No dia que posou para a capa da J.P, um domingo, Letícia Spiller não teve tempo de se dedicar aos ritos tibetanos que pratica diariamente em casa: “Estava sem o meu tapetinho”, explicou ela, que foi do Rio para São Paulo na véspera. Em jejum, ela repete cinco posturas de ioga 21 vezes. Tem de ser depois do banho “para manter o calor corporal da hora em que a gente desperta”. É a esses ritos, e mais a uma série de cuidados com o corpo, o espírito e a alimentação, que Letícia atribui sua estupenda forma física. De perto, ela não é normal – nem ela, nem o abdome dela, algo fenomenal para uma mulher de 41 anos, dois filhos. Aquela barriga zero gordura do anúncio de sandálias, que deixa o telespectador embasbacado, não é truque publicitário. À chegada da atriz no estúdio, uma das mulheres da equipe de produção solta: “Você é uma unanimidade entre os homens. Quando comentei ontem em uma festa que faríamos fotos hoje, TODOS perguntaram se poderiam vir junto”. Nossa estrela sorri languidamente, meio na dela, tipo gentil, já que não dá para ficar exultante com uma observação que ela ouve há pelo menos 25 anos.
Esse é o tempo que já dura sua carreira na TV, iniciada quando ela ganhou um concurso para ser paquita no programa de Xuxa. Pituxa Pastel foi um acontecimento e Letícia não renega o passado pop que a tornou famosa, famosíssima, mas agora prefere falar de gente grande, como García Lorca, David Bowie e Nelson Rodrigues. “Não”, ela afirma, quando perguntam se foi difícil se livrar do estigma de paquita. “Eu continuo trabalhando, né? Então… E o trabalho agora é tão diferente”, diz com uma expressão levemente entediada.
Normal. Diz que fez o teste para participar do Xou da Xuxa porque “queria independência”, ganhar o próprio dinheiro. O curioso é que a paquita surgiu “no meio de uma galera idealista”, como ela classifica seus quatro irmãos – dois homens, duas mulheres. O mais velho é padre, teólogo e doutor em história; o outro, arquiteto envolvido com ambientalismo; uma das irmãs formou-se em medicina e lida com projetos de saúde na área pública; e a outra desenvolve um trabalho de terapia ocupacional com sitiantes em Marabá, no Pará. Letícia é filha temporã de um arquiteto que passou a trabalhar com exportação e importação e de uma dona de casa que, depois de ver os filhos criados, tornou-se professora de inglês e alemão. Cresceu no Leme, no extremo à esquerda da praia de Copacabana. Diz que a família reagiu “normalmente” quando ela foi abduzida pelo programa que hipnotizou pelo menos uma geração de “baixinhos”. “Cada um tem a sua profissão e respeita a dos outros.”
MALVADA CÔMICA
O personagem mais associado a Letícia Spiller, depois de Pituxa Pastel, é a cabeleireira Babalu, da novela Quatro por Quatro (1994). Seus trejeitos e o figurino exíguo, cheio de shortinhos, tomara que caias e babados, foram copiados por garotas de todo o país. Babalu contracenava com o mecânico Raí, papel do ator Marcello Novaes, que engatou romance com Letícia na vida real e tornou-se pai de seu primeiro filho, Pedro, hoje com 17 anos. Em 1999, a atriz entrou na pele de outro sucesso de audiência, a vilã Maria Regina, da novela Suave Veneno. Pela primeira vez, o símbolo sexual abriu mão da cabeleira loura e apareceu morena, má e usando um corte estilo joãozinho. Na história, fazia o papel de uma das três filhas de um milionário que atropela uma moça e acaba apaixonado por ela: para impedir que a “agregada” ficasse com o dinheiro da família, Maria Regina recorreu aos estratagemas mais hediondos. Letícia fez da personagem uma malvada cômica, de olhos sempre arregalados, que dividiu a crítica, mas tornou-se unanimidade entre os telespectadores. “Torci muito para a Maria Regina se regenerar com o amor pelo (motorista) Adelmo (Ângelo Antônio). Mas quando tudo parecia caminhar para o bem, ela tentou matar a Maria Inês (Glória Pires). Nunca esqueço, gravei a cena no dia do meu aniversário… Fiquei tão triste (risos).”
Na atual novela das 6, Boogie Oogie, a atriz faz o papel de Gilda, uma trintona ajeitada e contida, que esconde seu caso com o patrão, Fernando (Marco Ricca). Ele, por sua vez, é casado com Carlota (Giulia Gam) e tem uma ex-amante obsessiva, Susana (Alessandra Negrini). Enfim, novela. “A Gilda é introspectiva, muito diferente da Lola (seu último papel, em Joia Rara), que era extrovertida, para fora, over nas cores.” Letícia adora novidades, variações, transformações. Tudo o que tem a ver com o renascimento alusivo à primavera é muito bem-vindo para ela. “Sou camaleônica, gosto de mudar o tempo todo. Ficaria muito frustrada se me dessem sempre o mesmo papel.” Em uma de suas transformações mais radicais, quando fez o espetáculo O Falcão e o Imperador, baseado em um poema de Nikos Kazantzakis, Letícia raspou a cabeça. Na época, estava com 28 anos, e a demonstração de desprendimento serviu para provar que ela era bonita por dentro também. Agora, a atriz prepara-se para viver a Dorotéia de Nelson Rodrigues, cujo texto permeado de remissões cômicas e grotescas tem, ao mesmo tempo, enredo e estrutura de tragédia. O convite veio da veterana Rosamaria Murtinho e do diretor Jorge Farjalla: “É o texto mais difícil que eu já li”, afirma ela, com a expressão de quem sente um medinho saudável. “O Nelson é muito parecido com o Lorca, deixa as coisas nas entrelinhas. Mas, como diz a (atriz) Mira Haar, não tem de psicologizar, tem de desconstruir.”
MÁSCARA ANATÔMICA
No camarim, antes de se maquiar, ela aplica uma máscara facial receitada por sua dermatologista. Produto importado. “Eu nunca uso essas coisas, mas achei essa máscara interessante.” Consiste em um plástico branco, no feitio do rosto, guarnecido com um estofadinho umedecido. Apenas com os olhos, o nariz e a boca à mostra, ela continua a conversa. Blue Jasmine, Game of Thrones, Disney e Nova York. Por ordem: 1) Último filme a que assistiu, dirigido por Woody Allen, deu o Oscar a Cate Blanchett, que interpretou “o papel que qualquer atriz adoraria fazer”; 2) Série ambientada em tempos medievais, que mistura fantasia e realidade e apresenta figuras míticas. “Daria tudo para viver um daqueles personagens”; 3) Últimas férias, com os filhos. Viajar é um dos maiores prazeres de Letícia. Casada há cinco anos com o diretor de fotografia Lucas Loureiro, com quem teve uma filha, Stella, 3 anos, a atriz passou “uns meses” separada e resolveu reatar o relacionamento. Em suas palavras, está “reesculpindo o casamento”, muito em função da importância que dá à estrutura familiar na criação de Stella. “Filho é uma obra-prima, precisa ser respeitado.”
Enquanto o cabeleireiro acaba de enrolar bobes grandes em sua cabeça, ela conta que, depois do despertar tibetano, toma um suco verde composto de inhame, cenoura, couve, pepino, maçã, gengibre e limão. O famigerado detox. “Dá uma energia, limpa o organismo.” Duas vezes por semana, dedica-se ao treinamento aeróbico; outras duas, à musculação – não é para ficar forte, mas para sustentar e manter a estrutura de bailarina. A dança, de qualquer tipo, é um assunto recorrente. Rindo, ela diz: “Se me levam para a quadra de uma escola, passo a noite sambando. Dentro dessa loura rufam muitos tambores!”. Sabe mesmo sambar? Ela olha como quem se sente desafiada – sem perder o humor. E samba. Verdadeiro furo de reportagem. Letícia Spiller requebrando, de roupão branco, bobes no cabelo e sandálias de borracha. Ela dá um giro, os braços levantados, e sorri. Showzão.
OH, CHILD…
Quando se pergunta o que perturba o humor dela, o assunto desemboca na política, ou melhor, na politicagem. Já sem máscara, a pele do rosto dela ruboriza. “Corrupção, hipocrisia, desvio da verba, isso me tira do sério!” E então, em uma daquelas mudanças de humor que a caracterizam, a sambista enrijece os tendões enquanto a atriz assume ferrenhamente a defesa da cidadania. “Difícil acreditar em uma liderança que vá pensar no contribuinte. Alguém que tenha coragem… É tanta coisa! Saúde e educação deveriam ser prioridades absolutas. Se pelo menos o voto não fosse obrigatório, se houvesse voto distrital. Mas não! E para que tanta burocracia? Por que não acabam com isso?” Ela mesma responde: “Para facilitar o roubo!”. Pouco depois, no set, dá uma expirada longa, pshhhh, para relaxar os músculos do rosto. Orientada pelo fotógrafo, levanta o queixo e olha para baixo, enquanto cruza e descruza pernas e braços dentro de uma hot pant preta, um tricô gola rulê listrado e um Louboutin salto 15. O domingo está frio e úmido, mas Letícia S., sensualizando ao som de “O-o-h Child”, na versão de Nina Simone, aquece qualquer ambiente. (Por Paulo Sampaio)
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