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Camila Cintra
Arquivo Pessoal

No longínquo ano de 2013, a palavra selfie foi escolhida como a palavra do ano pelo Oxford Dictionary. De lá para cá, o ato de tirar uma fotografia de si mesmo foi só o começo para colocar o rosto no centro da produção midiática. Com isso, vimos o impulsionamento de diversos mercados, principalmente os relacionados à estética.

Para se ter uma ideia, entre 2014 e 2019, o número de procedimentos de harmonização facial obteve um crescimento de 255% – levando em conta apenas os procedimentos feitos em homens – segundo dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Somente em 2020, o Google Trends aponta que pesquisas pelo termo “harmonização facial” cresceram 540%, o que, segundo pesquisadores, muito se relaciona com o fato de em períodos de encontros remotos, passamos a encarar nossos rostos por muito mais tempo e com muito mais frequência pelas câmeras das videoconferências. E se você tem uma percepção afiada, já deve ter percebido que muitos desses procedimentos têm tornado os rostos cada vez mais parecidos. Quando não retocados por intervenções médicas, se assemelham nos “ajustes” proporcionados pelos filtros.

Estaria o Instagram padronizando os rostos? Essa foi a pergunta que a pesquisadora Camila Cintra começou a se fazer em meados de 2017, quando um novo rosto parecia emergir de uma mimetização do que, paradoxalmente, representa o pouco do que ainda nos resta de próprio e singular. O resultado da sua inquietação é a pesquisa publicada no belíssimo livro “O Instagram está padronizando os rostos?”, publicado pela Estação das Letras e Cores e parte da coleção Interrogações coordenada por Lúcia Santaella, uma das maiores referências em comunicação e semiótica no mundo.

Abaixo uma breve entrevista com a autora, a partir das provocações que a leitura da sua pesquisa me trouxeram.

Camila Cintra é pesquisadora e consultora em tendências de comportamento e consumo, palestrante e escritora. Graduada em Comunicação Social pela ECA-USP, com passagem pela Sapienza Università di Roma, e especialista em Cultura Material e Consumo com ênfase semiopsicanalítica pela USP, tem uma trajetória com mais de dez anos de experiência em análise de comportamento e tendências culturais, pesquisa consumidores e orienta marcas no Brasil e no exterior, com foco em cultura digital.

  • Victor Brandão

    É sabido que alguns apps alteram rostos e corpos de usuários sem suas devidas autorizações. Há casos também de alguns fenótipos serem privilegiados na distribuição de conteúdos: rostos que representam um padrão, implicando até mesmo um viés racista. É possível identificar que narrativa é essa da estética que está tentando ser contada? Quais valores ou premissas produtivas você entende que estão em jogo e pautam a criação deste rosto hoje?

  • Camila Cintra

    Eu vejo que é uma estética circulante muito baseada nas premissas construídas pela plataforma e pelas pessoas ao longo do tempo, uma narrativa de hiper estetização da vida, dos cenários, dos lugares e que agora chegou ao rosto. Nos últimos anos, junto com o crescimento do Instagram, o rosto vem ganhando essa centralidade com as selfies. Com as câmeras, o rosto ocupa um lugar muito central nas redes, e, principalmente, no Instagram. Como em tudo, o Instagramável também chegou ao rosto com uma força muito grande, como também aconteceu com as paisagens, com as viagens e tudo mais. A estética narra muito os valores do nosso tempo e o que vejo refletido hoje é aquilo que eu considero com uma estética de performance e de otimização que, para mim, são os valores que estão estampados no rosto. Uma vontade de manutenção de si mesmo, uma noção de que é possível alterar tudo, inclusive a própria face. Uma busca por otimização, por performar da melhor forma possível e, nesse sentido, vou para dois aspectos no livro. No espetáculo das redes, quando, para circular ali, há um rosto que mostra que você é capaz de operar sobre ele e atingir os melhores índices e as melhores métricas “daquilo que a gente entende como um rosto”. É isso que está muito posto como valor dessa narrativa, é como se fosse um rosto metrificado, assim como as redes. Quais são os rostos que geram alcance? E aí eu acho que a gente vai para a segunda camada, ou seja, não são só as pessoas, mas também as plataformas alimentam essa estrutura. Acho que as pessoas buscam esse rosto – que é o lugar do consumo, dos influenciadores, dos usuários, das pessoas comuns – mas acho que também vem esse segundo aspecto das plataformas, que, através das suas políticas, dos seus modelos de negócio de distribuição, de alcance, de métricas entre outras coisas, vão eleger quais são os rostos ou quais são os tipos de imagem que melhor circulam, pois melhor atendem a esse modelo de negócios que é muito baseado na publicidade, no quanto tem de alcance. A gente viu diversas notícias de plataformas que escolhem através dos algoritmos quais são os melhores rostos que vão circular, e esses são rostos brancos, femininos, magros e outros tipos de escolha na programação dos algoritmos nesse aspecto. Então o que mais alcança é uma escolha que não foge ela mesma das suas próprias ideologias. Eu acho que são esses jogos que vão pautando a criação desse rosto hoje. Quanto mais rostos distribuídos seguindo esse padrão, quanto mais eles alcançam, quanto mais eles geram engajamento, mais eles vão constituir uma noção do que é o estético, bonito, aceito e quantitativamente interessante. É quase como se a gente tivesse colocando um rosto quantitativamente vencedor. E a pergunta que a gente faz é qual a qualidade desse rosto em aspectos subjetivos e pessoais para a singularidade das pessoas.

  • Victor Brandão

    À medida que a gente vê o surgimento de roupas digitais, até mesmo constituições de outras realidades como o metaverso, fará sentido falar de um rosto real ainda? Ou essa fronteira vai ficar cada vez mais borrada? Vai importar o que é de verdade e o que não é?

  • Camila Cintra

    Essa é a questão filosófica mais profunda há séculos. Nem sei se consigo responder. Eu acho que a pergunta que fica é justamente essa: vai importar o que é de verdade? Qual a diferença entre o que é verdade, real e imaginário, ou seja, tudo o que produz sentido para nós? Eu acho que uma das coisas que temos que ficar atentos é entender qual a importância da representação como imagem na nossa sociedade hoje. Entender a centralidade que ela ocupa e entender como nós, sujeitos, temos nos tornado cada vez mais imagem em circulação. E, com isso, nos questionarmos o que ganhamos e o que perdemos. Talvez a gente ganhe em alcance, em mais circulação, conhecimento de mais pessoas, ser conhecido por mais pessoas. Mas o que a gente está sempre vendo é a vantagem da representação: o atributo que as pessoas estão ganhando é esse. Eu acho que a gente pega o final dessa conta quando vemos o nível de satisfação das pessoas com elas mesmas, com a vida, com a comunicação. Vai importar o que é verdade e o que não é? Eu diria que a gente tem que olhar para as sensações que as pessoas estão tendo. Em geral, são sensações de esgotamento, de ansiedade, de dissonância cognitiva entre o que eu vejo e o que eu percebo. Começa a ter um descolamento muito grande do mundo das representações para o mundo da convivência, para o mundo das trocas sociais e do reconhecimento de si, e aí a gente percebe o que importa, o que é de verdade e o que não é. Para mim é muito claro que estamos vivendo um momento de uma grande centralidade de representações como talvez nunca antes tenhamos vivido, pelo menos no nível de alcance e circulação de troca entre pessoas, muito baseada em representação.

  • Victor Brandão

    Podemos dizer que a ampliação das ferramentas de expressão da subjetividade nos endereça para crises, convulsões da subjetividade…

  • Camila Cintra

    Eu acho que sim e não. Entregamos as ferramentas nas mãos das pessoas e elas vão sempre ter consequências dos seus usos. O que eu acho é que a gente exponha com mais alcance e facilidade as condições de subjetividade que já existem entre nós, só que em velocidade cada vez maior. É por isso que eu defendo algumas formas de regulamentação dessas ferramentas, não só em termos de lei, mas acho que nas próprias regras de uso desse jogo. O que um filtro pode fazer e o que Instagram pode e não pode. Eu acho que a Internet cresceu como uma terra sem lei e agora a gente precisa fazer os combinados para jogar nesse cercadinho, pois se não as pessoas saem muito machucadas. É sobre ter melhores regras de boa convivência, como a gente sempre teve em sociedade. Ampliar as ferramentas de expressão da subjetividade pode nos endereçar a crises, mas crises que já existem aqui, elas, talvez, apenas facilitem.

  • Victor Brandão

    No seu livro, você faz uma leitura dentro do contexto da sociedade do espetáculo e constrói de uma maneira que é também possível trazer para a compreensão de uma sociedade do desempenho, quando a gente pensa nessa otimização do rosto para o espetáculo do digital. Nesse sentido, as rotinas de intervenção estética, rotinas enormes de skincare, academias da face, por exemplo, é possível identificar um esgotamento do indivíduo dentro desse circuito?

  • Camila Cintra

    Eu acho que em certa medida sim, e é por isso que as pessoas têm sentido esse mal estar em relação aos filtros e as performances de si mesmas, esses ideais de Eu que ficam tão evidente nas redes sociais. Eu acho que bate essa ressaca dessa projeção tão performática e tão performada. Eu não sou distópica nesse sentido [de associar] às rotinas de skin care e autocuidado, por exemplo, mas eu acho muito perigoso quando isso vira uma fórmula mágica para como chegar num resultado, como se tudo servisse para todo mundo. Como se fossem novas imposições que se somam em receitas para chegar num resultado. Eu acho que isso é um pouco perigoso. O que eu defendo também é a postura da pessoa de poder ter uma decisão como sujeito da escolha. O que vale e o que não vale em cada caso, cada pessoa vai saber seu limite e a sua necessidade. Eu vejo que é um mercado muito lucrativo que atua naquela dinâmica que insufla o desejo das pessoas para um caminho de satisfação que nunca se satisfaz.

  • Victor Brandão

    É muito interessante que a sua leitura mais crítica sobre o assunto não cai no lugar condenatório sobre as intervenções estéticas. Sua proposta é assumir e sustentar uma posição protagonista diante do desejo. A partir das suas observações, você consegue visualizar caminhos possíveis para não ficarmos à mercê da lógica imposta? Como sustentar essa posição protagonista?

  • Camila Cintra

    Eu acho que a gente sempre tem que ter uma condição de não alienação daquilo que está acontecendo e também de não alienação no que está acontecendo. Ou seja, ao mesmo tempo que a gente não vai sair fazendo mil tratamentos para caber em outras máscaras que não sejam as nossas, eu acho que tem uma questão importante que é saber o tempo que a gente vive, saber quais são as dinâmicas sociais que nos impactam, as referências sociais e estéticas que compõe nosso próprio imaginário. A gente tá inserido nessa cultura, a gente também circula socialmente, a gente também tem desejos que são insuflados por essas referências. Acho que talvez a questão de como não se manter nessa lógica de imposição parte de conhecer essa lógica e saber que ela existe. O livro tem essa proposta, assim como as discussões que venho trazendo têm essa proposta de não se colocar nessa dinâmica de forma inocente. Saiba o que está acontecendo e aí você decide até que grau vale para você e até grau não vale, o que vai cumprir com as suas necessidades e os seus próprios desejos e o que você está alimentando ali.

    Para mim, é crucial a informação, saber dessa discussão, desses pontos, conhecer questões como algoritmos e as ferramentas que os influenciadores usam, por exemplo. Aquela pessoa que tá parecendo super natural, ela tem um discurso que tá parecendo super natural, mas ela tem uma equipe, ela tem edições, ela tem maquiagem, ela tem filtros, uma série de camadas ali que outras pessoas que não são profissionais talvez não apresentem e aí é muito injusto. A gente sempre fala de “como você vai comparar o palco do outro com o seu bastidor?” Então acho que nesse aspecto é conhecer quais são as regras do jogo e quais peças você vai entrar para jogar e qual jogo você quer jogar.

    É uma questão de educação midiática que eu acho que falta para os consumidores de Internet em geral. Ter noção do que é algoritmo, o que significa distribuição, o que significa engajamento, onde você está colocando o seu investimento de energia de likes e comentários que vai retroalimentar novos conteúdos que vão surgir para você. Eu acho que a lógica que é imposta, não é só estética, é de conteúdo também e que está relacionada com uma lógica de formatação de pensamento.

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