Por Aline Vessoni para a Revista Joyce Pascowitch de Janeiro | Fotos: Zô Guimarães
Viviane Mosé diz que gosta muito da vida. E gosta do pacote completo: com todas as alegrias e angústias que ela pode trazer. Para a filósofa, encarar o sofrimento faz parte do jogo e é a única forma possível de amadurecimento. Assim como no sertão imaginado por Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, em que o personagem Riobaldo, diante de tanta adversidade, reflete que “viver é muito perigoso”, ninguém está imune ao sofrimento – do mais rico ao mais pobre. Fazendo um paralelo com esse clássico da literatura, a vida é perigosa para todo mundo, justamente porque ela não é linear e sim “um jogo de idas e vindas, de perdas e ganhos” e é preciso gostar de jogar e jamais ter preguiça. É como se a felicidade não fosse um fim que se possa atingir, mas sim, o caminho – que pode ser bem tortuoso, diga-se de passagem. Aqui, um papo às claras sobre essa tal felicidade para começar o ano de peito aberto para a vida.
J.P: Afinal, o que é felicidade?
VM: A felicidade é o discurso que justifica todo o resto. Por exemplo: você sofre, mas está esperando a felicidade que você ainda não encontrou. Então, se você não sente, passa a ter culpa por não estar feliz como todo mundo. E eu digo, assim como o filósofo [Friedrich] Nietzsche: “Todo mundo sofre”. Do mais ao menos poderoso, do mais ao menos rico. Todos sofrem quando não recebem o olhar de alguém que ama, quando perdem alguém querido por morte ou abandono. Ninguém está livre desse tipo de sentimento. A felicidade é uma ideia vazia que é como uma cenoura colocada presa numa vara diante de um animal. Ele corre, corre para tentar pegar aquela cenoura e nunca consegue. A felicidade é como essa cenoura que a gente nunca vai conseguir pegar.
J.P: Mas, então, nunca seremos de fato felizes?
VM: Não ter felicidade não quer dizer que não tem alegria, que não tem intensidade e que a vida não possa ser maravilhosa. A vida pode ser maravilhosa no meio do conflito e do erro. Tem sempre um erro, você já reparou? Então, respeitar o erro é a maneira de viver melhor, em vez de sempre buscar um padrão, um modelo. A história do padrão é a história da racionalidade, do capitalismo…
J.P: O capitalismo continua sendo visto como inimigo?
VM: Não quero fazer um discurso contra ele, nem a favor. Mas o capitalismo vende produtos não porque ele vende produtos, mas vende ilusões. Por trás de cada produto há a ilusão de que comprando aquele produto eu vou sofrer menos. Então se estou sofrendo por uma perda amorosa, que é uma realidade que eu não quero ter, eu compro uma roupa ou um sapato, ou presenteio alguém, para ter um pequeno momento de prazer. Esse tipo de subterfúgio, que envolve produto e compra, vem para construir em torno de mim uma proteção contra um sofrimento que é inevitável.
J.P: Na sua primeira entrevista para a J.P, em 2012, você disse que a sociedade do consumo estaria dando lugar à sociedade do conhecimento.
VM: A sociedade do conhecimento – que é essa nossa, atual – infelizmente não quebra os padrões de consumo. A diferença é que ela transformou em consumo o discurso, o pensamento e o conhecimento. Não compramos produtos, mas sim discursos. Antes comíamos carne, agora somos vegetarianos e veganos, e os restaurantes veganos estão por todos os lugares. Ou seja, tem sempre um discurso por trás de um consumo. Isso é sociedade do conhecimento. Ela não mudou o consumo, muito pelo contrário, ela mudou o produto.
J.P: Mas deve haver alguma vantagem nessa mudança na forma de consumir…
VM: Sim, o acesso ao conhecimento. Ao tornar o conhecimento e o discurso produtos, ela também torna acessível todo tipo de discurso. Você não precisa ir à universidade de biologia pra entender de meio ambiente como acontecia 30 anos atrás. A internet intensificou esse processo. Esta é a grande política contemporânea na sociedade do conhecimento: é usar o conhecimento para viver melhor, porque isso é uma liberdade que nós não tínhamos.
J.P: Querer fugir do sofrimento é bom?
VM: É humano que a gente não queira sofrer e evite o sofrimento até certo ponto. A partir de um certo momento, se você não conseguiu vencê-lo – porque às vezes consegue –, ele é um fato. Quando ele se torna um fato, toda tentativa de negar o sofrimento torna-se uma ilusão, uma falsificação da realidade, porque o sofrimento permanece. Essa negação, muitas vezes, faz com que a gente passe a vida gastando nosso tempo para construir uma proteção contra um sofrimento que não queremos sentir. Quer dizer, se sentíssemos esse sofrimento e o elaborássemos, ganharíamos muitas horas de tempo e de vida. O fim de um amor, por exemplo. Se ele já aconteceu não adianta passar a vida inteira tentando consertá-lo ou culpando o outro por ter finalizado o relacionamento que, independentemente da vontade, acabou.
J.P: Umas das maneiras de ser feliz e aceitar e encarar o sofrimento é vivendo o presente?
VM: Nós só temos esse instante. Estou aqui reclamando de quantas curtidas eu tive, mas eu posso estar morta em 24 horas por conta de um acidente de carro. Essa sensação de que o olhar do outro vale tanto, ou seja, a desvalorização da trajetória humana de cada um em detrimento da opinião do outro, isso é um jogo político de opressão. E a depressão é o maior jogo político hoje do mundo, o enfraquecimento do ser humano e a desvalorização da vida.
J.P: Há estudos que afirmam que isso está relacionado ao uso exagerado de medicamento. Mas como saber o que é exagero e o que é doença?
VM: Os males psíquicos estão muito mais relacionados ao discurso que ao próprio sofrimento psíquico. Eu não nego um sofrimento psíquico, mas, desde [Michel] Foucault, com História da Loucura, compreendemos que são os enquadramentos sociais que definem o que é um ser que não se encaixa. Como eu disse, o discurso hoje está relacionado com o produto. O sofrimento psíquico da população significa atualmente um dos maiores lucros da indústria farmacêutica. Existe um estímulo ao sofrimento psíquico, não tenha dúvidas disso.
J.P: Como é possível sofrer sem adoecer?
VM: O sofrimento não causa adoecimento na gente. Pode até causar, por exemplo, quando uma mãe que perde um filho. Sim, pode ser, mas o sofrimento diário não nos diminui, o que nos diminui é a culpa de estar sofrendo. É achar que a gente não pode sofrer, é achar que em algum lugar todos são felizes. A culpa de não estar bem é que adoece. Claro, não estou negando sofrimentos extremos, estou tratando do sofrimento diário, o quanto esses pequenos sofrimentos nos tornam impotentes e não deveria.
J.P: O que significa a expressão “carregar o infinito nas costas” quando você se refere à existência humana?
VM: Todo homem quando percebe que é mortal sofre. E você já sabe disso, não precisa adquirir essa capacidade. Para se livrar, é só pensar assim: o mundo é infinito e eu estou aqui, olha como eu sou pequeno. Essa sensação cria na gente um princípio de fragilidade, que diz como tudo é enorme, como eu preciso dos outros, como é bacana tratar bem as pessoas, como um cafezinho na esquina é importante, como meu coração enche de vida apenas com meu filho me chamando de mãe. Porque eu sou ninguém e vou continuar sendo para sempre, mesmo sendo poderosa, ou me tornando rica, linda, com o que for que eu consiga. Eu apenas sou uma pessoa que nasce e morre. Esse princípio de fragilidade nos faz crescer e aprender a lidar melhor com as grandes perdas, porque é apenas isso que somos: seres na trajetória para a morte. Por que não saber o que acontece depois da morte é ruim? Não basta confiar na vida e deixar viver ou tem que controlar e entender? Não basta apenas viver?
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