Publicidade
Print
Créditos: iStock

Há dez anos, as compras eram feitas nos mercados, os bancos erguiam prédios imponentes, os filmes e as músicas vinham em CDs e as discussões políticas aconteciam na mesa do bar. Hoje, tudo é virtual. Essa revolução pode ser creditada ao avanço do uso de algoritmos cada vez mais potentes

por Raul Duarte para a Revista PODER de novembro

Parecido com o xadrez, o Go é um jogo de estratégia inventado na China há mais de dois mil anos. O objetivo é ir colocando pedras, pretas ou brancas, até ocupar o maior território no tabuleiro de 19 por 19 casas. A imensa gama de possibilidades de jogadas (em torno de 200 por rodada, contra 20 do xadrez) sempre foi motivo de orgulho para a humanidade e provava que o cérebro humano seguia em larga vantagem diante de qualquer máquina – afinal, só nós éramos capazes de fazer tantas combinações. Isso até março deste ano, quando o Google desenvolveu o AlphaGo, um computador que foi capaz de derrotar, por 4 partidas a 1, o campeão mundial do jogo, o sul-coreano Lee Sedol. Impressionante? Pois atualmente seria ainda pior. Nesses poucos meses, o AlphaGo já conseguiu evoluir – trata-se de uma máquina capaz de aprender com os próprios erros. É bem possível que, em uma revanche, Sedol perca de lavada e que o troféu mundial vá para um cérebro eletrônico.

Esse evento, digno de ficção científica, é o símbolo da corrida das gigantes de tecnologia como Google, Amazon, Facebook, IBM e Microsoft para avançar no campo da Inteligência Artificial (IA). Em 2015, somente as startups investiram US$ 310 milhões nessa área, segundo a consultoria norte-americana CB Insights. E esse dinheiro não serve apenas para criar máquinas extravagantes que espezinham a humanidade em jogos de tabuleiro, carros que dirigem sozinhos ou robôs que respondem a comandos de voz. “As machine learning (máquinas que aprendem) estão ao nosso redor a todo o momento.”, explica o português Pedro Domingos, professor da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, no livro The Master Algorithm (O Algoritmo Mestre, em tradução livre).

livro
Créditos: divulgação

Mas, afinal, do que se trata a IA? Ela está em uma busca simples do Google, nas sugestões da Netflix, nos preços de passagens aéreas, em pedidos de empréstimos dos bancos on-line, ou seja, em basicamente tudo feito com a internet. “Começa com um algoritmo, que é como uma fórmula, uma receita que o computador segue. Mas agora vivemos uma revolução, já que o computador aprende sozinho a aperfeiçoar essa receita que colocamos nele”, explica Domingos.  E continua: “Para chegar nesse nível duas coisas foram essenciais: processadores cada vez mais potentes e uma quantidade imensa de dados. Quanto mais dados analisados (processo conhecido como ‘big data’) mais a máquina se aperfeiçoa”.

AS ARMADILHAS DA UNANIMIDADE

As implicações do uso da IA no dia a dia são muitas. No Facebook, por exemplo, a timeline usa a sua própria forma de curadoria do que aparece ou não para o usuário. Desse modo, ela privilegia assuntos e pessoas que você curte e comenta. “Todos esses algoritmos podem criar uma ‘bolha’ de opinião”, aponta Gabriel Itagiba, pesquisador do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio (ITS Rio). “Será que é saudável você só ler coisas com que concorda? Todas as outras visões de mundo são filtradas. Com isso, o debate perde muito. As pessoas tendem a desprezar opiniões que não estão acostumadas a ver.” A Netflix e o Spotify também aprenderam a sugerir filmes e músicas baseadas no que você já gosta. “Precisamos do diferente para avançar e evoluir”, diz Itagiba. A Amazon é pioneira desse processo de sugestão baseado em algoritmos. A barra de informações que aparece no fim da página com os dizeres “se você viu tal produto, pode gostar de…” simplesmente é responsável por 35% das vendas do site, chegando a US$ 50 bilhões por ano.

Parece mentira, mas existem casos de algoritmos que, baseados em estatísticas, podem se tornar preconceituosos. Em sites de emprego, é mais difícil oferecerem cargos de CEO para mulheres, por exemplo. Planos de saúde ou companhias de seguros também podem verificar seus dados e tirar conclusões que não são necessariamente verdadeiras. “Não há uma lei, não existe um limite do quanto as empresas podem usar nossos dados”, diz Itagiba, do ITS Rio.

ALGUÉM FALOU EM PRIVACIDADE?

Nada é de graça. Ano passado, nos Estados Unidos, um homem entrou em uma loja de departamentos extremamente irritado. Sua filha adolescente havia recebido vários cupons de desconto para produtos como berços e fraldas. O pai, indignado, acusou a loja de estimular a filha a ficar grávida. Mal sabia ele que a moça, de fato, estava esperando um bebê. Cruzando dados de buscas, interesses e antigas compras, o sistema da loja conseguiu saber, antes do avô da criança, a gestação da adolescente. “Não percebemos e não estamos legalmente preparados para isso, mas o conceito de privacidade está mudando”, analisa Alfredo Goldman, professor de ciência da computação da Universidade de São Paulo (USP). Assuntos pessoais, a localização por meio do GPS do celular, a saúde financeira ou mesmo psicológica, podemos deixar rastros de tudo isso na internet. “O Google já prevê com mais eficiência do que o poder público surtos de gripe, por exemplo. Não será surpresa se daqui um tempo as máquinas saibam até o que vamos desejar”, sentencia Goldman.

Faça uma busca ou elogie nas redes sociais sua banda favorita, por exemplo. Automaticamente, anúncios de CDs, de DVDs e de shows podem pular na sua tela. Segundo Goldman, esses mecanismos estão ficando cada vez mais eficientes, pois damos uma quantidade imensa de informações sobre nós mesmos todos os dias e de graça. Gabriel Itagiba, do ITS Rio, que também é advogado, afirma que a demanda por controle de privacidade que estava avançando na Europa e por aqui, com o Marco Civil, está regredindo. “Não sei se a lei é eficiente nesses casos, a tecnologia avança mais rápido que a legislação. E na Europa, por exemplo, a demanda agora é até por mais vigilância, já que o terrorismo é algo que os assombra.”

ESCURIDÃO NO FIM DO TÚNEL

As previsões de Pedro Domingos e de outros especialistas em IA são amedrontadoras. “Em 2029, além de tudo isso que já está acontecendo, as máquinas vão ser mais inteligentes que os seres humanos”, diz Domingos. “Ainda não sabemos quais as consequências disso tudo.” Esse cenário é visto com desconfiança desde 1984, de George Orwell, e de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, até em narrativas distópicas mais recentes, como a série Black Mirror, da Netflix. “O importante é exigir que as empresas sejam transparentes com a utilização de nossos dados”, aconselha Itagiba.

Além de irreversível, o uso da tecnologia e da IA pode ser transformador em campos como medicina, direito e em muitos outros. Máquinas inteligentes já estão sendo utilizadas em exames como os de sangue e os de imagem para melhorar a precisão dos resultados. Os imensos bancos de dados de jurisprudên máquina do que por um advogado. Na política, cada vez mais as informações circulam de forma descentralizada, e estudiosos apontam como imprescindível o uso das redes em movimentos sociais como a Primavera Árabe, Occupy Wall Street e os protestos de julho de 2013 no Brasil. “Não adianta voltarmos às cavernas. O mundo mudou e precisamos aprender a lidar com ele”, reflete Goldman.

 

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

Instagram

Twitter