Descontrolado com o pedido de separação, o comerciante José Ramos Lopes Neto acabou com a família: matou a mulher com três tiros, feriu seus filhos de 2 e 4 anos e o tio das crianças. Os três sobreviveram. Graças à intervenção do pai de Lopes, Gil Teobaldo, criminalista influente em Pernambuco, o assassino passou 20 anos em liberdade
Por Paulo Sampaio para revista Joyce Pascowitch de agosto
Todos os dias, por volta das 18h30, durante as semanas que se seguiram à tragédia que marcou seu destino, Nathália Just Ramos Lopes, 4 anos, desandava a chorar descontroladamente. A crise de angústia acontecia justamente no horário em que a menina viu o pai matando a mãe, em 4 de abril de 1989. Depois de atingir com um tiro a cabeça da mulher, Maristela Just, então com 25 anos, José Ramos Lopes Neto, 27, ainda disparou contra os dois filhos pequenos, Nathália e Zaldo, e o cunhado, Ulysses. Os três sobreviveram. Hoje, aos 29, Nathália guarda apenas flashes da “chacina doméstica” ocorrida na casa de seu avô materno, em Recife. Mas sabe de cor as histórias sobre o caos que se instalou logo após o acesso do pai. Preso em flagrante, Lopes foi visto ao telefone dizendo: “Fiz besteira” e, momentos depois, na cozinha, cortando-se superficialmente com uma faca de pão, para alegar na delegacia que agira em legítima defesa. Nem precisava: filho do criminalista Gil Teobaldo, muito influente em Pernambuco, ele passou menos de 12 meses na cadeia. Viveu em liberdade durante 20 anos, até que, em 2010, depois de faltar a dois júris, foi condenado à revelia a 79 anos de prisão.
As lembranças que Nathália tem do pai são imagens isoladas. No colo dele, assistindo ao programa de Xuxa; indo cortar o cabelo; posando para foto no dia do aniversário. Na ocasião do crime, Lopes e Maristela estavam separados havia dois anos, mas ele continuava a frequentar o apartamento em que ela morava com os filhos. Maristela cursava sociologia e vendia cosméticos para se bancar. O pai a ajudava. Lopes passou a exercer marcação cerrada sobre ela. De acordo com relatos de familiares, ele a vigiava onde quer que ela fosse, “enxergava” casos com colegas de faculdade e chegou a machucá-la no braço, puxando-o por entre a grade do portão do prédio – ela registrou um boletim de ocorrência que, segundo Nathália, “sumiu” no inquérito. A certa altura, Maristela achou mais prudente voltar para a casa dos pais, onde morava antes da separação.
Em entrevista a J.P, Nathália conta que Lopes e Maristela haviam se casado muito jovens, com, respectivamente, 21 e 20 anos, e tiveram filhos cedo. Vivendo no conforto da casa dos sogros, Lopes “não queria nada com o trabalho”. “Arrumavam empregos para ele, mas meu pai era acomodado, só pensava em levar uma vida boa. Minha mãe, ao contrário, estava a fim de estudar, trabalhar, ser independente dos pais. Um dia, ela se cansou e pediu a separação.” A partir de então, as coisas foram ficando sérias – mas ninguém esperava que chegassem a um ponto tão radical. O pai de Nathália era um sujeito razoavelmente tranquilo e, mesmo no dia do crime, não perdeu a calma ou gritou. De certa forma, não houve “aviso” daquele final tenebroso.
DISCUTINDO A RELAÇÃO
Na tarde de 4 de abril, poucas horas antes de disparar contra a mulher, Lopes levou-a para conversar em uma praia distante de Recife chamada Barra de Jangada. Os dois voltavam de uma consulta médica com os filhos. “Eu e meu irmão estávamos dormindo no banco de trás e acordamos com meu pai chacoalhando minha mãe. Foi a primeira vez que eu o vi exaltado.” Lopes estava armado e ameaçou Maristela de morte, caso ela não voltasse para ele. Ao perceber que tinha despertado as crianças, guardou a arma e levou a família de volta para a casa dos ex-sogros. Ali, Maristela comentou com o irmão, Ulysses, que o ex-marido estava armado e pediu para ele ficar por perto. Ulysses e o pai deram um jeito de abrir o jogo com Lopes e revistá-lo, mas não encontraram o revólver.
Maristela deu banho nas crianças e as levou para o quarto. Nathália brincava em cima da cama, enquanto a mãe a penteava, e Zaldo se entretinha com joguinhos, sentado no chão. Lopes entrou dizendo que queria “ter uma conversa com a família”. Parecia tranquilo. Ulysses foi atrás e, como estava fumando, ficou com apenas metade do corpo para dentro do quarto. Não percebeu quando o cunhado, abaixando-se para brincar com o filho, pegou a arma escondida no cano da bota. Os dois primeiros tiros atingiram a testa de Maristela. O terceiro foi na direção de Ulysses, que tentava conter oassassino. Não conseguiu. Na sequência, ele disparou em Nathália e em Zaldo. A última bala foi para a ex-mulher, já morta. Depois de descarregar todo o revólver, Lopes saiu do quarto sem pressa. Não foi difícil para o avô dos meninos imobilizá-lo no corredor. Os vizinhos surgiam na janela, perguntando o que tinha acontecido. “Minha avó pediu para chamarem a polícia.” Agora que Lopes estava sob controle, passaram a socorrer as vítimas.
Milagre de sobrevivência
Atingida por uma bala que atravessou seu braço, Nathália passou 48 horas internada com risco de morte. Com o passar do tempo, recuperou-se completamente. O caso de Zaldo foi mais complicado. Vítima de uma bala tranfixante na cabeça, ele ficou com o lado esquerdo do corpo comprometido. Enfrenta uma ligeira dificuldade de coordenação, mas, segundo a irmã, leva uma vida normal, formou-se em direito, vai a baladas, namora. “Meu irmão é um milagre da sobrevivência. Ninguém soube dizer como a bala que o atingiu ‘desviou’ no cérebro.” O menino precisou reaprender algumas noções básicas dos sentidos, como a diferença entre liso e áspero, triângulo e bola. Nathália compara: “Pense em um computador. Meu irmão teve de ser ‘reformatado’.”
Apesar da comoção na família, todos entenderam que o mais importante naquele momento era “blindar” as crianças, para poupá-las de traumas. Nathália e Zaldo foram criados separadamente, ela na casa dos avós, ele na de uma irmã de sua mãe. Mas ambos garantem que isso não os distanciou. “Sempre estivemos próximos, unidos como irmãos. Minha família é tipo as das novelas do Manoel Carlos, todo mundo muito grudado.” Nathália explica que não seria possível para sua avó criar duas crianças tão dependentes de atenção. Ela e o irmão passaram a frequentar psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e tudo o que estivesse ao alcance da ciência para ajudá-los em sua recuperação. Sem contar o inestimável afeto dos tios. “Minha tia queria me levar para a casa dela, com meu irmão, mas ninguém me tirava da minha avó (risos).” Os dois irmãos tiveram uma infância feliz, estudaram no melhor colégio de Recife e jamais se sentiram diferentes por causa de sua história. “Não houve tabus na nossa formação. Meus avós e tios respondiam tudo o que perguntávamos, mostravam fotos dos nossos pais, contavam histórias deles. Na escola, éramos populares, participávamos de competições esportivas, nunca nos escondemos. A minha cartinha no Dia das Mães começava com ‘querida vovó’ e todo mundo achava normal porque já sabia.” Enquanto cresciam, apesar de os tios não desistirem de fazer justiça, os irmãos não tiveram qualquer notícia do pai. A avó paterna até tentou fazer contato, mas a coisa não foi para frente: “E todos nunca mais apareceram, como se a gente não existisse”, diz Nathália.
A Justiça Tarda, Tarda…
Quinze dias após o crime, o Ministério Público apresentou a denúncia formal. Vinte e um anos depois, o caso foi a júri popular – mas Lopes não compareceu. Nathália lembra: “Os advogados contratados pelo ‘velho’ (Gil Teobaldo) pintaram e bordaram com o Código de Processo Penal. Enquanto meu pai aguardava o julgamento em liberdade, conseguiram expedir 36 cartas precatórias! (arrolamento de testemunhas de outros estados, com intenção de postergar o processo)”. Ela classifica o pai de seu pai, a quem só se refere por ‘o ve
lho’, como “um típico coroné do Nordeste”. “Chegaram a anular o inquérito, todas as testemunhas tiveram de prestar depoimento três vezes.” A briga na Justiça era tão desigual que a família de Nathália teve dificuldade até de conseguir um advogado. Todos temiam represálias.
Mas as tias de Nathália eram obstinadas. Para freá-las, Teobaldo precisou entrar na Justiça com um pedido de “regulamentação de visitas” às crianças. “Era um recado: podem ficar com os meninos, desde que esqueçam o processo.” Elas acharam mais prudente dar um tempo. Confiavam na Justiça. Em 2001, houve um vislumbre de retomada do caso, quando um juiz determinou que o processo estava “concluso”. Era preciso só agendar uma data para o júri. Pela primeira vez, os nomes de Nathália e do irmão apareceram nos jornais por extenso – não só as iniciais. “Eu já era adolescente, tinha meus paquerinhas, morri de vergonha.” E não deu em nada. Os advogados do “velho” entraram com mais recursos…
Agora é Para Valer
Somente 9 anos depois o processo foi assumido por uma juíza chamada Inês Maria de Albuquerque, que marcou o júri para o dia 13 de maio. Nathália já estava casada e havia se mudado para São Paulo com o marido, que recebera uma proposta de trabalho. “A promotoria nos disse que, se eu e meu irmão não quiséssemos depor, tudo bem, as evidências eram mais que suficientes para condenar meu pai. Mas aí eu pensei: ‘Por que não iria?’ e fui.”
Na mesma época, o pai e a madrasta da menina Isabella Nardoni eram julgados em São Paulo com grande estardalhaço. Impressionada com a repercussão na mídia, Nathália foi ver na internet o que havia sobre o caso de sua mãe. Encontrou apenas três links datados de 2001, com notícias praticamente idênticas. “Uma porção de coisas vieram à minha cabeça, eu comecei a querer lutar contra a impunidade”, lembra. Por sugestão do marido, criou um blog e passou a contar a história do crime em terceira pessoa, como se fosse um jornalista. “Só fiz acender o pavio. Quando aquilo caiu na rede, tornou-se viral.” Ela e Zaldo nunca tinham dado uma entrevista. A promotoria os orientou a só falar na hora do depoimento. Eles acataram.
Só que, como Lopes não apareceu, os dois ficaram revoltados. À saída do tribunal, quando viu “um paredão de repórteres” aguardando para entrevistá-la, Nathália decidiu que ia falar. “Achei que perderia o controle, mas até que me saí bem”, diz. No dia seguinte, 14 de maio, os jornais estamparam na capa uma foto de Zaldo chorando: “Ele explodiu de raiva quando soube das manobras que a defesa estava executando”. A essa altura, a repercussão do crime já tinha extrapolado a imprensa regional e bombava nacionalmente. Não só na internet, mas nos jornais e na TV. Nathália ficava imaginando o que se passava pela cabeça de seu pai quando os via dando aquelas declarações. “Eu queria ser uma formiguinha para saber qual a reação dele.” Desde 1989 sem ver sequer uma imagem de Lopes, os dois irmãos acabaram sabendo como ele estava quando os jornais publicaram uma foto 3×4 dele. O Tribunal de Justiça autorizou o Detran a fornecer o retrato de Lopes na carteira de habilitação, o mais atualizado que se dispunha, para ser divulgado pela imprensa e encaminhado à polícia. “Foi parar até na Interpol.”
‘Era Veado e Morreu de Aids!’
O não comparecimento do réu costuma implicar no adiamento do julgamento por até dois anos. Porém, já prevendo que Lopes não apareceria, a juíza reservou a agenda do tribunal para convocar outro júri dali a duas semanas. Nesse meio tempo, Teobaldo concedeu uma entrevista para uma rádio local, na qual angariou a revolta da opinião pública. “José matou porque foi provocado por Maristela numa discussão. Ela disse: ‘Você nasceu para ser corno!’ Ele não teve dúvida, meteu bala! E te digo mais: não tivesse matado, não comeria na minha mesa!”, disse “o velho”. O entrevistador quis entender por que Lopes havia disparado contra os filhos e o tio deles, se a discussão era com a mulher. Teobaldo respondeu que as crianças estavam próximas e que Ulysses não morreu por causa dos tiros. “Ele morreu de Aids porque era veado e frequentador de boate gay!” (Ulysses era homossexual e foi vítima da doença em 1999).
O novo júri foi marcado para 1º de junho e Lopes, de novo, não compareceu. O Disque Denúncia passou a oferecer R$ 3 mil para quem o encontrasse. Nathália mais que triplicou essa quantia, disponíbilizando R$ 10 mil. Ao longo de dois anos, a ONG recebeu 13 alarmes falsos, até que, em outubro de 2012, capturaram Lopes no centro de Recife, na casa em que ele morava com a nova família: a mulher e dois filhos. Nathália, que havia prestado concurso para ser oficial de Justiça em São Paulo, soube da prisão do pai pouco depois de receber o telefonema do Tribunal de Justiça chamando-a para assumir uma vaga: “Eu não sabia se gritava: ‘Ele foi preso!’ ou ‘Me chamaram no TJ!’”. Ironicamente, ela hoje expede mandados judiciais para intimar, entre outros, foragidos como seu pai.
O fim da história não foi exatamente feliz para ela. Não porque a justiça tardou, mas, principalmente, porque Nathália não conseguia compartilhar da fúria da opinião pública. “Nunca tive ódio do meu pai, nem pensava ‘quero que ele apodreça na cadeia’.” Ela diz que procura não remoer o que aconteceu: “Mas, na prática, diversas situações me obrigam a lembrar de tudo. Aí, penso como seria se ainda tivesse minha mãe. No dia do meu aniversário, quando meu marido me vê chorando, já sabe o que é”. Seu sentimento em relação à prisão de Lopes estava mais para a tristeza do que para “alma lavada”. “Não tinha vontade de comemorar, muito menos rir dos memes.” Nathália reconhece, no entanto, que se o pai ainda estivesse foragido, ela continuaria indo aos jornais para denunciá-lo. Explica que a questão que a movia era social, não pessoal. O que a mortificava era a impunidade. “Eu precisava colocar um ponto final naquilo.”
- Neste artigo:
- crime,
- revista Joyce Pascowitch,