Condenado por mandar matar a própria filha, o empresário Renato Grembecki Archilla portou-se no tribunal como um ser superior. Alegou que um homem “estudado” como ele, que cursou o Colégio Rio Branco e a Fundação Getulio Vargas, não cometeria um crime daqueles
Por Paulo Sampaio para a Revista J.P de março de 2017 | Foto: Miguel Lebre
Dez anos, dez meses e 20 dias. Parece um período de vida considerável para se passar na cadeia, e isso fica ainda mais tenebroso se pensarmos nas condições das penitenciárias brasileiras. Mesmo assim, as redes sociais foram tomadas de protestos quando se divulgou, no começo de fevereiro, o veredicto do julgamento do empresário Renato Grembecki Archilla, 58 anos, acusado de mandar matar a própria filha, a publicitária Renata Guimarães Archilla, 21, para não ter de pagar pensão alimentícia nem deixar herança. Entre os comentários dos revoltosos, liam-se: “Ele deveria ter pegado prisão perpétua!”; “Dez anos não é nada para um monstro desses!”; “Cínico, mau-caráter, sem-vergonha!”.
No plenário, Archilla reagiu às atrocidades que lhe eram atribuídas como se não estivesse ali. Talvez por aparentar muito mais idade, sua figura dentro de um terno escuro com gravata preta combinava mais com a de um senhorzinho que aguarda o atendimento em um cartório do que com a de um criminoso capaz de contratar um matador para eliminar a filha. O mais apavorante na história são os requintes de crueldade. Na manhã de 17 de dezembro de 2001, Renata foi abordada em um semáforo de São Paulo por um papai noel que distribuía doces aos motoristas; ao se aproximar do Palio dela, o bom velhinho sacou uma pistola Taurus 380 e, em vez de doces, distribuiu balas. Ao tentar fechar a janela, ela foi atingida no rosto e no braço por três projéteis disparados pelo policial José Benedito da Silva, o homem por trás do
papai noel.
Rombo na bochecha
Embora Silva tenha deixado o local certo de estar com sua missão cumprida, as coisas não correram tão bem assim para ele. Socorrida às pressas, a publicitária sobreviveu. Atingida no rosto, ela perdeu todos os dentes da arcada superior e foi submetida, desde então, a oito cirurgias de reconstituição do maxilar. Perdeu também 40% da sensibilidade no braço esquerdo, que ela levantou para se proteger. Ao ser transportada para o hospital, no dia do crime, não reconheceu a própria imagem refletida no espelho retrovisor do carro da polícia. “Eu estava desfigurada. Tinha um rombo enorme na bochecha, tinha perdido os dentes, fiquei inchada, cheia de sangue. Chorava de dor e medo.” A primeira cirurgia de constituição do maxilar levou 11 horas. “Depois de sair da UTI, precisei ser atendida no quarto do hospital por um neurologista. Tinha ataques de sair fora de mim.” Quando recebeu alta, a vítima quis justiça. Uma série de circunstâncias na investigação logo levaram Renata a identificar José Benedito da Silva como o papai noel assassino. Silva foi preso, julgado e condenado a 13 anos de prisão. Cumpriu um terço da pena e está solto. Juntando tudo, Renato Archilla não passou três meses na cadeia, enquanto seu pai, Nicolau, também acusado de ser mentor do crime, conseguiu livrar-se por causa da idade avançada e de um câncer. Morreu aos 89.
O ódio de Nicolau Archilla pela neta era anterior ao nascimento dela. Ele sempre foi contra a união de Renato com Iara – a mãe de Renata. Os dois se conheceram quando ele tinha 19 anos, e ela, 17. Herdeiro de uma família que fez fortuna no agronegócio, Renato tinha um padrão de vida superior ao de Iara. Mas ele se apaixonou por ela. A ponto de chamá-la de “prin”, alusão a palavra princesa. “Não foi um relacionamento rápido”, lembrou Renata ao depor. “Meu pai frequentava a casa da minha mãe, e meu avô gostava dele.” Como Nicolau sempre quis ter um neto, a gravidez de Iara foi uma estratégia engendrada pelo jovem casal para levar o pai dele a aceitá-la. A primeira noite deles foi em um motel, no dia 31 de dezembro de 1978. Logo, a gravidez se confirmou, e o casal, feliz da vida, foi comunicar ao fazendeiro. Mas Nicolau tornou-se ainda mais renitente. Disse ao filho que ele teria de escolher entre ficar com Iara ou com a família. Ele escolheu a família. E Iara teve a filha sozinha.
Por quê?
Em seu depoimento no tribunal, Renata chorou diversas vezes. De estatura mignon, olhar triste, voz de garotinha, ela não esconde as sequelas físicas nem psicológicas. Estava acompanhada do marido, do tio (irmão da mãe) e de uma tia-avó. Durante as quase duas horas em que falou, fez-se no plenário um silêncio reverencial. Uma pergunta repetida por ela incansavelmente – ao que tudo indica, desde o dia do crime – resumiria quase tudo: “Por quê? Por que meu pai queria tanto que eu morresse?”. Na plateia e no júri, todos pareciam segurar a respiração. A única espantosa exceção era Renato Archilla, que chegou ao tribunal acompanhado por dois irmãos. Como ele não dá entrevistas, fica difícil saber se seu ar de pouco caso era deliberado ou estudado. Na hora de depor, o “velhinho do cartório” revelou-se um portento de arrogância. Apresentou como certificado de superioridade o diploma do Colégio Rio Branco e da Fundação Getulio Vargas. Perguntou se alguém achava que um homem como ele, “estudado”, cometeria o crime do qual estava sendo acusado. Em outro momento, quando questionado se sabia que José Benedito da Silva, recrutado em seu haras, era policial, ele conjecturou: “Quando você está no Shopping Iguatemi, por acaso pergunta ao dono da loja se ele tem conhecimento de que o segurança é policial?”. Irritada, a juíza Débora Faitarone informou que ele não estava ali para perguntar, mas para responder.
Enquanto o promotor Felipe Zilberman falava aos jurados, Renato girava uma caneta esferográfica distraidamente entre o dedo indicador e o pai de todos. Acomodaram-no à esquerda da juíza, junto aos advogados do renomado escritório de Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que ele contratou para defendê-lo. De pé, em frente ao júri, Zilberman abre uma página do processo e mostra: “Olha essa pérola: ‘O valor (da pensão) afixado está acima das possibilidades (do réu), que lamentavelmente não teve condição de levantar a quantia em razão de enormes dificuldades financeiras’. Mentiroso! Cara de pau! Esse senhor se refere a uma criação de 120 cavalos como se fosse uma declaração de pobreza! (…) Um homem que não deu um telefonema para a filha quando ela saiu do hospital depois de levar três tiros no rosto! Evidente que eu não coloco em questão aqui se o réu é um bom pai, porque isso ele nunca foi mesmo. Eu chamo a atenção, aí sim, para a conduta de um culpado que constatou que seu plano deu errado!” Aparentemente entediado, Renato consulta as horas, inclina a cabeça e apoia o rosto na palma da mão. A juíza determina um intervalo, antes da tréplica da defesa. Renata é a primeira a deixar a sala, sozinha: “Deus, ajude a fazer justiça dessa vez”, diz, juntando as palmas das mãos em um canto do corredor.
Crime gravíssimo
É a vez do advogado Rodrigo Senzi Ribeiro de Mendonça, da defesa, fazer sua preleção. Com gestos teatrais, falando aos gritos, Mendonça suou para tentar defender o que parecia ser indefensável. Enxugava a testa molhada com a manga da toga, enquanto enveredava por um caminho pedregoso: “Srs. (jurados), o que está em julgamento aqui não é se o Renato é bom pai, se é bom caráter, nem a forma como ele se senta. O que se julga aqui é um crime gravíssimo!”. Pausa dramática. “Srs. jurados, dois requisitos seriam fundamentais para que essa acusação procedesse. Primeiro, a comprovação de um vínculo mínimo entre José Benedito e Renato; segundo, uma motivação. Todo crime prescinde de um motivo. E qual seria!? Não existe!” Parêntese: a comprovação inequívoca do vínculo entre José Benedito e Renato aconteceu por acaso, pouco tempo depois do crime. Renata havia deixado o hospital e recebera sua médica para uma consulta na casa do namorado, Daniel. Enquanto aguardava, o motorista particular da médica conversou com um vizinho de Daniel, que contou a ele que um carro havia rondado a vizinhança cerca de duas semanas antes do atentado. Como achou estranho, ele anotou a placa. Era de Sorocaba, interior de São Paulo, onde ficava o haras de Nicolau Archilla. Rapidamente, a polícia descobriu que o carro pertencia a José Benedito da Silva. No dia em que Renata foi ao distrito fazer o reconhecimento do criminoso, ela examinou por trás do vidro espelhado os cinco suspeitos e apontou imediatamente para Silva. Depois de rastrear ligações feitas a partir do celular do policial, os investigadores estabeleceram a conexão dele com Nicolau e Renato Archilla.
Pelas tantas, o advogado de defesa apelou para o que chamou de “mentiras” publicadas reiteradamente na mídia: “Quantas vezes vocês já leram reportagens sobre o crime do papai noel?”, perguntou aos jurados. E citou uma frase célebre de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, para fazer uma analogia entre o material usado pela acusação e o nazismo: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade!”, bradou. Mais adiante, talvez esquecido de que havia defendido veementemente que “todo crime precisa de uma motivação”, ele perguntou: “Desde quando violência nesse país precisa de motivo?”. E enumerou uma série de crimes “sem motivo”, com datas. “Em 1999, um maluco chamado Mateus Meira disparou contra a plateia de um cinema matando e ferindo várias pessoas; em 2003, foi o caso Champinha, que torturou e matou um casal. A troco do quê? Em 2008, caso Nardoni: o sujeito joga a filha da janela. A troco de quê!!?”
O veredicto
Fim do tempo da defesa. A juíza informa que o júri, composto por quatro mulheres e três homens, vai se reunir em uma sala reservada para votar o veredicto. “Ih, isso aí pode levar minutos, horas ou dias”, comenta o tio de Renata, o comerciante Sergio Guimarães. Ele tem motivos para temer a morosidade na coreografia processual. Guimarães conta que chegou a acompanhar o oficial de Justiça encarregado de entregar a Renato Archilla o mandado de segurança relativo ao pagamento da pensão alimentícia, e que os dois levaram 45 dias para conseguir encontrá-lo. Foi preciso fazer uma “citação por hora certa” (quando se agenda a visita do oficial).“Eu comecei a ir junto, até que um dia fui ameaçado de morte pelo pai (de Renato, Nicolau). Um dos homens que trabalhavam na fazenda disse que estava autorizado a matar estranhos que entrassem lá.”
Em menos de meia hora, a juíza anunciou que Renato Grembecki Archilla foi condenado (por 6 votos a 1). Enquanto ela anunciava a sentença, Renata se abraçava com o tio, ambos chorando muito, e Renato deixava a sala sem sinais de contrariedade. Não saiu dali direto para a cadeia, segundo o promotor Zilberman, porque uma jurisprudência garante ao réu que responde em liberdade continuar livre até o último recurso (o que estava preso volta para a penitenciária). Os advogados de Renato fizeram tudo para evitar que seu cliente fosse a júri. Conseguiram “subir” o processo para análise no Superior Tribunal Federal (STF), mas o ministro Marco Aurélio Mello negou o recurso por considerar que havia intenção protelatória.
Apesar de a pronúncia (quando se decide que o réu vai a júri popular) ser de março de 2009, e o julgamento ter ocorrido apenas agora, Zilberman explica que a defesa ainda pode recorrer. Uma das possibilidades é anular o júri, alegando que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária aos autos (o que é difícil de acontecer); a outra, é comprovar que algum detalhe técnico não foi obedecido (por exemplo, se a juíza tivesse fechado as portas do plenário e impedido a entrada do público). O advogado Rodrigo de Mendonça não retornou às ligações da reportagem. Zilberman diz que, caso a defesa entre com recurso, desta vez será mais rápido. “Em um ano isso se resolve.” Por sua vez, ele próprio pretende recorrer, pedindo aumento de pena. Diz que não concorda com a decisão da juíza: “Ela estabeleceu uma pena base, levando em conta apenas que o réu é primário, tem bons antecedentes e boa conduta social. Só que, durante pelo menos 12 anos, a conduta social dele foi péssima. Se ocultava para não receber o oficial de Justiça, não pagava a pensão alimentícia em dia e jamais deu nenhum tipo de assistência à filha. Sem contar as sequelas físicas que o crime deixou em Renata. As inúmeras cirurgias, a perda dos dentes, as cicatrizes no rosto”. Renato Archilla sai do fórum pela porta da frente, acompanhado dos irmãos. Não fala com os repórteres de TV que o aguardam do lado de fora. Sua expressão é impenetrável.
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