Vladimir Putin soprou velinhas mais uma vez no sábado (07). O czar da Rússia moderna celebrou 71 invernos, muitos deles dominando os corredores do sempre gélido Kremlin. Se rolou festinha, só a KGB sabe. E se ocorreu, deve ter sido um petit comité em algum bunker. Dada a situação atual do político, por conta da Guerra Russo-Ucraniana, a presença dele em um bistrô de Ostozhenka – o bairro moscovita equivalente ao chic Knightsbridge londrino, endereço repleto de bilionários russos, amigos de Putin, que certamente o parabenizaram de alguma forma por mais um ano de vida – teria implicações reminiscentes do trágico fim da dinastia Romanov, a mesma que selou o destino do primo de George V.
Mas, falando em bistrô, reza a lenda que o termo tem origem em um fato causado por conterrâneos de Putin, mas datado de muito antes de seu nascimento, em 7 de outubro de 1952. Curiosamente, trata-se de algo que contém exemplos de questões atualíssimas nesse momento, como branding e adaptabilidade, e ainda outros que evidenciam como a pièce de résistance da história, às vezes, está deliciosamente destacada como o prato principal de um banquete servido nas entrelinhas de quem a constrói. Segue o fio…
Era uma vez, em Paris, no fim de março de 1814, antes da amarga derrota de Napoleão Bonaparte e seu exército na Batalha de Waterloo, quando os russos ocuparam a cidade ainda sem a luz da Torre Eiffel. Eles, famintos e ansiosos, clamavam “быстро” (“bystro”), pedindo comida rapidamente, marcando assim a nascença de um termo tão intrinsecamente ligado à cultura parisiense.
A França, terra de revoluções e renascimentos, sempre foi historicamente marcada como um país que soube transformar adversidades em oportunidades. Aquela invasão, embora um capítulo sombrio, foi resolvida em dois dias. E astuciosamente metamorfoseada em algo simbolicamente elegante, como um bistrô, é um exemplo disso.
E, por falar em transformações, outra histórica foi a de adaptabilidade exemplar dos chefs que, pós-Napoleão, transformaram suas casas em locais de encontro e deleite gastronômico. Uma demonstração magistral de resiliência e rebranding, adicionando nuances à ‘marca França’. Esses chefs, com sua aguçada capacidade de se adaptar, movidos também pelo medo de perder suas cabeças, fizeram da necessidade uma virtude.
Converteram suas maisons e hôtels particuliers então odiados pelo povo, em bistrôs abertos a ele, unindo pessoas em torno da boa comida. Estavam, à sua maneira, lendo nas entrelinhas do tumultuado período pós-Napoleão, apresentando a todos a maravilhosa arte de “se restaurar”. Cabeças continuaram a ser cortadas, mas só as necessárias para o preparo de um prato tipicamente francês: Coq Au Vin. Por sinal, essa versão à francesa do Frango À Cabidela que é uma das marcas registradas de Portugal teria surgido por causa de uma fome de leão daquelas de… Napoleão Bonaparte!
Consta nos anais folclóricos que o Coq Au Vin foi criado graças ao ex-imperador em um de seus momentos mais esfomeados, durante passagem por algum vilarejo francês desconhecido. Ao avistar uma estalagem (que não era nenhum bistrô), Napoleão, famoso por seu apetite voraz e ambições igualmente grandiosas, invadiu o local, prestes a encerrar o expediente, exigindo que lhe servissem a última refeição do dia.
O cozinheiro da estalagem (que, àquela altura, nem imaginava que sua profissão viraria sinônimo de requinte) dispunha apenas de poucos ingredientes: um galo pequeno, de crista discreta, alguns vegetais e um pouco de vinagre. Degolou, limpou e desossou a ave, e depois juntou tudo e disso, sem querer, matou a fome napoleônica do soberano e serviu de bandeja aquele que é considerado um dos melhores pratos da culinária francesa.
Por sinal, assim como os bistrôs surgiram como um ato de adaptabilidade dos chefs, na realidade mundial de 2023, a haute cuisine continua a se transformar e a encontrar receitas para sua própria restauração. O desafio da hora, mais de 200 anos depois da Batalha de Paris, inclui desde mudanças na macroeconomia até os novos gostos dos consumidores que têm moldado e remodelado várias outras indústrias.
E a da alta gastronomia deverá viver uma revolução em 2024. De acordo com uma pesquisa recente, a indústria global de restaurantes que oferecem serviço completo, ou à la carte, deve faturar mais de US$ 1,3 trilhão (R$ 6,7 trilhões) nesse ano, com projeção de faturamento para quase US$ 1,9 trilhão (R$ 9,8 trilhões) em 2028, como aponta um relatório divulgado no mês passado pela ReportLinker.com (“Full Food Service Restaurant Market: Trends, Opportunities and Competitive Analysis [2023-2028]“).
Os principais impulsionadores desse boom são o crescente desejo pós-pandemia por novas experiências gastronômicas, principalmente em relação aos millennials e à Geração Z, gerações formadas por consumidores que adoram os restaurantes com cardápios diferenciados e opções de pratos feitos com ingredientes de origem local e sustentável. E ainda o fenômeno #Instafood e, claro, as celebridades, cujos flagras registrados por paparazzi saindo ou entrando em certos restôs hypados, ou seus próprios registros postados no Instagram prestigiando os seus favoritos (inclusive os alinhados com suas causas, como o veganismo e o tratamento ético aos animais) as ajuda tanto a potencializar suas identidades de marca quanto agrega valor às deles.
E isso foi apenas um aperitivo: a arte de comer bem, nicho dessa indústria trilionária que movimenta seus bilhões, está prestes a se tornar uma espécie de versão “quiet indulgence” do “quiet luxury”. O que antes era definido por formalidades rígidas e exclusividade tem sido repensado. Menos interessados em ostentação, os jovens gastrônomos anseiam por experiências culinárias ‘ricas’, mas em um ambiente se exclusividade descontraída.
A alta culinária está em um movimento de democratização, buscando fazer certas opulências parecerem menos ‘esnobes’ e até mesmo acessíveis a um público mais amplo, e não apenas à elite. No entanto, essa inclusividade não se traduz necessariamente em preços mais baixos, mas sim em uma adaptação do luxo aos novos hábitos consumidores. Uma pitada de discrição que pode fazer uma grande diferença. E uma memória histórica olfativa de resistências passadas.
Uma dessas foi o nascimento de “pièce de résistance”, expressão que tem raízes na gastronomia francesa do século 19, uma época de refinamento e ostentação. Originalmente uma referência ao prato principal de um banquete, evoluiu para máxima que descreve o foco ou o destaque de qualquer evento. Era a cereja do bolo, por assim dizer, e simbolizava o apogeu do luxo, algo que Napoleão, com sua gana pelo grandioso, sem dúvida teria apreciado.
Nesse contexto, pièce de résistance serviria como descrição desse silenciamento do luxuoso pelo qual passa a gastronomia de alto padrão, uma vez que focar no próprio bolo, e não na cereja, serve de sutileza útil para desviar olhares gulosos por liberdade, igualdade e fraternidade. Quando existem cabeças em jogo, menos é mais.
O mundo segue se adaptando, e sempre foi assim. A adaptabilidade não é apenas uma característica, mas uma necessidade em constante mudança. Assim como os chefs franceses, o mundo também aprendeu a dançar conforme a música, especialmente quando a música é orquestrada por líderes poderosos e carismáticos, sempre aptos a se adaptarem conforme o ritmo político exige.
Faz lembrar o aniversariante de sábado, Putin. Se virando no 30 entre tensões e transformações, ele permanece uma figura constante, se adaptando, assim como a Rússia fez ao longo dos séculos. Gostando ou não, Putin, com tal habilidade para a roleta russa geopolítica, e o mundo, enquanto convivem e interagem comendo um Arroz à Grega fingindo adorar a uva passa que lhes dá ânsia, são uma ‘marca’ da eterna dança de poder e política que entrelinha as narrativas da humanidade.
Napoleão, com seu império expansivo e ambições sem fim, foi outra. Mas terminou exilado, sem conseguir reescrever as regras do jogo do próprio império. Serve de deixa para pensar em quem convidar para jantar fora com os mais chegados: se até uma pimenta forte, intragável para muitos comedores, de alguma forma se adapta até mesmo aos paladares de vários deles, quais serão as modas culinárias do futuro?
Um encontro apimentado ideal para um bistrô com comida boa, que fica melhor ainda com uma conversa quente e regada a champanhe. Ou vodka. Mas que não eleve demais os ânimos. Os chefs modernos e seus respectivos impérios bilionários de bistrôs, desde Alain Ducasse a Gordon Ramsay e Guy Martin, o visionário à frente do Véfour desde 2011, poderiam ser abordados.
Esses celebrity chefs souberam capitalizar sua fama, a tornando mais preciosa que estrelas Michelin, são tópicos que sempre rendem boas conversas. Outro seria ponderar o que o futuro reserva para Putin em seu próximo aniversário? Ainda líder e o maestro de sua orquestra, ou regendo uma sinfonia diferente? Mas aí já é outra história. Bon appétit! Ou seria melhor dizer bon voyage? Melhor combinar com os russos.
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