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por Paulo Sampaio para a revista PODER

Antes de embarcar para Miami, li várias matérias em jornais americanos que insistiam em eleger na cidade um lugar assim “so New York”. Algo com a energia do Meatpacking, ou de Tribeca, do SoHo, um bairro onde houvesse pessoas caminhando nas calçadas. Será que isso existe? Elizabeth Stifter, massagista no spa do hotel Soho Beach House, no qual me hospedo, me desencoraja. “In fact, Miami is so Las Vegas”, decreta, enquanto aperta os músculos das minhas costas com as mãos besuntadas de um óleo com aroma de especiarias. Ela conta que chegou de Nova York há oito anos com o namorado, o fotógrafo Guy Lebaube. “Nova York é uma cidade cara, e eu estava em um período de rendimento fraco.” Sua situação profissional melhorou, mas ela diz que até hoje não conseguiu se integrar a Miami e que Miami tampouco conseguiu se integrar a ela.

Na avaliação de Elizabeth, as pessoas chegam ali pensando em vestir roupas com cores incandescentes, em tomar drinques imensos e soltar a franga. “A praia é legal, tem sol, bons lugares para comer, mas ninguém pede desculpas por aparecer com um macaquinho rosa pink.” O que mais a incomoda na cidade é a “qualidade” do show off. Para um nova-iorquino acostumado a trabalhar enquanto come e a otimizar a pose em 15 minutos, é estranho conviver com aquela carreata de conversíveis em South Beach, com o jeito ostensivo dos cafuçus de mocassim branco e gel no cabelo, que ela chama de “forasteiros de todos os lugares do mundo”. Nesse momento, me vem à cabeça nomes de brasileiros que adoram Miami. Fernando Collor, bispa Sônia, Ricardo Teixeira, Marcos Mion, Emerson Fittipaldi, Zilu Camargo… Pergunto: “Seria um problema de miscasting? O erro não estaria no cenário, mas na figuração?”. Bom, para quem apenas visita Miami, a cidade parece um grande camarote vip à beira-mar, um Jurerê Internacional gigante. “Yeap!”, diz Elizabeth, com um sorriso malvado. Ela fica amiga de PODER no ato.

Lincoln Road, não!

O debate sobre o que fazer na cidade se estende até a saída do spa. Ali, junta gente para pensar nas opções. Os nativos, como a recepcionista Meline,  garantem que a noite da cidade “é uma das mais animadas dos  Estados Unidos”. Peço de antemão que não sugiram a Lincoln Road, espécie de Barão de Itapetininga americanizada. Fechada para carros, a rua vive abarrotada de turistas desesperados por compras. Os restaurantes servem comida estilo “de navio”, com porções imensas de macarrão com molho enlatado ou cascatas de lagostas enfeitadas com guarda-chuvinhas de papel. Entendido. Alguém então fala do Catch, na Collins, a avenida paralela à Ocean Drive, em South Beach. Especializado em frutos do mar, o restaurante abriu há seis meses e tornou-se ‘in’ na mesma hora. Ao apresentá-lo, os guias citam primeiro a frequência de artistas como Leonardo DiCaprio e Camilla Belle, depois da comida. Há gente não tão conhecida vestindo casacos Saint Laurent de US$ 8 mil. Flashes são proibidos. As celebridades adoram pratos como o bolo de arroz crocante com tartar de atum bigeye (da Ilha da Madeira) e ovas de peixe voador numa infusão de wassabi. Uma das explicações para o sucesso do Catch pode ser o que o sócio Mark Birnbaum observa com orgulho. “Todo mundo diz que o Catch é tão Nova York! Você não se sente como se estivesse em South Beach!” Ou seja, em South Beach é chic se sentir como se você não estivesse em South Beach. Sintomático. Meus consultores dão outra ideia: Brickell, uma faixa fervida de alguns quarteirões ao lado do downtown. Vou até lá. Casting de novela do SBT, Mustang amarelo passando devagarzinho, na pegação, e muitas variações de Jennifer Lopez. As árvores são decoradas com luzinhas, como se fosse Natal. Os restaurantes ficam no térreo de predinhos art déco, contíguos a pequenas galerias comerciais. Quem já esteve nos minisshoppings da Barra da Tijuca, no Rio, consegue visualizar melhor. Comida nada demais.

A conversa na porta do spa rende informações sobre baladas. No próprio Soho Beach House, dizem, tem um bar “bem frequentado”. O que será isso?  Aparentemente, um camarote vip à beira-mar. No Gale South Beach, outro hotel da região, tem o Regent: a mesma turma, com pequenas variações de mocassins. Pergunto sobre Wynwood, o Arts District , ao norte da cidade. Eles o recomendam em uníssono.

Ravióli de pato

Desembarco na 2nd Avenue, a principal do distrito, com fome. A região é árida, coalhada de grafites em muros em que o sol incide inclemente. Aqui e ali, há galerias, lojas de arte, roupas e restaurantes. Não avisto uma sombra nas calçadas, em uma faixa de pelo menos quatro quarteirões. Mas gosto da atmosfera. É sempre mais divertido estar entre os “entendidos em arte”.  Há pouco mais de cinco anos, Wynwood era uma região cheia de armazéns abandonados e traficantes. Hoje, é tida por especialistas como um dos mais importantes polos de arte do mundo, com mais de 75 galerias em atividade.

Entro no Joey’s, um café intencionalmente despojado, em que se servem pratos como ravióli de pato com cogumelos trufados, batatas assadas e petit-pois. Descubro com o garçom que o lugar foi o primeiro aberto na região e que o dono, Joey, é filho do megaempreendedor Tony Goldman. Em 2004, Goldman investiu US$ 35 milhões em uma dúzia de imóveis desocupados naquela área, para transformá-los em espaços de arte. Morto em 2012, aos 68 anos, era considerado um visionário que enxergava grandes negócios em regiões em que outros incorporadores só viam desolação e abandono. Atribui-se a ele o pontapé inicial no revival do SoHo, em Nova York, e também a promoção de South Beach, que passou de refúgio de aposentados a um dos destinos mais procurados por festeiros enriquecidos de todo o mundo.

Na varanda do Joey’s há dez mesas de ferro cinza chumbo com cadeiras idem. As comensais (a maioria mulheres) misturam peças estilo saia indiana com sapatilha Chanel, pulseiras de miçanga com joias assinadas e óculos de sol grandes. Uma dupla que faz lembrar Cássia Kiss e Totia Meireles conversa sobre arte: “Cássia” come bacalhau à siciliana, com molho de tomate e azeite; “Totia” foi de cogumelos grelhados, polenta coberta com berinjela e espinafre ao óleo de ervas. Peço para chamar o chef. Ivo Mazzon é um italiano gaiato que se mandou de Roma há dez anos, foi garçom de pizzaria em Nova York, trabalhou na famigerada Lincoln Road e agora virou chef hype. Aos 33 anos, é casado com uma venezuelana, tem um casal de filhos e usa duas argolas nas orelhas. Enquanto eu como uma picanha meio coxão mole, Mazzon me conta em ‘italianglês’ fluente que a atividade cultural ali cresceu exponencialmente nos últimos anos. Ele aponta a vizinha Wynwood Walls, galeria de grafites a céu aberto com dois galpões que abrigam parte da coleção de arte dos Goldman. Depois da morte de Tony, sua filha, Jessica, tomou a frente dos negócios.

No mesmo espaço funciona o Kitchen & Bar, onde o figurino dos frequentadores convive em perfeita harmonia com a prosódia local. Sentada à cabeceira de uma mesa só de homens, uma mulher de bata azul, com um turbante colorido e óculos de sol grandes, pontifica sobre arte psicodélica mexicana, entre garfadas de purê de quinoa. Na mesa ao lado, uma morena com um tailleur justíssimo e Louboutin de saltos vertiginosos foca no laptop enquanto tenta acertar a boca no canudo que leva a um copo de um suco verde.

O restaurante é aberto, com vista para os jardins de Wynwood Walls, de tal maneira que se assiste ao movimento dos visitantes. Um casal todo de preto, ela de boina, ele com um cachimbo na boca, me conta que veio de Long Island sem saber muito sobre o Arts District. O lugar foi, para Billy Deam, 56 anos, e sua mulher, Lizie, de 53, uma “boa surpresa”. Deam olha para um grafite assinado pelo brasileiro Nunca. “Incrível”, resume. Osgemeos também expõem ali. Ouço sotaques do mundo todo. O deejay toca bossa nova sem parar. Em português, francês, “Samba Saravah”, “Wave”, “Água de Beber”. E também Elton John, Beatles, tangos modernos, um mix tipo bacaninha. Decido que quero explorar mais Wynwood. Volto no dia seguinte.

Céline e Dior

Tudo começou em 2002, quando montaram em South Beach a primeira versão local da prestigiosa feira suíça Art Basel, de pinturas, esculturas, fotografias, filmes, desenhos e instalações. A carência de algo no gênero em Miami fez pipocar diversas feiras satélite longe da praia, no Design District, vizinho do Arts District e até então conhecido pela grande quantidade de showrooms de móveis. Com o tempo, o cenário no Design District mudou e hoje a região concentra lojas de grifes como Dior, Prada, Christian Louboutin e Céline. Louis Vuitton e Hermès chegaram ano passado. A fachada da LV foi toda grafitada pelo artista californiano Retna, que recriou em vermelho e azul as letras da marca. “O povo que investe em arte compra Prada”, acredita a guia turística Susan Hills. Ela explica que, quando o Design District ficou muito caro, as atenções se voltaram para o Arts District (Wynwood). A partir de 2006, e de Tony Goldman, aquele pedaço foi repaginado. Em 2008, por causa do colapso na economia americana, houve uma queda no ritmo dos investimentos. A retomada veio em 2012. Embora Goldman tenha sido o principal investidor, pelo menos duas famílias importantes ligadas às artes chegaram antes. Os Margulies e os Rubell, donos de algumas das mais valiosas coleções de arte contemporânea do mundo, já tinham aberto galerias ali. Foram seduzidos pelo isolamento do local, que agregava estilo às suas iniciativas.

Hoje, esse isolamento é coisa do passado.  Desde que a Art Basel consagrou Wynwood como o seu principal braço logístico, a visibilidade do lugar aumentou muito. Não daria mesmo para concentrar a feira em Miami Beach: em sua última edição, em dezembro de 2012, focada na obra de Andy Warhol, nada menos que 130 museus e instituições de arte de todo o mundo e 250 galerias de 31 países apresentaram trabalhos nos quatro dias de exposições. O evento atraiu mais de 50 mil visitantes e movimentou cerca de US$ 500 milhões, segundo os organizadores. Calcula-se que o impacto financeiro da Art Basel em Miami é da ordem de US$ 1 bi. O trânsito de jatinhos particulares no aeroporto da cidade foi maior do que o que se viu na disputa do Super Bowl, a megadecisão da National Football League (NFL).

Como sempre acontece onde há muita arte exposta, o público é pitoresco. Em seu último livro, Back to Blood, Tom Wolfe não só aborda o engarrafamento de jatinhos particulares em função da Art Basel, como relata um concorrido vernissage visto pelos olhos de uma cubana exilada em Miami chamada Magdalena.

Instalação viva

Infelizmente, no dia em que estive em Wynwood não havia vernissages. Mas sobrou muita coisa para apreciar. No sossegado terraço do Panther Coffee, por exemplo, o público mais parece uma instalação viva. Um garoto vestindo jeans gastos, camiseta desbotada com silkscreen da banda de rock Led Zeppelin e Havaianas que deixavam à mostra a unha do dedão do pé direito (só ela) pintada de vermelho ouvia música em um fone de ouvido gigante enquanto teclava no laptop. Ali perto, uma adolescente de touca de crochê lilás lia, com os pés cruzados em cima da mesa, Reconciliation – Healing the Inner Child, que descobri depois ser obra do vietnamita budista Thich Nhat Hanh. “Fala de como o comportamento de nossos tataravós e bisavós se reproduz na gente”, explicou.

Do outro lado da rua, no Wood, um lugar supostamente tosco, todo de madeira rústica e tijolos aparentes, onde tocam rock, o barman Cole Martin, 27 anos, cabelos compridos e ondulados, está ocupadíssimo preparando drinques. No alto da parede, atrás dele, há uma cabeça de zebu. Testo a concentração de Martin, tirando fotos do ambiente. Logo, a comerciante meio bebum Chase Smith, 43, passa a me fazer perguntas e descobre que sou carioca. “Passei um tempo no Rio”, disse ela, animada. “Fui para ver no que dava.” Aparentemente, não deu em nada. “Você pensou que Miami era só South Beach?”, pergunta Chase. “Claro que não, imagina”, minto. O importante é que, pelo visto, ainda não há em Wynwood pontos de ônibus para linhas que passam em South Beach. Dá tempo então de você visitar o pedaço antes da invasão dos farofeiros. Ou você prefere um drinque gigante?

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