Cenário emblemático da noite paulistana nos anos 80, o Spazio Pirandello marcou época. Dos intelectuais às musas da pornochanchada, passando por condes e políticos: todo mundo queria frequentar o bas-fond da rua Augusta
Por Renato Fernandes para a revista J.P de outubro de 2015
No dia 7 de janeiro de 1980, um casarão cor de goiaba foi inaugurado no número 311 da rua Augusta, entrando para a memória afetiva e cultural de quem perambulava pela noite de São Paulo naquela época. Era o Spazio Pirandello, misto de restaurante, bar, galeria de arte, antiquário e livraria. Com cinco salas e um jardim, o espaço, surgido em 1905, mesclava obras de arte, espelhos bisotados e peças dignas de brechó. De terça a domingo, a casa, que abria das sete da noite às seis da manhã – ou até o último cliente – funcionava no esquema lotação máxima.
Como sócios, o ator Antonio Maschio e o jornalista Wladimir Soares. A diferença de temperamento da dupla foi essencial: Soares, escorpiano sério e contido, servia como base segura para que o amigo brilhasse. Rechonchudo e sem papas na língua, Maschio era tido por alguns até como ferino – mas, além de muito criativo, adorava jogar seu mel e fel por todo canto. Se porventura alguém não pagasse a conta, por exemplo, sem problemas: ele cobrava no dia seguinte, com juros.
Próximo à 4ª Delegacia, o Baixo Augusta era ponto certo de travestis, prostitutas e michês. Pouco tempo depois de inaugurarem o Pirandello, Soares e Maschio criaram a Calçada da Glória. Nela, nomes ilustres imprimiam suas mãos e assinatura no cimento fresco. E era exatamente esse hi-lo que tornava tudo mais interessante. Em setembro de 1980, o colunista Amaury Jr. publicou em sua coluna na revista Status: “Antonio Maschio equilibra-se na ponta dos pés, numa expressão física de polidez, e jura fazer da Calçada da Glória do Pirandello o Chinese Theatre caboclo. Paulo Autran, Lélia Abramo, Lygia Fagundes Telles, Flávio Rangel e Paulo Goulart já imprimiram suas mãos. Na onda dos buracos das Sabesp e Telesp, a calçada que se guarde”. Outros nomes como Fernando Henrique Cardoso, Emilinha Borba, Adoniran Barbosa, Marília Gabriela e Aparício Basílio da Silva também fizeram o mesmo. A seguir, veja quem mais passou pelo fervo…
As divas e musas
Leilah Assumpção, Irene Ravache e Marilena Ansaldi exalavam glamour quando passavam por lá. Zaira Bueno ia após as apresentações de As Moças do Segundo Andar, no Teatro Hilton, na qual atuava ao lado de Aldine Müller e Helena Ramos. Certa vez, foi para o Spazio que Zaira se mandou depois de um desgaste em cena com Helena. “Estávamos estressadas por problemas pessoais. Nesse dia, senti um pouco mais forte do que o normal a bofetada que ela me dava todas as noites e que era parte do espetáculo e revidei. Saímos de cena arrancando os cabelos uma da outra”, conta ela em sua biografia Um Banho de América.
Zaira adorava o Spazio, não só para espairecer e se divertir, mas também para namorar. Uma noite, seu ex-namorado, renomado médico paulistano, foi lá atrás dela. “Eu já estava com um ator da Globo e ele nos viu em total clima de romance”, diverte-se ela, direto da Califórnia, onde hoje mantém um spa.
Estrelas da Rede Tupi – emissora que dava seus suspiros finais – também compareciam em peso. É o caso de Maria Isabel de Lizandra, Kate Hansen, Wanda Stefânia e Carmen Monegal. Já o casal 20 era formado pela atriz Ariclê Perez e pelo diretor Flávio Rangel. “Eles eram um verdadeiro casal inglês por tamanha discrição e elegância”, diz o sócio Wladimir Soares para J.P.
Musas da pornochanchada? Iam todas, diretamente da Boca do Lixo, onde aconteciam as filmagens do gênero. Aprimorar o talento nos palcos, inclusive, era mais uma razão para a visita ao Spazio Pirandello: as meninas circulavam entre monstros sagrados do teatro e diluíam o preconceito da classe.
E como esquecer, por exemplo, da boazuda Matilde Mastrangi e seu estilão italiano? No time dos intelectuais, Aldine Müller finalmente encontrou um espaço para bater papo sobre autores como Bertold Brecht e Samuel Beckett.
Os Gatões
Na década de 1980, o restaurante foi eleito pela revista Playboy como um dos principais pontos de paquera da cidade. A mulherada se jogava e os figurões apareciam em peso. Miguel Magno, Caíque Ferreira, Hugo Della Santa e Adilson de Barros iam sempre. O pintor Claudio Tozzi, símbolo sexual das antenadas, marcava presença quase todas as noites. E Jardel Filho causou ao chegar usando uma calça de couro justa.
Certa vez, a fotógrafa Vania Toledo escolheu o local para armar a exposição de fotos do livro Homens por lá, em que clicou vários peladões. Entre eles, o estilista Markito, só de gravata borboleta e Ney Matogrosso numa banheira. “Todos iam ao Spazio. O vernissage foi um escândalo. Havia filas na rua”, conta Vania.
Em outra ocaisão, quem chamou a atenção pelo grande volume dentro das calças foi o cantor Gonzaguinha. “Os rumores vindos da porta de entrada anunciavam sua chegada. Maschio o contemplou a distância e disse para quem quisesse ouvir: ‘Meu Deus, que mala’. Obviamente se referindo ao imenso volume dos países baixos que Gonzaguinha ostentava. ‘É, mas é para viajar com outra pessoa’, respondeu o cantor, divertido com sua provocação”, relatou Wladimir Soares em seu livro Spazio Pirandello – Assim Era, Se Lhe Parece, de 2007.
Os Colunáveis
O bon vivant da Sociedade Hípica Paulista João Carlos da Silva Telles, o Barba, falecido neste ano, frequentava o Spazio. O elegante advogado Antonio Carlos Calil, com seu grande bigode, podia ser visto ao lado de uma miss. Os Conde eram habitués. Quem disse que a excêntrica milonária Linda Conde podia faltar? Ou o gentleman Eduardo Conde, com suas sobrancelhas grossas e sorriso cativante?
Luiz Armando Queiroz abalava corações quando passava por lá. Marcelo Picchi, lindo de morrer, era outra atração de uma das mesas com seu olhar misterioso. Bom para outro frequentador do lugar, o pintor e retratista Darcy Penteado, para quem Picchi posou totalmente nu. Aparício Basílio da Silva também ia. Em tempo: diz a lenda que o empresário, antes de sair para qualquer evento, colocava o rosto no vapor de uma panela quente. Depois, passava um lenço com pedras de gelo na face. Daí sua pele de bebê.
Os Intelectuais
O Spazio serviu para que algumas mulheres se livrassem das amarras da sociedade e circulassem sozinhas. Muitas delas saiam de casa para comprar cigarro e acabavam por lá. A escritora Joyce Cavalcante lançou mais de um livro no local. Para O Discurso da Mulher Absurda, contou com a leitura dramática das atrizes Sandra Barsotti e Claudia Alencar. A importância no ramo literário foi tanta que, em 1985, o lugar virou cenário de um livro de contos escrito por seus maiores frequentadores. Contos Pirandellianos 7 Autores à Procura de um Bar é assinado por Mario Prata – que lá reinava absoluto, inclusive com os filhos, ainda crianças –, Caio Fernando Abreu, Reinaldo Moraes, José Marcio Penido, Joyce e Ignácio de Loyola Brandão.
Outro marco: o Spazio foi o palco do movimento das Diretas Já. “Era um espécie de QG da vanguarda paulistana e da política nacional”, diz o frequentador Nicolau Amaral.
Gays? Nem havia ainda essa nomenclatura naquelas noites. Eram chamados de “entendidos”.
Os Acontecimentos
A incansável dupla de anfitriões também inventou a Banda do Pirandello, que saía pela rua uma semana antes do Carnaval, e o Troféu Pirandello. Na edição de 1983, 4 mil pessoas estiveram no Palácio das Convenções para o evento.
Entre as exposições, a de Picasso foi uma das mais marcantes. “Consegui o acervo no boca a boca”, revelou Antonio Maschio. Flávio Império, Florian Raiss, Samuel Spiegel e até mesmo a cantora Maysa, pintora bissexta, tiveram suas obras expostas lá. O artista argentino Patricio Bisso relembra: “Foi numa toalha do Spazio Pirandello que Keith Haring e eu fizemos uma obra a quatro mãos. Era o lugar mais animado na época, perfeito para levar uma celebridade acostumada a frequentar a Factory, de Warhol”.
Em meados dos anos 1980, a Aids começou a tirar muita gente boa de cena e o Spazio foi perdendo a força. O sócio Wladimir Soares complementa: “Acabou um ciclo dentro de mim. Ficou tudo muito comercial, já estava longe de ser o que criamos e não tínhamos mais o prazer e as ideias de antes. Foi quando resolvi conversar com Maschio”. A sociedade acabou sem brigas, mas a parceria nunca mais foi a mesma. Em 2013, Maschio faleceu e Soares não foi ao enterro. Mesmo querendo, os ex-sócios nunca conseguiram ter uma conversa cara a cara. Maschio desconversava nas tentativas de Soares, que hoje continua agitando todas na Secretaria de Cultura de Indaiatuba. “Esses tempos não voltam mais, tudo mudou. As noites do Spazio terminavam da melhor maneira possível: na cama!”, finaliza ele.
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