Por Adriana Nazarian para a revista PODER de junho
O consultório do psiquiatra Flávio Gikovate, nos Jardins, em São Paulo, tem duas escadas diferentes. Uma delas, meio escondida, não passa pela recepção e dá acesso direto a sua sala. O motivo é atender o desejo de pacientes que preferem a discrição. Pudera: dos 9 mil que constam em seu currículo – são 46 anos de carreira –, cerca de mil, ele calcula, são os homens e mulheres mais bem-sucedidos do país. Para dar conta da demanda, ele carrega dois celulares e lembra com nostalgia da época em que tinha um chalé na montanha sem telefone fixo. “Hoje todos acham que você está disponível 24 horas. A qualidade de vida piorou para quem está em atividade”, diz.
Aos 70 anos, Gikovate soube reciclar os aprendizados de sua profissão e mantém ativa a rotina de lidar com dilemas e inquietações da mente contemporânea. Casado há quase 40 anos e dono de hábitos simples, já publicou 32 livros, participou de uma novela global no papel dele mesmo e tem um programa semanal na rádio CBN, o No Divã do Gikovate. Para PODER, ele desvenda o quebra- cabeça que rege o pensamento dos grandes empresários, suas angústias e desejos. “Não é fácil trabalhar com essa gente, mas ao mesmo tempo é encantador porque são pessoas muito inteligentes. Não são apenas mais vaidosos, mas também guerreiros e cheios de obstinação”, diz. Nesta entrevista, Gikovate revela alguns dos principais conflitos de seus pacientes.
NÃO SÃO SANTOS
Os poderosos são pessoas muito focadas, objetivas, competentes, intuitivas e ousadas. Cuidam muito bem de seus próprios interesses, mas não obrigatoriamente dos alheios. Não são santos, o que está certo também. Muitos deles tiveram frustrações na infância ou adolescência, cresceram com algum tipo de ressentimento – ou porque não eram tão bonitos, não tiveram tanto sucesso com as meninas nem condição financeira. A motivação não acontece só por causas nobres. Eles se desenvolvem com alguma frustração e com sede de reverter isso. Muitas vezes, quando bem-sucedidos, tornam-se rancorosos, agressivos e adoram provocar inveja em outras pessoas.
O MEU É MAIOR
Nesse grupo, a vaidade é proporcional à inteligência e existe certo prazer exibicionista. Os vaidosos vivem se comparando. O homem bem-sucedido se coloca ao lado de outros com o mesmo perfil e pode se sentir desgostoso quando alguém tem mais do que ele, o que gera campeonatos ridículos. Eu tenho um apartamento de mil metros quadrados, mas agora lançaram um de 1.200! A disputa se estende também em relação às mulheres, é preciso casar com meninas jovens e lindas, desfilar com elas como se fossem troféus. Esse jogo é uma fonte permanente de angústia. Os poderosos raramente são serenos, se contentam com o que têm: estão sempre querendo progredir. Lembra o vício, quanto mais tem, mais se quer. Nada sacia, o copo está sempre meio vazio. É tudo muito efêmero, as coisas conquistadas duram muito pouco. Você deseja um relógio caríssimo na vitrine, mas quando o coloca no pulso nem nota mais. O grau de satisfação que as coisas podem proporcionar é muito menor do que a impressão que causa, o que gera decepção e ânsia de consumo por novidades permanente. A mesma necessidade acontece no plano sentimental. Então, troca-se de parceiro sexual o tempo todo. É um sem-fim que não leva a lugar algum.
SUPERCONSUMO
O capitalismo tem várias propriedades diferentes. Antigamente, o capitalista morria de orgulho do que produzia, mas, recentemente, ele se transformou em alguém que tem orgulho do que consome. Os primeiros capitalistas eram muito displicentes e despojados do ponto de vista do consumo. Henry Ford (1863-1947) gostava do fato de ter construído uma fábrica que transformava um objeto aristocrático em algo democrático. Hoje, há poucos com esse perfil. Antônio Ermírio de Moraes é um deles. Mas faz tempo que as pessoas afortunadas fazem questão de mostrar riqueza, não querem se destacar pelo que fazem. Esse comportamento modifica o perfil das relações sociais e gera insatisfação porque no consumo todo mundo é perdedor, a não ser o número 1. Ativa um tipo de capitalismo diferente, de bens e pertences descartáveis.
BRINCAR DE POVO
O homem é insaciável e frustrado até porque a dinâmica hoje é produzir cada vez mais coisas novas. Todo mundo tem iPhone 4? Vamos fabricar o 5. A política da Apple, por exemplo, é transformar o produto que ela mesma criou em obsoleto, fabricando algo supostamente melhor. Há quem faça fila na porta para ser o primeiro a conseguir a novidade, mas nunca o poderoso. Ele não faz fila, não vai ao cinema – agora vai um pouco mais porque tem lugar marcado. Ele quer apenas produtos exclusivos e acaba perdendo muito. E, no fundo, sabe disso e até se ressente. Conheci um cidadão muito rico que tinha apartamento na França. Perguntaram para ele: por que ter esse imóvel se você pode se hospedar no melhor hotel do mundo? “Para poder acordar de manhã e ir sozinho a pé na padaria buscar pãozinho”, disse. Hoje, metade de Miami é brasileira. As pessoas adoram comprar apartamento lá. Justamente para poder levar a vida de um americano normal, ou seja: não ter empregada o dia inteiro, ir sozinho ao supermercado. Eles vão para Miami para poder fazer aquilo que eles renunciam aqui, isso é o que mais caracteriza essa frustração. Um amigo tem apartamento em Nova York e diz que lá ele gosta de “brincar de povo”. Vai à lavanderia, faz sozinho o café da manhã. Quem compra apartamento fora não transfere o estilo de vida daqui para lá, mas se integra ao de fora, mais singelo e democrático, muito menos poderoso – e eles adoram. Acabo convencido de que eles gostam mesmo é da vida do povo. Então, não sei por que montam tanta estrutura. Aqui, é o local da disputa, lá é parque de diversões.
ESPELHO, ESPELHO MEU
O Brasil é um país dos mais consumistas, onde a elite é muito mais exibicionista. Tenho uma paciente que mora em Nova York e ela costuma dizer que aqui os ricos se mostram para o povo, enquanto nos Estados Unidos eles se exibem para o americano rico. O sinal de riqueza não está no carro ou na roupa que eles vestem, mas no tamanho do cheque que fazem para festas beneficentes. Lá fora, a cozinha faz parte da vida dos ricos americanos, mas os quadros que eles têm na parede são muito valiosos. O exibicionismo é mais restrito.
JOGO DE CENA
O indivíduo exibe felicidade por usufruir de bens, por frequentar certas festas e mostra sentimentos que nem sempre está vivendo. É um jogo de cena que tem mais a ver com vaidade. Ele precisa aparecer como poderoso, bem-sucedido, realizado, pleno, feliz sentimental e sexualmente, mas nem sempre é verdadeiro. A impressão é que as pessoas mais simples, com menos ambição, são mais serenas porque não fazem parte de um mundo tão competitivo. Pensadores como Aristóteles mostraram que a qualidade de vida está veiculada à temperança. Um pouco de esforço, de trabalho, lazer, sacrifício, gasto e poupança. Mas isso não combina com o perfil poderoso, que é radical e competitivo.
FORA DE COMPETIÇÃO
Um problema comum é quando alguém muito bem-sucedido tem um filho não tão brilhante. Ele não está à altura do pai e se sente frustrado porque tem um referencial muito alto, que não consegue alcançar. Muitos jovens acabam estragados porque os pais dão demais. Não sei quantos agem involuntariamente e quantos fazem isso de propósito para não ter concorrência. Quando o pai dá uma Mercedes de ultima geração para o filho de 18 anos, o que ele espera? Que ele seja um “bundão” para nunca vir a competir com ele. Há problemas de sucessão nas empresas que geram conflitos, briga entre irmãos. Onde há dinheiro, há problema de todo tipo.
NO LIMITE
Todo mundo pensa que, ao se deparar com a proximidade da morte, a vontade do homem é de viajar o mundo, aproveitar a vida, mas não é nada disso. Ele prefere ficar em casa, às vezes até se aproximando mais da religião. Quando se tem prazo de validade, as coisas terrenas perdem a graça. E são esses os verdadeiros valores, não adianta. Pode o mundo espernear o quanto quiser.
MORTE E DOENÇAS
Os ricos têm sempre medo de perder posição para concorrentes, mas não temem empobrecer. Eles confiam muito no próprio taco depois que conseguem um resultado positivo, o que é um perigo porque estão subestimando o quanto o mundo muda rapidamente e ter tido sucesso no passado não garante nada hoje. Eles também têm muito medo de doenças. Não tem dinheiro que compre saúde e evite a morte. Muitos gostam de gravitar em torno dos médicos porque se sentem mais amparados. São grandes consumidores de check-up e medidas preventivas, mas nem sempre das medidas mais importantes, como esporte e pouco consumo de álcool. Eles não gostam de nada que exija sacrifício, mas não querem morrer. Então, tomam remédio para tudo.
PAPO CABEÇA
Ao contrário do que ocorria há 20 anos, hoje os poderosos estão cada vez menos entusiasmados com as coisas do conhecimento e da cultura. E isso aumenta o tédio. Imaginar que é possível se divertir sem atividade cultural ou esportiva é quase uma ilusão. O jeito mais legal de gastar o tempo livre é com cinema, leitura, conversas inteligentes. Interagindo com circunstâncias em que exista algum raciocínio.
VÁLVULA DE ESCAPE
O refúgio acaba sendo na bebida e em atividades vinculadas à ideia de prestígio. São pessoas que têm barcos, casas de campo onde cruzam com não sei quem, almoçam não sei onde, mas a maioria acaba não fazendo nada. Bebem, comem, dormem e tramam como farão para ficar ainda mais ricos, imaginando que isso é a solução. Se eles não encontram a serenidade que gostariam com as coisas que já possuem, não é dobrando de tamanho que vão conseguir. É um caminho que só traz competição. Existem equívocos grosseiros na ideia de que o dinheiro é fonte de grande felicidade. É claro que dinheiro é bom para viajar, passear – quem disser que não gosta é mentiroso. Mas não precisa ser com avião particular, no hotel mais caro do mundo. É possível ser feliz vários degraus abaixo.
ESSA TAL FELICIDADE
A felicidade combina a ausência de dores e de alguns desprazeres – e para isso o dinheiro ajuda – com alguns prazeres. Uma relação afetiva de qualidade, uma vida erótica e física com disposição, alguns prazeres corpóreos – dança, esporte – e outros da alma, como música e leitura. Os poderosos e inteligentes sabem disso. Mas existem regulamentos: todos têm determinadas casas, empregados, a mesma adega, a mesma bolsa. É tudo caro para caramba, mas é tudo igual.
REFLEXO
As mulheres bem-sucedidas são aquelas que copiaram o padrão masculino. Se o modelo unissex está acontecendo no mundo, ele está muito machista. O bom será quando as meninas jogarem futebol e os meninos dançarem balé. O padrão masculino é o que está em vigor e ele é composto por competição e agressividade. As mulheres copiam, mal, até o sexo casual. Muitos homens divorciados saem com moças que, aparentemente, estão a fim de uma vida mais livre, mas querem mesmo é casar. O ideal seria se voltássemos um pouco nos anos 1960, quando os homens aderiram ao padrão feminino, à época do movimento hippie, ficaram cabeludos, usaram sandália de dedo e bolsa a tiracolo. Depois vieram os yuppies, as mulheres ganharam gravata e estão engravatadas até hoje. O feminismo inteligente ainda não nasceu.
COPILOTO DO MARIDO
A exigência de performance social cresceu muito para as mulheres. Antigamente, bastava ser mulher e esposa do fulano, agora é preciso ser alguma coisa. No mundo dos poderosos, a mulher tem muita ocupação no cargo de copiloto da vida familiar. Então, ela realmente não trabalha. Tem muito serviço em casa: fazer ginástica, malas, comprinhas. É uma vida dura e não estou brincando. Não há cabimento a mulher trabalhar fora para ganhar R$ 10, 15 mil por mês quando o cara ganha isso por minuto.
RESULTADOS IMEDIATOS
Todo mundo procura mais cirurgia plástica e dermatologia cosmética do que psicoterapia. É um erro. Estão muito preocupados com a casca e pouco com miolo e isso vai dar problema lá na frente. Todo mundo é muito imediatista e os analistas continuam achando que tem de demorar cinco anos para tudo. Ninguém tem paciência.
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