noite deles foi em um motel no dia 31 de dezembro de 1978. Logo, a gravidez se confirmou e o casal, feliz da vida, foi comunicar ao fazendeiro. Nicolau tornou-se ainda mais renitente. “Ou você fica com ela, ou com sua família”, teria dito ao filho.
Renato então procurou os pais de Iara para dizer que, infelizmente, não poderia arcar com aquela situação. “De repente, ele se transformou em uma coisa frágil. Mamãe ficou inconsolável”, recordou Renata. Ao decidir levar a gravidez adiante, Iara teve todo o apoio da família. O pai dela pediu apenas que a criança recebesse o nome do homem que a engravidou. Segundo Renata, seu avô materno tinha uma “mentalidade tradicional” e achava que, se o pai da menina era conhecido, ela deveria ter o nome dele. Já com a gravidez adiantada, Iara um dia avistou Renato ao volante de um BMW em um semáforo na rua Augusta. Correu para falar com ele. Renato fechou a janela. “O sinal abriu, ele arrancou, mamãe ficou plantada no meio da rua.”
Positivo, Inoperante
A menina nasceu na noite do dia 15 de agosto de 1979. De acordo com Renata, uma enfermeira contou a sua mãe que um homem desconhecido apareceu no berçário naquela madrugada, pediu para pegar o bebê no colo e chorou muito. Iara estava convencida de que foi Renato. Seis meses depois do nascimento da menina, ela abriu um processo de reconhecimento de paternidade. Até então, a ciência ainda não era capaz de estabelecer o pai biológico de uma pessoa via exame de DNA. Assim que a medicina anunciou a novidade, os três fizeram o teste na Pro Matre. Na ocasião, os pais e a filha ficaram sós em uma sala. “Meu pai se sentou à minha esquerda, e minha mãe, à direita, e não se dirigiram a palavra.” A fim de que não houvesse suspeita de troca de tubos de ensaio contendo as amostras, o médico pediu a Iara que escrevesse o nome de Renato no recipiente com o sangue dele, e vice-versa. “Nesse momento, meu pai perguntou: ‘Qual o seu nome mesmo?’. E minha mãe: ‘Iara Lúcia Guimarães Chinaglia. E o seu?”. Ao deixar a Pro Matre naquele dia, Renata chorou muito.
Quando estava com 10 anos, a menina ganhou na Justiça o direito de usar o sobrenome Archilla. Sua mãe ligou pra Renato perguntando se ele soubera da novidade: “Não tenho filha”, ele teria respondido. Àquela altura, Iara já havia sido diagnosticada com um câncer que a consumiu durante dez anos. Começou na mama, quando ela estava com 26. A reincidência foi no pulmão e a metástase, no cérebro. “Pensa que ela ficava chorando? Nunca deixou de trabalhar, aguentou firme até o fim”, conta a filha. Às 8 horas do dia 3 de julho de 1996, aos 36 anos, Iara faleceu.
Ameaças
Inconsolável, a adolescente de 16 anos foi amparada pelos avós maternos e, para sua surpresa, passou a receber ligações do pai. “Ele parecia preocupado, marcava encontros comigo, dizia que queria conversar, eu me arrumava toda e, na hora, ele inventava uma desculpa.” Depois de alguns episódios desses, ela descobriu que o pai queria apenas saber o que Iara havia deixado para a filha. E então, entrou com um pedido de suspensão de pagamento da pensão. Parou de procurá-la e deixou de depositar o dinheiro. Em 1999, Renata entrou com uma ação para fazê-lo pagar os R$ 25 mil que ele já devia a ela.
Foi então que Nicolau, o avô paterno, procurou a publicitária e disse que se ela quisesse algum tipo de reaproximação com a família do pai dela teria de abrir mão de todos os processos que movia contra eles. Renata tinha pensão garantida judicialmente até os 24 anos: “Nunca se sabe o que pode acontecer até lá”, profetizou Nicolau. Em seu depoimento ao MP, a avó de Renata, também Iara, disse que sua neta recebeu inúmeros telefonemas anônimos em que o interlocutor a alertava de que sua família estava correndo risco de vida. “Ele disse que tinha conhecimento de todos os passos dela, por meio de pessoas contratadas por seus advogados.” Digamos que a publicitária tinha suas razões para suspeitar do pai e do avô.
Orelhas de abano
Pouco depois de sair do hospital, Renata foi atendida por sua médica na casa do namorado, Daniel. Graças a uma valiosa informação obtida pelo motorista particular da médica, enquanto a aguardava, a polícia pôde chegar ao criminoso. Em uma conversa, o vizinho de Daniel contou ao motorista que um carro havia rondado a vizinhança cerca de duas semanas antes. Como achou esquisito, o vizinho anotou a placa, sem achar que um dia serviria para alguma coisa. Era de Sorocaba, interior de São Paulo, onde ficava o haras de Nicolau Archilla.
Rapidamente a polícia descobriu que o carro pertencia ao policial José Benedito da Silva. De acordo com a apuração, Silva trabalhava no haras dos Archilla. No dia em que Renata foi ao distrito fazer o reconhecimento do criminoso, ela examinou por trás do vidro espelhado cinco suspeitos e apontou imediatamente para um deles. “Estava 100% certa de que era aquele homem. O olhar era o mesmo, forte, de uma pessoa muito fria, decidida, firme. Eles (os cinco suspeitos) entraram de costas, depois foram se virando. Eu o reconheci não só pelo olhar, mas pela pele, a orelha de abano, a estatura.” O homem era José Benedito da Silva.
Depois de rastrear ligações feitas a partir do celular do policial, os investigadores estabeleceram a conexão entre ele, Nicolau e Renato Archilla. Silva foi preso por aqueles dias. Em julho de 2006, depois de se valer de alguns recursos e conseguir protelar o julgamento, ele acabou condenado a 13 anos e quatro meses de prisão, em regime fechado. Dois anos depois, na madrugada do dia 12 de agosto de 2008, Nicolau e o filho, que também vinham sendo beneficiados por recursos, finalmente tiveram prisão preventiva decretada. A polícia os algemou no casarão na rua Noruega, Jardim Europa, onde Nicolau morava, e os levou para o Centro de Detenção Provisória do Belém, na zona leste de São Paulo. O promotor Roberto Tardelli estava convencido de que Silva era apenas o executor do crime. A juíza Juliana Guelfi, que decretou a prisão dos Archilla, aceitou a denúncia por homicídio duplamente qualificado – motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima. Apesar de definir a situação como “muito triste”, Renata disse à época que se sentia aliviada por constatar que “existe justiça no país”.
Batalha
Em outubro do mesmo ano, porém, por 2 votos a 1, desembargadores da 4ª Câmara Criminal do TJ-SP aceitaram um pedido de habeas corpus feito pela defesa de Nicolau, então com 81 anos, e Renato, 49. Depois de três liminares negadas, desta vez os dois foram soltos. No total, Renato passou 70 dias na cadeia. Nicolau cumpriu prisão domiciliar em função da idade e por estar com câncer. “Tive uma crise de choro. Eles venceram apenas uma batalha. Eu venci várias e vou vencer a guerra porque estou com a verdade”, disse Renata na época.
Nicolau morreu no fim de 2010, nove anos depois do crime, sem nunca ter ido a júri. “Ê Brasil!”, ironiza o advogado Celso Machado Vendramini, que defendeu José Benedito da Silva, ao saber que Renato Archilla ainda não foi julgado. O processo está em segunda instância. “Isso é uma vergonha.” Por sua vez, o cliente dele, Silva, foi libertado depois de cumprir um terço da pena. Renata mudou-se para Florianópolis logo depois do crime. Casada, com um filho, ela explicou que o medo a levou a sair de São Paulo. “A pessoa que mandou me matar e a que atirou em mim estão soltas. Fiquei com medo”, disse ela. Perfeitamente compreensível.
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