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||Créditos: Maria Antônia Anicetto
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O escritor, roteirista e dramaturgo voltou à cena ao lançar, em 2015, “Ainda Estou Aqui”, livro que tira de sua mãe o papel secundário de eterna viúva de Rubens Paiva, uma das mais famosas vítimas do regime militar. Marcelo não descansa e este ano volta com mais um livro, o roteiro da abertura da Paraolimpíada e um irmãozinho para o pequeno Joaquim

 Por Paulo Vieira para revista PODER
Fotos Maria Antônia Anicetto 

Aos 56 anos, o escritor, dramaturgo e roteirista Marcelo Rubens Paiva tem um currículo que fala por si. Desde “Feliz Ano Velho”, seu best-seller de estreia, em que relata como sua vida foi virada do avesso após o pulo que o deixou tetraplégico, foram mais outros dez livros, alguns deles desdobrados em filmes de cinema e séries de TV. Escreve e dirige várias peças de teatro, atua como script doctor, o sujeito que refaz ou aprimora roteiros para cinema e TV escritos por terceiros, e também mantém há tempos uma produção regular nos principais jornais brasileiros. Com tudo isso, ele continua para alguns o filho de Rubens Paiva, deputado do PTB que se tornou o triste emblema do modus operandi mais tétrico do regime militar brasileiro. Paiva pai foi torturado e morto pelo Exército em 1971, mas seu corpo jamais apareceu. A certidão de óbito seria expedida apenas 25 anos depois e, em 2014, na Comissão Estadual da Verdade (CEV) do Rio de Janeiro, o tenente-coronel reformado Paulo Malhães, que logo depois morreria assassinado, contou, ainda que em versões contraditórias, sua participação no episódio.

CHORO EM PÚBLICO

Mas ser eclipsado pela figura do pai não é exatamente um problema para o filho, que sempre fez disso insumo de seu trabalho. Nesse mesmo ano de 2014, com o cinquentenário do golpe de 1964, o autor foi ainda mais intensamente o caçula e único filho homem dos cinco que Rubens Paiva teve com a hoje octogenária dona Eunice. Naquele ano havia sido tornada pública a gravação em que seu pai conclamava trabalhadores e estudantes brasileiros a resistir aos militares. Esse áudio, que todos duvidavam que existisse (“minha família e meus amigos achavam que era uma lenda”), transmitido na mesma noite do golpe pela Rádio Nacional, foi reproduzido na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, antes da mesa em que falariam Marcelo, o economista Persio Arida e o jornalista Bernardo Kucinski. Naquele dia, ao ler páginas do livro “Ainda Estou Aqui”, que lançaria no ano seguinte, ele chorou. Chorou porque dizia à plateia que sua mãe, ela também presa com o marido, mas libertada 12 dias depois, sempre falava que “a família Rubens Paiva não chora em frente às câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima”.

“Foi a primeira vez que chorei em público”, disse o escritor durante o almoço no restaurante Parigi, aonde chegou com quase uma hora de atraso, maldizendo o trânsito de São Paulo. Ao acomodar-se (no salão, apenas uma mesa de canto com quatro mulheres que celebravam com um bolo espalhafatoso e smartphones o aniversário de uma delas), pediu que lhe servissem já cortado o prato que havia escolhido previamente – e que ele já conhecia do hotel Fasano: cotoletta (costela) de vitela à milanesa. Como efeito de seu acidente, Marcelo também perdeu certos movimentos das mãos. Ele precisa segurar o garfo com ela fechada e, de vez em quando, o talher escapa e ribomba no prato. Não seria essa, contudo, a bizarra razão a afastá-lo dos bons endereços da cena gastronômica paulistana. A razão é outra. Desde que nasceu seu filho Joaquim, que faz 3 anos este mês, ficou mais caseiro. Além disso, “já fui muito boêmio, bebi tudo que podia”, “já saí para ver todas as peças de teatro”. A Paiva sempre coube o papel de colocar o filho para dormir, e o fato de ser cadeirante fez dele um sujeito eficientíssimo na tarefa, já que ele dá umas voltas com o filho – quem um dia precisou pegar o carro para ninar um bebê entenderá. Quando Joaquim dorme, o pai aproveita para ver todas as séries de TV possíveis. Ano passado sua preferida foi “The Leftovers”; menção honrosa para “Making a Murderer”.

 

!!Créditos: Maria Antônia Anicetto
||Créditos: Maria Antônia Anicetto

LIVRO, FILHO, FESTA

O irmãozinho do Joaquim, ainda sem nome, vem este ano, assim como um novo livro, centrado na São Paulo dos anos 1980 e na figura do músico Clemente Nascimento, líder da banda punk Inocentes, uma das mais icônicas da geração “no future” daqueles tempos. Ainda em 2016 ele finaliza o roteiro das cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Paraolímpicos, um trabalho que conduz há mais de dois anos em parceria com o artista plástico Vik Muniz e com o designer Fred Gelli. Fala com alegria da bengala de LED desenvolvida com o MIT, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, adereço a ser usado nos espetáculos. Dois mil e dezesseis, portanto, pode ser para ele o ano que não terminou, mas, nesse caso, por razões dignas de celebração. A crise e a falta de trabalho passam longe de seu edifício com piscina semiolímpica no bairro de Perdizes, em São Paulo. É verdade que na última mudança seu apartamento ficou menor. O carro é o mesmo de há 20 anos.

Uma pessoa menos pilhada poderia descansar e aproveitar a marolinha de 2015, um ano também muito produtivo, em que o escritor voltou a frequentar as prateleiras das livrarias com seu “Ainda Estou Aqui” (editora Alfaguara). Nesse livro de tom confessional, ou, melhor dizendo, de tom memorialista, a protagonista é sua mãe. Eunice Paiva parece ser um daqueles personagens à espera de um autor, mas isso só se costuma descobrir quando um autor efetivamente aparece. A grande história de Eunice também foi eclipsada pela do marido. Com sua desaparição, coube a ela cuidar dos cinco filhos e ainda lutar contra o regime. Voltou a estudar, formou-se em direito, seguiu na luta incansável pela defesa das vítimas dos militares, tornou-se uma voz pelas causas indígenas (era interlocutora do cantor Sting, outro ativista da causa). A família Rubens Paiva não chorava em frente às câmeras, ensinava ela, porque era preciso “estar bronzeado e saudável para a contraofensiva”. Afinal, o crime não era contra Rubens Paiva, mas contra “toda a humanidade”. Eunice instruiu os filhos a adotar um “discurso fechado” sobre o que se passara com o pai e dava broncas em Marcelo quando ele desafinava. “Aprendi com ela a não ter raciocínio maniqueísta ou revanchista, a não sair atirando. Em 1982, na época do lançamento do “Feliz Ano Velho”, minha mãe me brifou para eu saber o que dizer aos jornalistas sobre meu pai.”

“Ainda estou aqui”, a frase que virou título de livro por sugestão de seu editor Luiz Schwarcz, é de dona Eunice. Uma resposta lúcida em meio à severa doença de Alzheimer que a foi isolando do mundo, tal qual o Major Tom perdido no espaço da música de David Bowie, personagem que o autor usou como epígrafe no livro obviamente muito antes da morte do músico. “Começamos a nos referir ao portador do Alzheimer no passado. A gente dizia: ‘Mamãe gostava muito de…’. E eventualmente ela fala essa frase: ‘Ainda estou aqui’.”

||Créditos: Maria Antônia Anicetto
||Créditos: Maria Antônia Anicetto

A mulher que lutou a vida inteira pela memória coletiva vai perdendo a própria, mas o desbotamento tem seus momentos luminosos. Marcelo diz que sua mãe outro dia comentou sobre a revista Veja. “Ela gostava da ‘Veja’, mas não da TV Globo. Disse que foi uma grande revista, muito importante na luta contra a ditadura, mas que se desvirtuou.”

Tendo ido direto para o prato principal e bebendo apenas água mineral para frustração do repórter, que imaginava com Marcelo poder atacar qualquer rótulo do velho ou do novo mundo – ou o que fosse –, com um terço de nossa conversa já estávamos na sobremesa: dá para imaginar quantos cafés iríamos beber. A grama do vizinho –  no caso, o tiramisù pedido pelo escritor – parecia mesmo muito mais verde.

Da saudade do pai, um “playboy de Santos” que na política tudo perderia, o escritor pulou para a lamentável falta de um pensamento  desenvolvimentista para o país, agenda comum nos anos 1960. “Até a direita tinha um projeto para o país. Não era isso de só pensar no tríplex”. Se Dilma fez “tudo errado” (ele não deu nota à gestão, mas disse que se fosse diretor de uma escola onde ela estudasse, a suspenderia), Lula teve o mérito de trazer ascensão social para os desfavorecidos. Mas lastimou a política do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) de subsidiar empresas exportadoras de commodities. “Devíamos apoiar conhecimento, patentes. Quando a IBM quis vender computador na China, os chineses exigiram transferência de tecnologia em troca.”

Na nossa longeva rodada de cafés, sobrou até para políticos amigos, como o senador José Serra, que, segundo ele, incrementou a acessibilidade em São Paulo em um nível que ele só viu na Grécia, por conta da Olimpíada de 2004. Para ele, Serra se perdeu ao criticar num tuíte famoso o prefeito Fernando Haddad por conta do fechamento da avenida Paulista aos carros aos domingos. “Ele fez o que um jornalista buldogue faz. Todo mundo pode cair nessa, menos o Serra, o Fernando Henrique.”

O prefeito de São Paulo, “apesar do PT”, e Eduardo Paes, o homólogo do Rio, são, entre os políticos atuais, os que merecem crédito por, de alguma forma, pensarem as cidades com uma agenda moderna. Paes, para ele, está colocando a Olimpíada de pé “sozinho”. À ponderação do repórter de que a esquerda ataca a insensibilidade social de Paes, Marcelo aquiesce, acrescentando que Haddad também não ‘performa’ no quesito. “Marta Suplicy tem mais sensibilidade social do que ele.”

No fim, como personagens da mais previsível conversa de bar, autor e repórter trocam impressões sobre o valor escorchante das mensalidades das escolas dos filhos. Quer saber como e por que obtive bolsa de estudo para minha segunda filha em um colégio um dia libertário da zona oeste de São Paulo. Pode ser que tenha de usar desse expediente em pouco tempo. Ou, como autor que jamais descansa, esteja à espreita para transformar o assunto em mais uma obra com sua chancela.

 

||Créditos: Maria Antônia Anicetto
||Créditos: Maria Antônia Anicetto

TODO OUVIDOS

Marcelo Rubens Paiva sabe ouvir, e isso ficou claro em diversos momentos. Também é capaz de retomar o fio da meada após longuíssima digressão. Mas se ouvir com atenção é condição sine qua non para se tornar bom jornalista ou contador de histórias, por outro lado ele não se encaixaria em uma redação, já que é capaz de admitir ignorância em determinado assunto – como, em nossa conversa, o nome de uma protagonista de “Os Maias”, de Eça de Queiroz. Se não faz sentido associar seu lado bom ouvinte a sua incapacidade motora, dá para fazer ilações entre a condição de cadeirante e uma vida amorosa e sexual ativa. Marcelo colecionou namoradas e casos. A década, contudo, é da filósofa Silvia Feola, que, como ele, mantém um blog no jornal “O Estado de S. Paulo” e é a mãe de Joaquim e do irmãozinho que está a caminho.

RAPAZ DE BEM

“Ainda Estou Aqui” retomou a literatura de estilo confessional tão cara a Marcelo Rubens Paiva, senha para o barulho estrondoso de “Feliz Ano Velho”, mas não recuperou o sucesso comercial do primeiro livro e não frequentou a lista de best-sellers de 2015, sendo preterido entre os autores de não ficção por gente com menos tradição como a youtuber Kéfera Buchmann e a modelo Andressa Urach. Marcelo, que sofreu preconceito por ser muito jovem em sua estreia – dizia-se que ele não teria sido o autor do próprio livro –, é simpático à nova cena editorial, desde que ela não contemple livros para colorir. Ele não leu “Kéfera”, mas gostou do que viu dela no YouTube. “É boa, tem essa pegada de comédia americana, meio ‘Saturday Night Live’, meio Tina Fey”.

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