Com a fala mansa, gestos delicados e uma elegância sem fim, Fernanda Montenegro conversou com o Glamurama sobre seus 70 anos de carreira durante exposição em uma galeria de arte em Ipanema, no Rio. Fugindo do tumulto, ela nos levou pelo braço e seguiu até um café ao lado. Já sentada, contou sobre os planos de lançar dois livros e ainda desabafou sobre a atual situação da cultura nos dias de hoje. “Temos a cultura besta de que a cultura é desnecessária. O governo que faz isso é a besta 666 do Apocalipse”.
Fernanda gosta de ouvir “música boa” e revelou que não sabe ainda lidar com a internet: “É um campo completamente esotérico para mim”. Rodando o país com leituras de Nelson Rodrigues, ela disse que o teatro “resiste nas catacumbas” e confessou que não sabe como sua geração não morreu: “Muitos de nós enfrentamos peças violentas, uma dramaturgia poderosa”.
Por Denise Meira do Amaral
Glamurama – Como vai ser seu livro de memórias?
Fernanda Montenegro – Tenho 70 anos de vida pública e tenho algumas fotos que foram ficando pela vida. Claro que tem a minha pessoa, mas quero trazer outras pessoas nesse caminhar. Tem fotos minhas desde 1945, 46, fotos de trabalho em rádio, depois o início da TV, e depois vem tudo junto. Não sei como a minha geração não morreu. Muitos de nós enfrentamos peças violentas, uma dramaturgia poderosa, ensaios poderosos, peças com três atos, e também o teleteatro – até pra se poder comer melhor, porque o teatro paga muito pouco. Fiz dez anos quase de teleteatro. E também fiz cinema.
Glamurama – E vai ter também momentos de sua vida pessoal?
Fernanda Montenegro –Tem uma parte da família: minha família primeira, minha família com Fernando [Torres, morto em 2008] e todos os documentos que vieram pela vida, como uma carta do Drummond, crônicas da Clarice Lispector, uma carta maravilhosa da Bibi Ferreia, uma apresentação do Caetano Veloso… Esse livro deve ser lançado ano que vem. E tem outro livro que sai pela Companhia da Letras, que é uma entrevista minha com a Marta Góes. Trabalho bastante.
Glamurama – Durante a nossa conversa, muita gente para para falar com a senhora, especialmente os mais jovens…
Fernanda Montenegro – É porque eu existo há muitos anos (risos). Tenho uma certa alegria porque parece que vale a pena.
Glamurama – Que conselho daria para os mais jovens que querem seguir a carreira de ator?
Fernanda Montenegro – Tem uma coisa hoje em dia. Você nunca sabe se o ator quer ir para TV ou para o palco. São dois caminhos completamento diferentes. Um é um artesanato arcaico, e o outro é eletrônico, você vai existir por um botão, é um produto manipulado, previsto, não está entregue ao ator porque qualquer pessoa poder ser usada, desde que o diretor tenha paciência. O ator é usado somente aos pedaços, entende? Se você não chora, pinga umas lágrimas, enfim, pode ser organizado. Agora no palco é orgânico. Se você quer ir para o teatro, sempre digo que desistam. Mas se tiver que ser internado, nenhum psicanalista ou psiquiatra der jeito, então volte.
Glamurama – Qual a grande magia do teatro?
Fernanda Montenegro – Ele é uma uma coisa tão vibrante, tão ligada à pulsação do ser humano… Para o bem ou para o mal. Qualquer arte você pode ir sozinho, no teatro você precisa de um outro. Ou você se prepara com um outro para um terceiro, por menos que você queria a presença de outros no sentido da plateia, ele é necessário.
Glamurama – E qual a função do teatro hoje em dia?
Fernanda Montenegro – É resistir nas catacumbas. O teatro das palavras desceu para o submundo, para o subterrâneo. Estamos reduzidos na maioria dos casos a monólogos, diálogos, triálogos, alguns conseguem fazer textos com maior elenco, mas isso não quer dizer que o teatro está morto. Tem falta de dinheiro para tudo se a cultura é tida como uma fantasia e frescura. O governo que diz isso não entende o que é cultura e são representantes de uma cultura decadente, menosprezada.
Glamurama – E o governo Temer que pretendeu acabar com o Ministério da Cultura?
Fernanda Montenegro – É tudo igual. O governo que está no poder é o mesmo que vem desde FHC, sempre tem PMDB no meio e sempre quem define são os votos do PMDB. Ninguém ganha, quem ganha é o PMDB. Quantos ministros do governo de Dilma eram do PMDB?
Glamurama – Historicamente, a cultura sempre acaba ficando de lado?
Fernanda Montenegro – Tenho a idade que tenho, 87 anos, e sempre a cultura é nada. E isso é uma cultura terrível. A cultura de negar a cultura. Temos a cultura besta de que a cultura é desnecessária e o governo que faz isso é a a besta 666 do Apocalipse. Agora, tem sempre quem diga no governo que tem outras prioridades. Então já deveriam ter resolvido essas prioridades. Estou com a idade que estou e sempre ouvi que primeiro vem as prioridades. Então não é por causa da cultura que as prioridades não se realizaram. Porque as outras prioridades ainda estão pedindo socorro. O país tem 50% da população sem saneamento básico, vivem no excremento, na podridão, Isso é uma cultura da podridão.
Glamurama – Qual a sua rotina no dia a dia? A senhora acabou de se mudar para perto da sua filha, né?
Fernanda Montenegro – Me mudei. Estou perto da Nanda [Fernanda Torres] agora. Eu trabalho tanto que quando não tenho nada pra fazer gosto de ouvir música, de qualquer gênero. Uma música boa. Quando posso, leio. Mas já leio exausta antes de dormir. Vejo pouca TV porque não tenho tempo. Não sei lidar com a internet, é um campo completamente esotérico para mim. Vou ter que aprender. Tenho duas pessoas que me socorrem me atendendo nisso. Acho que quando eu não tiver mais quem me socorra, eu vou ser obrigada (risos). Eu também caminho muito. Estou toda hora subindo e descendo as escada do meu apartamento. É um predinho pequeno, de dois andares. Não coloquei elevador para eu ter de subir e descer as escadas. Quando morava em Ipanema caminhava muito na praia também. Você tem tudo para fazer e ainda um mar na sua frente.
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Após a entrevista e dando mais uma prova de sua humanidade, Fernanda perguntou: “Agora me conta de um pouco de você. Está se adaptando bem no Rio?”
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