Um governo em busca de receita, uma rede de cooperação internacional no rastro de dinheiro oculto e uma midiática operação policial que, pela primeira vez, levou ao encarceramento em série de gente rica. A combinação desses fatores explica o sucesso do programa de repatriação de recursos, que já devolveu R$ 46,8 bilhões aos cofres públicos
Por Antonio Bender Mammì para a revista PODER de dezembro
Quando proposto pelo time do então ministro da Fazenda Joaquim Levy, com a Lava Jato no auge e o mercado se descabelando, o programa de repatriação de recursos foi rechaçado pela opinião pública. Afinal, em troca da declaração à Receita da existência de recursos no exterior, o dispositivo oferecia anistia criminal para delitos como sonegação fiscal, evasão de divisas e manutenção de depósitos não declarados fora do país. Difícil de digerir para o sujeito que, tomando seu pingado, assistia às peripécias suíças de políticos e empresários pela televisão da padaria. Não só para ele, como também para alguns engravatados de caneta pesada.
“O Ministério Público Federal, num primeiro momento, tinha uma postura muito crítica à Lei de Repatriação, por conta do senso comum de que ela teria como efeito anistiar crimes de pessoas com alta condição financeira, enquanto os desfavorecidos economicamente não teriam o mesmo direito”, explica Alamiro Velludo Salvador Netto, professor de direito penal da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Souza e Velludo Salvador Advogados. A sanha justiceira foi em parte aplacada pela exclusão do benefício a políticos, que estão proibidos de aderir ao programa. Não sem esforço, a então presidente Dilma Rousseff sancionou, em 13 de janeiro de 2016, a Lei n.º 13.254, inaugurando o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária.
Até agora, já foram arrecadados R$ 46,8 bilhões com a lei. É verdade que esse valor é menos da metade do prometido por Levy, que, em 2015, falava em receitas de R$ 100 bilhões. Entretanto, ninguém discordou que, dadas as controvérsias que cercaram a tramitação do projeto e os debates entre a Receita Federal e os contribuintes ao longo da janela de adesão ao programa (fechada em 31 de outubro), o resultado foi mais que satisfatório. Não por outro motivo, o Senado já aprovou um projeto de lei reabrindo o prazo de repatriação em 2017, que deve ser votado pela Câmara ainda este ano.
Engana-se quem acredita que a lei foi uma excepcionalidade brasileira, concebida para premiar delinquentes em tempos de crise. A medida faz parte de um movimento mundial de transparência fiscal e bancária, encabeçado pelos Estados Unidos. Depois de penar para identificar as fontes de financiamento ao atentado às Torres Gêmeas e de seu mercado financeiro expor ao mundo as deformidades da globalização com a crise de 2008, os norte-americanos costuraram acordos com seus parceiros comerciais para estabelecer a troca automática de informações tributárias e financeiras entre os fiscos. Em 2009, no encontro anual do G-20 em Londres, foram gestados acordos multilaterais nesse sentido.
“Os bancos dos países com jurisdição off-shore estão pedindo a comprovação de regularização dos valores depositados perante o domicílio fiscal dos clientes, e quem não o fizer está sendo convidado a se retirar da instituição”, afirma Marcelo Paolini, sócio da área de gestão patrimonial do Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey e Quiroga Advogados, que tem escritório em São Paulo. Ou seja: o mundo está cada vez menor para quem quiser esconder dinheiro. Todos os paraísos fiscais em mercados seguros (como Suíça e Ilhas Cayman) foram cobertos pelo espectro de transparência desenhado pelo novo sistema internacional.
É certo que, para um traficante de armas, faz sentido transferir recursos para algum país da Ásia ou da África em que não vigore algum tipo de acordo. No entanto, para quem apenas recebeu um apartamento no exterior como herança e não o declarou à Receita por medo da ciranda financeira que imperava no país nos anos 1980, resistir em aderir ao programa começou a ser encarado como algo ilógico. “Muitos dos contribuintes são pessoas com riqueza familiar que sempre quiseram regularizar sua situação, mas tinham a faca no pescoço: descobriam que tinham um bem no exterior, mas, se declarassem, estariam confessando um crime de evasão imprópria. A lei acabou abrindo essa janela de oportunidade”, sustenta Velludo.
RÉU CONFESSO
O programa ainda contou com uma propaganda fortíssima: a Lava Jato. “As pessoas estavam apavoradas com a perspectiva de serem presas. Era muito comum ter reuniões com advogados tributaristas, que tratariam de 90% dos aspectos relacionados à repatriação, e o cliente querer ouvir, antes de tudo, o criminalista”, conta Rodrigo Dall’Acqua, sócio do Oliveira Lima, Dall’Acqua, Hungria & Furrier Advogados, que também tem escritório na capital paulista.
Embora, de modo geral, a recomendação sempre tenha sido a adesão à repatriação, nem tudo são flores. A base de cálculo do imposto e da multa foi muito discutida (ver quadro)e há desconfiança sobre como a Receita e o Ministério Público tratarão as informações prestadas na Dercat (Declaração de Regularização Cambial e Tributária), um formulário similar ao do imposto de renda.
O contribuinte não precisa apresentar nenhum documento que comprove a legalidade da origem do dinheiro repatriado. No entanto, se a Receita tiver provas de que o declarante mentiu, ele é imediatamente excluído do programa e o Ministério Público pode ser comunicado sobre a existência de eventuais crimes. O que preocupa é que, embora nenhuma investigação possa ser iniciada com base na Dercat, há uma ressalva na lei que permite a instauração de procedimentos caso haja outras evidências. Uma notícia de jornal, por exemplo, poderia desencadear um inquérito policial, que já contaria com um robusto acervo probatório.
“Em que medida aquelas informações que eu prestei unilateralmente podem ser um gatilho para instaurar uma investigação contra mim sobre evasão de divisas? Essa é uma pergunta que só descobriremos a resposta ao longo do ano que vem”, resume Velludo. Dall’Acqua vai na mesma linha: “Se a pessoa for exposta na mídia por ter praticado um crime não anistiável, terá um problema”.
Além da esfera criminal, há o temor de eventuais represálias da Receita Federal. “Você faz a repatriação e ganha imunidade criminal, mas está confessando que sonegou impostos, fez caixa dois. Vi muito empresário dizendo que não iria aderir à repatriação porque não queria trazer a fiscalização para dentro do seu negócio”, relata Dall’Acqua.
MÃO DUPLA
O fato é que, a partir de 2017, entrará em vigor o Foreign Account Tax Compliance Act (Fatca), firmado entre Brasil e Estados Unidos. Com ele, as informações tributárias dos contribuintes brasileiros e norte-americanos serão compartilhadas de maneira automática. Também é certo que, nos próximos dois anos, durante a implementação do Common Reporting Standard (CRS), da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – da qual o Brasil é membro –, os dados dos fiscos de centenas de países estarão à disposição da Receita Federal. Para quem não regularizou sua situação em 2016, a provável janela de 2017 pode ser a última oportunidade de comprar a paz criminal.
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