Em luau na véspera do Réveillon de 2004, promotor de Justiça atira em jogador de basquete que teria chamado sua namorada de “gostosa”. Sobra para mais gente. A confusão acaba em morte
Por Paulo Sampaio para a revista J.P de agosto
O Réveillon de 2004 prometia ser muito animado para o jogador de basquete Diego Ferreira Modanez, 20 anos. Ele comemoraria a virada no condomínio Jureia de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, na casa dos pais do amigo Felipe Cunha de Souza, 21. Depois de passar o Natal em São Carlos, no interior, com a família, ele desceu com Felipe para a praia. Os dois chegaram quatro dias antes do Ano-Novo, mas Diego não viveu para assistir à queima dos fogos. Na madrugada do dia 30, depois de envolver-se em um bate-boca, ele foi morto com dois tiros disparados pelo promotor de Justiça Thales Ferri Schoedl, 29 anos, armado com uma pistola Taurus calibre 38. Felipe, que também se encontrava no local, foi atingido por outros quatro tiros, mas sobreviveu. Inconsolável, a mãe de Diego, Sônia, lembrou no enterro do filho que ele havia ligado na véspera para perguntar como se fazia macarrão.
A desavença que levou à morte do jogador aconteceu nas proximidades de uma rotatória à saída da praia da Riviera de São Lourenço, condomínio no litoral norte de São Paulo, onde centenas de pessoas se reuniam em torno de um luau. O pivô da discussão foi a namorada de Thales, a estudante de direito Mariana Ozores Bartoletti, 19, com quem ele se relacionava havia quatro meses. Em seu depoimento, o promotor contou que caminhava com ela próximo à rotatória quando um rapaz (“acho que Felipe”), que estava em um grupo grande, a chamou de “gostosa”, olhando ostensivamente para seus quadris. Ofendido, ele pediu respeito: “Vocês fazem isso porque estão em grupo”, disse. Os rapazes retrucaram: “O que que é? Nós não fizemos nada”, disseram, caminhando na direção dele, para intimidá-lo. Thales então disse que era promotor de Justiça e estava armado. Segundo ele, ninguém levou a sério e ainda fizeram “chacota”: “Verdade?”, perguntaram, sem parar de avançar em sua direção e de xingá-lo. Nesse ponto, segundo contou em juízo, Thales sacou a arma e disparou alguns tiros para o chão, a fim de mostrar que não estava brincando. Muitos riram, dizendo que as balas eram de festim. Sua defesa sustenta que ele só atirou na direção das vítimas porque estava acuado. Para defendê-lo, o promotor constituiu o escritório do advogado Ronaldo Marzagão, ex-secretário de Justiça de São Paulo – no governo de José Serra (2007-2010).
Turma do deixa disso
Pela ótica da acusação, o caso muda quase que totalmente de figura. A única coisa em comum é o motivo da briga: Mariana. De acordo com a vítima sobrevivente, Felipe Cunha de Souza, Thales ficou transtornado por achar que haviam mexido com sua namorada. Em seu depoimento, deu a entender que não teve nada a ver com a confusão, só chegou perto quando percebeu que algo estava acontecendo. Tentou intervir na base do “deixa disso”. “Eu só dizia [para Thales]: ‘Vai embora’.” Ao mesmo tempo, conta que o promotor, “do nada”, passou a afirmar que ele havia mexido com Mariana. “Vai se foder!”, teria dito Thales, enquanto a namorada o puxava pelo braço: “Não faz isso”, pediu ela, no momento em que ele tirou a arma do coldre: “Abaixa isso, por favor”, disse Felipe. Foi então que o promotor deu um tiro para o alto, outro para o lado: “Abaixa isso”, repetiu Felipe, até que sentiu um “baque no peito”. Para conter o promotor, segundo contou em juízo, tentou “dar um bote”. “Ele estava apontando para mim, eu não tinha para onde correr. Não ia virar e tomar tiro nas costas”. O promotor passou a correr, e Felipe, já ferido, foi atrás: “Eu fui para tentar alguma coisa por questão de sobrevivência”. Depois de acertar Felipe, Thales efetuou no mínimo mais quatro disparos: mais dois em Felipe e dois em Diego. Ao fim, os dois amigos se contorciam caídos no canteiro que divide a pista de acesso ao condomínio.
A defesa alegou que Thales não tinha como enfrentar homens da compleição física de Diego e Felipe (que também é jogador de basquete). O promotor mede 1,70 metro, contra mais de 1,95 metro dos outros dois. “Thales estava assustado, mas ainda assim agiu com cautela. Deu pelo menos seis tiros de advertência”, afirma a J.P o advogado Luís Felipe Marzagão. Ele nega as informações divulgadas pela imprensa, de que o promotor teria dado 12 tiros, uma reação considerada desproporcional. “Nem a denúncia imputou esse número.” (Thales processou um jornal que se referiu a ele como “assassino”. O juiz deu ganho de causa, por entender que a matéria o condenava antecipadamente.) O assistente de acusação, Pedro Lazarini Neto, diz que de fato ninguém sabe ao certo quantos disparos foram dados, “mas é porque nunca fizeram a reconstituição do crime, nem o exame de balística”: “Eu pedi seis vezes. Eles dizem que o réu atirou para o chão, mas onde estão as marcas desses tiros? Você viu fotos?”.
Emocionalmente instável
Se por um lado o promotor era mais baixo que os jogadores de basquete, por outro ele era praticante de musculação e foi comparado por um dos depoentes, o guarda noturno Pedro Pombo, a um “pitboy”. Pombo descobriu na manhã do dia 30 que o homem que ele havia visto correndo com uma arma na mão, trajando camiseta regata cavada preta e short florido, era Thales. Já o investigador José Rodrigues da Silva, que prendeu o promotor, disse que o localizou pela descrição feita por Mariana. Pelo que contou, não teve dificuldade em reconhecer o rapaz de “aproximadamente 1,65 metro e cabelo escorrido, estilo Ronnie Von”.
Pedro Lazarini Neto sustenta que Thales é “emocionalmente instável”: “Ele era baladeiro, bebia e andava armado. Ninguém vai para uma praia com uma pistola”, acha. Lazarini usou o depoimento do empresário uruguaio Jacques Bonhomme, dono da boate Los Gringos, na região de Bertioga, para reforçar sua tese. Segundo Bonhomme, o promotor começou a se meter em confusão quando passou a frequentar a boate em companhia de Mariana: “Ela põe fogo no Thales”. Bonhomme afirmou ter presenciado em duas ocasiões a menina dizer que algum frequentador da casa havia lhe “passado a mão”, levando o namorado a ficar nervoso e procurar pelo autor da “ofensa”.
Ao depor, Mariana repetiu a versão de Thales, com quem ela continuou namorando por algum tempo – segundo o advogado de defesa. De acordo com ela, seu namorado fez tudo para não entrar em confronto: “O Thales pediu pelo amor de Deus para que eles parassem, disse que era promotor, mas não adiantou. Então disse que ele estava armado, mas eles falaram que ele era promotor de balada e que a arma tinha bala de festim”. A partir de um determinado ponto, segundo ela, Thales atirou no chão. Depois, correu porque Felipe e Diego avançaram na direção dele. Ao que tudo indica, Diego foi morto por tabela, já que o problema do promotor era com Felipe.
Pronto-socorro
Pouco antes do amanhecer, o irmão de Diego, Bruno, que tinha ficado na casa dos pais em São Carlos, recebeu um telefonema. Era o amigo Ricardo Pereira Lima, que estava passando férias na Riviera, e contou o que havia acontecido. Disse que Diego e Felipe tinham sido socorridos por policiais militares e transportados quase que imediatamente para um pronto-socorro de Bertioga. Mariana, que chorava muito, pegou carona na ambulância e desceu no caminho. O médico William Pereira de Souza, pai de Felipe, foi com a mulher e a filha ao hospital e encontrou os rapazes semiconscientes. Diego disse: “Tio, nós vamos sair dessa”. Como o estado dele era mais grave, o removeram para a Santa Casa de Santos. A irmã de Felipe, Fernanda, foi junto. Em menos de 20 minutos, o médico comunicou que ele já chegou sem condições de reagir. Os pais de Diego chegaram quando ele já havia morrido. O pai de Felipe providenciou a transferência do filho para o Hospital Santo Amaro, no Guarujá, e acompanhou a cirurgia de retirada dos projéteis.
Enquanto isso, já em casa, desnorteado, Thales tentava entender o que havia acontecido. De acordo com o amigo Eduardo Laham, que passava o Réveillon ali, o promotor estava “muito abatido, branco, nervoso demais”. Laham afirmou que ele “falava sem parar, queria notícias dos rapazes, dizia que não compreendia porque eles não haviam parado, que ele havia dado tiro de alerta, se identificado”. Segundo Laham, Thales decidiu esperar o dia clarear para conversar com o delegado. Finalmente, saiu de casa para se entregar. Pouco depois, dois policiais bateram na porta. Laham informou que ele já tinha ido para a delegacia. A caminho, enquanto falava no celular, Thales foi interceptado pelo policial José Rodrigues da Silva, que deu a ele voz de prisão.
Dois processos
Assim que toma posse do cargo, um promotor passa por um período de avaliação que leva dois anos e se chama “estágio probatório”. Quando matou Diego Modanez, Thales Ferri Schoedl só havia cumprido um ano e três meses desse período. Isso significa que, além do processo criminal, ele teve de responder a um administrativo, no qual defende seu direito de permanecer no cargo (que é vitalício). Caso perdesse o direito, não contaria mais com a prerrogativa de ser julgado por um foro especial formado por 25 desembargadores – e iria a júri popular. Previsivelmente, os dois procedimentos acabaram se esbarrando. Desde 2005, a proposta de não vitaliciamento (afastamento do cargo) foi julgada várias vezes, chegou a ser decretada, depois revogada, passou por liminares e recursos até que, em agosto de 2007, decidiu-se pelo vitaliciamento (permanência). O caso então foi levado pela procuradoria da Justiça de SP ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em Brasília, que, em junho de 2008, decretou o não vitaliciamento (exoneração). Luís Felipe Marzagão, da defesa, afirma que o CNMP analisou o caso com base no “material da imprensa” – e não colhido nos autos.
Pedro Lazarini Neto, da acusação, diz que o pedido de exoneração não foi feito com base nas matérias publicadas nos jornais, justamente para não misturar as coisas: “Ninguém pode dizer que apelamos para o homicídio no processo administrativo. Nossa tese se baseia no exame psicotécnico de Thales, feito quando ele prestou concurso para o MP. A psicóloga detectou sinais visíveis de imaturidade, incapacidade de reagir sob pressão e baixa autoestima”. Lazarini garante ainda que o promotor “pós-datava os feitos reiteradamente (dava como trabalhados dias em que ainda estavam por vir e não comparecia)”.
Thales entrou com um mandado de segurança no STF e conseguiu uma liminar que garante sua permanência nos quadros do MP, mas suspende o exercício de suas funções. Ele alegou que somente a decisão judicial poderia reverter o que já estava decidido pelo órgão especial do MP. Argumentou ainda que o CNMP não pode rever a decisão. O STF entendeu que o argumento era razoável. A assessoria de imprensa do CNMP informou à reportagem que, “com base em seu regimento interno”, o conselho “tem poder para rever atos dos órgãos e membros do Ministério Público dos estados e da União, logo, tinha competência para requerer a revisão do ato do Conselho Superior do Ministério Público de SP que concedeu vitaliciamento ao promotor”. Em novembro de 2008, graças à liminar, Thales foi julgado como promotor de Justiça pelo foro especial e absolvido por unanimidade. Vinte e três desembargadores entenderam que ele agiu em legítima defesa.
O assistente de acusação pretende ir adiante: “Ele (Thales) está pendurado apenas por uma liminar. Se ela cair, tudo o que foi decidido levando em consideração o cargo de promotor, poderá ser inteiramente revisto – incluindo o julgamento. É possível, inclusive, que tenha de devolver todos os salários que ganhou enquanto ocupou o cargo, sem exercer a função”, diz Lazarini. O salário atual de Thales, de acordo com o portal de transparência do MP, é R$ 24.818,71.
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