Era madrugada de junho de 2002 quando o Brasil estava ligado na TV a espera de uma partida da nossa seleção na Copa do Mundo da Coréia do Sul e Japão. Enquanto o jogo não começava, a audiência do extinto “Programa do Jô”, de Jô Soares, batia um de seus maiores índices e o maior beneficiado com isso foi Marcelo Medici, o entrevistado daquela noite que, depois de anos de teatro, ainda era conhecido por uma parte do público como o Zóinho de “A Praça é Nossa”. Depois daquela noite, o país inteiro passou a saber quem era Marcelo, que viria a ser um dos melhores comediantes de maior sucesso da atualidade. E este foi só o começo de uma história das boas nas telinhas. Hoje, com uma lista extensa de papéis cômicos, ele escolhe quem faz rir e como vai arrancar as risadas da plateia.
Este ano decidiu montar a peça “Teatro para Quem Não Gosta”, e em pouco mais de um mês a montagem estava em cartaz no Teatro Faap, em São Paulo. Ao lado de Ricardo Rathsam, ele conta a história do teatro se desdobrando em mais de 20 papéis ao longo de 90 minutos de atuação. Um mergulho rápido e intenso de cultura com boas doses de humor.
Abaixo, Glamurama conversa com o ator, que se prepara também para viver um judeu em “Orfãos da Terra”, próxima novela das 18h da Globo, relata a crise no teatro, fala sobre posicionamento político, Lei Rouanet e a eterna estigma em relação à comédia.
Glamurama: O título da peça “Teatro para Quem não Gosta” traz uma sacada ótima! Isso tem ajudado vocês a atrair um público que de fato não costuma ir ao teatro?
Marcelo Medici: “O titulo é do Ricardo [Rathsam], é uma brincadeira que pega carona pela crise que o teatro está passando. A piada até ajuda a atrair um público diferente, mas a verdade é que ir ao teatro é uma trabalheira: tem que comprar ingresso, sair de casa, pegar o carro, esperar começar… então tem ido quem realmente gosta. Tem gente que fica até brava com o título e diz: ‘eu vou, mas eu gosto de teatro!’ (Risos) “Teatro só se mantém se as pessoas falarem bem da peça.”
Glamurama: Depois de São Paulo, a peça já tem temporadas confirmadas em outras cidades?
Marcelo Medici: “Começo em novembro a preparação da novela ‘Orfãos da Terra’, então não vai ser possível viajar nesse momento, mas nossa ideia é fazer algumas datas no Rio e passar por algumas outras cidades. O problema é que não temos nenhum apoio – fizemos do próprio bolso -, e quando você se desloca você tem um gasto muito grande.”
Glamurama: São 30 anos de tablado. O que mudou desde então?
Marcelo Medici: “O teatro sofre o reflexo da crise avassaladora do país. Hoje realmente não dá para priorizar teatro, acaba sendo um luxo, mas em toda a história da comunicação sempre houve crises, com a chegada da rádio, do cinema, da TV e da internet, então não podemos justificar por isso. Assim como não entendo como o Lúcio Mauro Filho não gosta de pizza, e acho que quem não gosta de batata frita deveria ser estudado, também não entendo quem não gosta de teatro. Sei que com a chegada de plataformas como Net Now e Netflix fica difícil sair de casa, mas não existe nada parecido com teatro nesse sentido, ele é o 3D que nenhuma tecnologia vai chegar perto. Assistir uma encenação ao vivo é um momento único.”
Glamurama: Entre TV e teatro, você fica com qual?
Marcelo Medici: “Mais do que uma paixão, tenho necessidade de fazer teatro. A TV tem uma força muito grande no Brasil, é referência e acaba formando as pessoas. Desejei muito fazer televisão e apesar de ser ator desde os 16 anos, só consegui isso aos 33. Claro que quando você chega lá, fala: ‘rapadura é doce mas não é mole’. Novela exige dedicação. Claro que tem a questão salarial e o trabalho garantido durante 10 meses, mas na medida do possível faço quando quero muito, e aí vou com muita alegria. Acho cafona fazer a novela e ficar de cara feia porque não era o que queria. Cheguei mais maduro na TV e não me deslumbrei com nada.”
Glamurama: Na vida real você também se divide entre vários papéis? Quais são eles?
Marcelo Medici: “Hoje tenho uma vida muito melhor do que quando comecei a fazer teatro. Moro melhor, vou à academia – apesar de não gostar, mas por saúde e tônus -, e ao restaurante que quiser a hora que quiser… Minha rotina é bem comum. Durmo muito tarde, fico assistindo TV e séries até altas horas, e acordo bem tarde, por volta de 11h, e adoro ficar com Ulla e Nina, minhas cachorrinhas. Elas estão com 11 anos e espero que no dia em que elas não estiverem mais aqui possa fazer algo como viajar sem data para voltar. Fechar a porta do meu apartamento sem saber quando vou retornar. Meu deadline de viagem é 15 dias porque, apesar delas serem bem cuidadas, acabo ficando mal em deixá-las.”
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Glamurama: Você vê muitas séries? Quais são suas favoritas?
Marcelo Medici: “Sou totalmente viciado em séries e não gosto das de comédia. Nunca assisti Friends, Selfield e etc. Já tentei ver, dou risada, acho genial, mas não me prende. Gosto de série policial, psicopata – de repente eu sou um! Minhas favoritas são ‘Dexter’, ‘Família Soprano’ e agora estou adorando ‘A Casa das Flores’, que é uma comédia esquisita, com um humor negro, quase uma sátira da novela mexicana com estética teatral e bem ‘almodovariana’. Também adorei ‘A Rainha do Sul’, com Alice Braga.”
Glamurama: Você tem vontade de atuar em outros gêneros? Já pintou algum convite?
Marcelo Medici: “O humor é um acidente na minha vida, não era um planejamento de carreira, nunca sonhei em fazer ‘Escolinha do Professor Raimundo’, ‘Vai que Cola’ ou ‘A Praça é Nossa’. Desde os seis anos sabia que queria ser ator mas minha ideia era outra, brinco que é uma especialização involuntária. Me interesso por bons papéis. Tive uma experiência na minissérie ‘O Canto da Seria’, em que meu papel não era cômico e cheguei nas gravações preparado para ter que me defender, falando ‘sou ator, não sou comediante’, e o José Luiz Villamarim, um dos diretores, falou: Quem faz comédia faz qualquer coisa porque é muito mais difícil, por isso eu quis você.’ A partir daí confiei nele e confiei mais em mim também. Gostaria de fazer um vilão, um cara bem ‘filho da puta’. Quero ter essa possibilidade, mas talvez tenha que fazer isso no teatro primeiro e mostrar que sou capaz. Estudo essa possibilidade! Mas faço ‘Vai que Cola’ há cinco anos, estou super bem com a comédia.”
Glamurama: Por que você acha que o comediante fica tão marcado?
Marcelo Medici: “A comédia tem uma função incrível e a censura vai sempre em cima do humor, ele está sempre sendo investigado. (Risos) Apesar de ser um sucesso de público, a crítica e os prêmios não recaem sobre ela. Você vê o Jim Carey até hoje tentando emplacar um filme dramático, mas não vai conseguir nunca. A partir do momento que você é comediante, virou o bobo da corte. Não existe reconhecimento de crítica para a comédia. Assisti a Tatá Werneck apresentando o Prêmio Multishow, ela é absolutamente genial, preciosa e raríssima, e provavelmente nunca vai ganhar um grande prêmio porque as pessoas falam que ela é gaiata. Em ‘Big Little Lies’, por exemplo, considero Reese Witherspoon a melhor atriz da série, mas ela não foi indicada a nenhum prêmio enquanto Nicole Kidman, que é uma atriz que eu não acho que atue bem, e Laura Dern, concorreram e ganharam vários prêmios. E isso pode ter a ver com a ligação que ela [Reese] tem com a comédia. Esse é um problema mundial, Bibi Ferreira me disse uma vez: ‘Sempre fui um sucesso de público e Paulo Altran um sucesso de crítica.”
Glamurama: Dá para mudar esse quadro?
Marcelo Medici: “Alguns artistas estão se mexendo e criando seus próprios prêmios como o Risadaria, de Paulo Bonfá, e o Prêmio do Humor, de Fábio Porchat. Quando fiz a comédia ‘Irma Vap’ no teatro ganhei todos os prêmios, tenho uma estante cheia em casa e não quero ser injusto, mas existe uma inverdade de que a comedia é uma ‘bobajada’.”
Glamurama: Qual será seu papel em “Orfãos da Terra”, próxima novela das seis da Globo?
Marcelo Medici: “Vou fazer um judeu que vive brigando com a mãe, que a princípio será interpretada por Nicette Bruno, porque é um cara muito mais velho que não casou ainda. Ela quer que ele siga mais as tradições da religião. Eu moro em Higienópolis há muitos anos, tenho muitos amigos judeus, mas essa é a primeira vez que vou me aprofundar mais na cultura judaica e na história. Meu personagem vai ter uma rivalidade com uma família palestina da qual Mouhamed Harfouch fará parte. Será um núcleo de humor, mas não do bordão, é inserido na trama. Estou há dois anos esperando por essa novela, as autoras Thelma Guedes e Duca Rachid são brilhantes.”
Glamurama: Você se liga em política? Acha que o artista tem obrigação de se posicionar politicamente?
Marcelo Medici: “Me sinto um analfabeto político. Não tenho condições de analisar as situações e nós estamos sendo bombardeados. Parece que o Brasil passou de uma alienação para uma guerra sem meio termo entre as extremas situações. Quando começo a ler não tenho capacidade intelectual de guardar valores e começo a ficar atordoado. Li em alguns livros que a gente acha que o serial killer é só o psicopata, mas não, é aquele que não tem empatia, que não se coloca no lugar dos outros, e que a profissão que mais atrai psicopatas é a política. Claro que tenho minhas opiniões, fico triste – votei com alegria pouquíssimas vezes. Não acho que sejamos obrigados, mas estamos vivendo uma situação que não dá para ficar quero. Há uma cobrança e é o preço que se paga. A situação ficou tão violenta, que quando você se posiciona tem que segurar a bucha. Vi de leve o caso da Marília Mendonça, que foi xingada e perseguida… é uma maldade com uma artista que está vivendo o auge da alegria e do sucesso. Agora, o posicionamento político é muito difícil porque você está assinando embaixo de uma pessoa que não conhece tão bem. Não temos noção do que é lidar com um congresso.”
Glamurama: O que acha que tem que ser ajustado na Lei Rouanet do Brasil com a chegada de um novo governo? E nos incentivos à cultura de modo geral?
Marcelo Medici: “Fico muito chocado porque as pessoas não têm conhecimento da Lei Rouanet, e ela virou arma de ataque contra os artistas que estão se posicionando. Em minhas produções eu tive patrocínio da lei apenas uma vez, em ‘Cada Dois com Seus Pobrema’, e foi tudo bem. A lei ordena que tudo o que foi comprado seja comprovado. O Brasil não funciona em milhões de coisas, mas o Ministério da Cultura funciona. Fiz tudo certinho, prestei conta de tudo e durmo tranquilo. Não estou dizendo que não exista nenhuma fraude, pessoas que não tentam burlar, e sem dúvida nenhuma ela pode ser revista, mas não acho que deva ser criada uma nova lei para a cultura. O Brasil precisa de uma economia forte, de saúde, hospitais e segurança, mas esse é um projeto a longo prazo, e se a gente não investir em educação e cultura nós nunca vamos ter essa estrutura que é a base de tudo. O número de analfabetos no Brasil é impressionante.”
(Por Julia Moura)
Teatro para Quem Não Gosta
Teatro FAAP – Rua Alagoas, 903, Higienópolis – São Paulo (SP).
Quintas às 21h (Duração: 90 minutos).
Informações: (11) 3662-7233.
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