Por conta de sua proximidade com alguns tucanos, seus desafetos no PT o chamam de pelicano. Sedutor, individualista, conciliador e bem-humorado, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo é um dos principais interlocutores de Dilma Rousseff
Por Bruna Narciso para a revista PODER de junho
Fotos Roberto Setton
Corria o ano de 2006 e chegava ao fim mais um dia da campanha pelo governo do Estado de São Paulo. José Eduardo Cardozo acompanhava o então candidato do PT Aloizio Mercadante – a caravana passava por Franca, cidade do interior paulista. Estavam todos reunidos na praça central quando Cardozo viu uma menina se aproximar correndo do local em que se encontravam. Sem pensar duas vezes, em uma cena clichê de campanhas políticas, abaixou-se para pegar a garota no colo. Só depois de levar alguns chutes é que se deu conta de que não se tratava de uma criança, mas, sim, de uma eleitora… anã. Como não poderia deixar de ser, até hoje a história é motivo de piada entre os amigos e é para esse lado mundo da lua que o atual ministro da Justiça apela quando questionado sobre ter escrito pareceres favoráveis ao banqueiro Daniel Dantas para o MP italiano. “Se fiz algum ofício ou parecer para o MP italiano, não me lembro. Agora, garanto que não fui advogado dele”, despista, tentando amenizar o fato, um dos mais polêmicos de sua trajetória profissional, que o levou a ser chamado por muitos como “homem de Daniel Dantas”.
Cardozo não é unanimidade. Desde seu ingresso na vida pública, no início da década de 1980, é motivo de discórdia dentro de seu próprio partido. Uma ala de desafetos – entre eles estaria o ex-presidente Lula – o acusa de defender apenas seus próprios interesses. Há quem diga também que Cardozo deixa a desejar no Ministério da Justiça, especialmente no que diz respeito à Polícia Federal. “Quero crer que não seja despreparo ou inexperiência”, comenta um amigo advogado, referindo-se às últimas operações da PF que atingiram apenas os partidos da base governista. “Esperamos quase um século para conseguir uma PF autônoma e a grande questão é saber se estão apurando possíveis erros ou preferências”, completa outro jurista. Desafetos também costumam definir como “apagada” a atuação de Cardozo à frente da Justiça. Segundo um correligionário, que tem uma trajetória parecida, ele não tem uma marca e sua atuação é sofrível em todos os aspectos.
SIM, SENHORA!
Descontentamentos à parte, não dá para ignorar que Cardozo construiu uma sólida carreira na política. De 1994 até hoje foi vereador, deputado federal e, finalmente, ministro – sem intervalos. Também é o que está há mais tempo no comando da pasta da Justiça na fase democrática do país. Com quatro anos e cinco meses de mandato, já ultrapassou Márcio Thomaz Bastos, que permaneceu no cargo durante quatro anos e dois meses. Atualmente, além de Mercadante e do marqueteiro João Santana, Cardozo é um dos únicos a quem a presidente recorre para pedir conselhos. Os dois se aproximaram no início de 2006, quando ela era ministra da Casa Civil e ele, deputado federal. “Dilma ligou para seu gabinete, questionando sobre um projeto de lei. O Zé foi firme e respondeu que a informação não procedia”, conta uma pessoa que conhece bem a rotina do ministério e acredita que a resposta direta tenha contribuído para aproximá-los – afinal, Dilma Rousseff é conhecida pelo estilo contundente.
Apesar do episódio, que dá a impressão de que ele é um pouco seco, uma das principais qualidades de Cardozo é justamente a facilidade de se relacionar bem com as outras pessoas. “Acho que foi algo que aprendi na vida política“, justifica. Para alguns amigos, saber ser simpático é algo que Cardozo faz bem desde sempre. “Ele é ‘easygoing’, tem conversa fácil e muito bom humor”, garante o jurista Pedro Dallari, diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), que conhece o ministro há mais de duas décadas. “Durante o movimento estudantil, o Zé Eduardo sempre se deu bem com todo mundo”, emenda o advogado paulistano Ernesto Tzirulnik, que foi vice de Cardozo na presidência do Centro Acadêmico 22 de Agosto, do curso de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Há quem diga que esse lado conciliador é um dos motivos que justifica a proximidade de Cardozo com a presidente. “Não acho que ela tenha gênio difícil, é só exigente”, comenta o ministro. Para o ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo, o estilo tranquilo de Cardozo ajuda a garantir o equilíbrio entre os dois. Tanto que o relacionamento entre eles vai além das questões do Planalto. Há dois meses, por exemplo, Dilma o obrigou a fazer um check-up que diagnosticou um câncer de tireoide – já operado e tratado. Foi ela também quem marcou a primeira consulta dele com o psicanalista e clínico- geral argentino Máximo Ravenna, criador da dieta responsável pela silhueta cada vez mais enxuta da presidente. Desde que começou a seguir o programa, há cinco meses, Cardozo já perdeu 20 quilos. Os dois também costumam trocar dicas de livros, músicas e óperas. “Ele só consegue se dar bem com a presidente há tanto tempo porque dificilmente entra em algum tipo de embate ou discussão”, alfineta um amigo partidário.
De acordo com alguns conhecidos, dançar conforme a música também é o que garante a ele passe livre entre tucanos e petistas. Por conta disso, o ministro é chamado “pelicano” dentro do PT. Um advogado próximo revela que Cardozo e o ex-deputado federal petista Sigmaringa Seixas ganharam o apelido por causa da amizade com tucanos como José Serra e Aloysio Nunes.
SÓ DÁ ELE
Do tipo que olha o interlocutor nos olhos, toca Chico Buarque ao piano e sempre tem um comentário pertinente e um sorriso de canto de boca, a fama de sedutor também avança pelo terreno amoroso. Solteirão convicto há anos, Cardozo assumiu publicamente apenas três relacionamentos: Marisa, com quem namorou durante o curso de direito na PUC; Sandra, mãe de um de seus filhos, com quem ficou quase 20 anos; e Manuela D’Ávila, deputada do PCdoB que namorou durante cerca de três anos. O ministro, mais uma vez, sai pela tangente. “Isso é um absurdo, intriga da oposição. Essa história de don juan começou depois que assumi o namoro com a Manuela. Na época, algumas colunas dos jornais do sul diziam: ‘Fora, paulista!’”, conta, rindo. De novo, não é bem isso o que se conta. “Chegamos a nos encontrar três vezes na mesma semana e em cada dia ele estava com uma companhia diferente. Esse comportamento deixou não só minha mulher constrangida, mas as de outros amigos também”, comenta um advogado próximo. Também existem histórias de romances com jornalistas, delegadas, parlamentares e até com alunas.
Popular com as mulheres, mas extremamente focado em si mesmo e nos próprios interesses, eis outra característica atribuída ao ministro. “O Zé Eduardo é um cara de projeto solo. É muito difícil ele se comprometer com alguém ou com alguma coisa”, comenta um correligionário. Isso também explicaria o relacionamento delicado com alguns membros do PT. Foram ao menos três acontecimentos emblemáticos com desfecho contra o próprio PT – o que desagradou, e muito, Lula e outras lideranças do partido. O primeiro foi o fato de apoiar e ter trabalhado ao lado de Luiza Erundina, não só na campanha, mas também durante o seu mandato como prefeita de São Paulo, de 1989 a 1993. Erundina não era a candidata preferida dos caciques petistas, mas venceu as prévias do partido e conseguiu se eleger.
O segundo embate também aconteceu no fim da década de 1980, quando Cardozo atuou como secretário de governo da prefeita. Foi ele quem conduziu a investigação que culminou na exoneração de Luiz Eduardo Greenhalgh – então vice-prefeito de São Paulo –, episódio conhecido como Caso Lubeca (nome da empresa acusada de pagar propinas para a prefeitura paulistana). Lula lutou sem sucesso até o fim do mandato de Erundina para reabilitar Greenhalgh politicamente. Por fim, o caso CPEM, em 1993. Cardozo integrou a comissão especial criada pela Executiva Nacional do PT para investigar denúncias feitas pelo petista Paulo de Tarso Venceslau, ex-secretário de Finanças de São José dos Campos, no interior paulista, contra a Companhia para Empresas e Municípios (CPEM). Cardozo concluiu que Roberto Teixeira, muito próximo a Lula, atuou em nome da empresa, vendendo seus serviços.
Embora Cardozo insista em negar, a relação entre Lula e ele azedou desde essa época. Sinal disso é que durante os oito anos em que o ex-presidente ocupou o Planalto, Cardozo nunca foi nomeado para nenhum cargo. “Lula já pediu a cabeça de Cardozo mais de uma vez. Acredito que Dilma só o mantém lá porque quer provocar o ex-presidente”, revela um petista da velha guarda.
Sua relação com o banqueiro Daniel Dantas é outro momento nebuloso em sua carreira. Em 2003, no início de seu primeiro mandato como deputado federal, Cardozo emitiu um parecer ao Ministério Público Federal sobre a suposta compra superfaturada da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT) pela Brasil Telecom (BrT) – o Opportunity, banco de Dantas e um dos acionistas da BrT, achava que a companhia valia US$ 600 milhões e não os US$ 850 milhões pagos pela Telecom Italia, também sócia. “Algum tempo depois, ele também fez representações no Ministério Público italiano em defesa de Dantas”, afirma o mesmo petista.
Em maio de 2006, o nome de Cardozo foi novamente ligado ao do banqueiro. A revista Veja noticiou que Dantas teria uma lista de contas bancárias em paraísos fiscais para tentar incriminar o presidente Lula e outros integrantes da cúpula do governo. Pouco tempo depois, Cardozo compareceu a um jantar na casa do senador Heráclito Fortes, aliado do banqueiro, que também estava presente, além do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e do deputado federal Sigmaringa Seixas. A explicação de Cardozo para o encontro: “Márcio queria que a gente fosse a um jantar com o Daniel Dantas, para ter dois deputados de testemunha e evitar especulação”.
TIO PATINHAS
Ganhar dinheiro dando aulas, advogando ou vendendo pareceres – isso é o que Cardozo planeja para o futuro, já que não acredita ter muito tempo no governo. “Fico até quando a presidente Dilma precisar de mim.” Uma possível nomeação para o Supremo Tribunal Federal – o que muitos afirmam estar entre seus grandes sonhos – foi por água abaixo com a PEC da Bengala, que aumentou de 70 para 75 anos a idade de aposentadoria obrigatória dos ministros. “Agora, Dilma não tem ninguém para nomear até o fim de seu mandato, a não ser que algum ministro venha a morrer. Ainda assim, a possibilidade do Zé Eduardo conquistar o cargo é quase nula”, afirma um correligionário. O ministro, por sua vez, assume que fazer parte do STF é o sonho de todo advogado, mas despista, garantindo que nunca batalhou por isso.
Agora, o plano é defender a tese de doutorado e seguir a carreira acadêmica. “Fiquei muito impressionado com a qualidade da pesquisa de sua dissertação de mestrado”, afirma o renomado jurista e professor Heleno Torres. A atuação de Cardozo na sala de aula é elogiada até mesmo por desafetos. “Vi poucos professores com a qualidade e a didática dele. Ele é do tipo que não prepara a aula. Pergunta para os assistentes o tema do dia e começa”, conta um integrante do PT. Outro elogio recorrente é a qualidade de seus pareceres. Assim como o seu conhecimento em direito administrativo.
NA PONTA DA LÍNGUA
Os principais trechos da entrevista que o ministro concedeu em um sábado em seu apartamento no bairro da Bela Vista, em São Paulo.
PODER: Como o senhor definiria sua
carreira política?
José Eduardo Cardozo: O ápice da minha atuação como vereador foi a CPI da Máfia dos Fiscais, em 1999, que caçou mandatos de dois verea-dores, de um deputado estadual e quase o do então prefeito Celso Pitta. Na época, andava acompanhado por seguranças porque fui ameaçado de morte. Como deputado federal, já era governista, mas minha atuação parlamentar sempre foi pautada pela ética. A reforma política, por exemplo, é uma de minhas bandeiras, mas a ética sempre é o eixo de tudo.
PODER: Qual foi seu grande legado como ministro?
JEC: É difícil falar em legado, porque as coisas ainda estão acontecendo, é um processo. Mas destacaria o combate à corrupção, a autonomia da Polícia Federal e as políticas econômicas desenvolvidas. No primeiro mandato, criamos o Sistema Nacional de Informações de Estatística de Segurança Pública (Sinesp) para dar informações em tempo real sobre a criminalidade no país. Tem também o Sinesp Cidadão, aplicativo gratuito para fotografar a placa de veículos e indicar se eles são ou não roubados. Nós só vamos começar a colher as mudanças na segurança pública ao longo do governo da presidente Dilma e com o tempo.
PODER: Que planos tem para o futuro?
JEC: Não pretendo me candidatar mais. Minha ideia é terminar o mandato e me dedicar à vida acadêmica, que ficou muito parada. Quero voltar a dar aulas e advogar um pouco. Também por uma questão de tranquilidade financeira. Nunca tive ambição de ficar rico, mas cair sempre no limite do cheque especial não é uma coisa muito agradável.
PODER: Recentemente, o senhor recebeu advogados de empreiteiras acusadas pela Lava Jato e o ex-presidente do Supremo Joaquim Barbosa cobrou de Dilma sua demissão imediata. O que tem a dizer sobre esse episódio?
JEC: Eu respeito muito a opinião do Joaquim, mas sempre achei um erro e uma violação legal não receber advogados que têm postulações. Segundo o estatuto da OAB, é direito de qualquer advogado ser recebido pelas autoridades.
PODER: Como recebe as críticas que fazem sobre sua gestão no ministério?
JEC: Acho até engraçado. Por exemplo, quando houve o caso do cartel do Metrô, setores do PSDB me acusaram de ter instrumentalizado a Polícia Federal para perseguir os tucanos. Depois, veio o episódio da corrupção na Petrobras e setores simpatizantes do meu partido disseram que eu não controlava a PF. Aí, só me resta dizer: ou eu instrumentalizo ou não controlo a PF. Decidam-se!
PODER: O senhor é conhecido por se dar bem com tucanos e outros políticos da oposição. Em algum momento, o PT chegou a questionar esse comportamento?
JEC: Sim, há setores do partido que consideram isso inaceitável. Mas aprendi com o Cláudio Lembo a sempre ouvir opiniões divergentes. Então, tenho bons amigos tucanos.
PODER: Atualmente, em que pé estão as coisas entre Lula e o senhor?
JEC: Hoje, temos uma boa relação, mas houve momentos tensos no passado. Não só com Lula, mas também com pessoas que discordavam da minha postura. Acho que em alguns momentos posso ter errado mesmo. Hoje, não mudaria meus objetivos, mas faria diferente: dialogaria mais, seria menos intolerante.
PODER: Na Lava Jato nunca se fala de bancos, algo questionável. No meio dessa história, porém, o senhor apareceu em uma foto abraçado com o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco. Não acha isso errado?
JEC: Não. A gente tem de conviver com quem se dá bem. O Trabuco
é meu amigo e, depois tive a honra de saber, vota em mim desde o tempo em que eu era vereador.
PODER: De onde vem essa história de ‘homem de Daniel Dantas’?
JEC: Não sei. Nunca entendi essa história, já que nunca advoguei para ele. No caso da CRT, recebi um material que incluía um conjunto de irregularidades e ilegalidades indicando que o poder público tinha perdido alguns bilhões de dólares. Como deputado, fiz uma representação. Se aquilo atendia a interesses de A, B, C ou de Daniel Dantas, do bispo ou do papa, eu não sei, mas recebi uma denúncia de fraude e fiz duas representações: uma para o Ministério Público brasileiro e outra para o criminal. Depois, comecei a ser procurado por deputados e pela imprensa italiana para dar entrevistas, mas não estava entendendo nada. Não me lembro mesmo se cheguei a mandar alguma coisa para a Itália.
SEMPRE NO JOGO
Nascido e criado no bairro paulistano do Brooklin, Cardozo, que está com 56 anos, é filho único de Joel e Zilda – casal típico da classe média paulistana. É pai de dois filhos, Mayra, de 23 anos e fruto de seu relacionamento com Sandra Jardim, e Théo, de 7, que assumiu há dois anos e de quem nunca foi muito próximo.
O pontapé inicial na política aconteceu em 1978, no movimento estudantil da PUC-SP. Assim que se formou, em 1981, passou no concurso para procurador municipal da capital paulista – cargo do qual está licenciado há mais de 20 anos. Iniciou na vida pública como assessor jurídico da vereadora Irede Cardoso e, mais tarde, de Luiza Erundina. Na época, foi chamado por Cláudio Lembo, secretário de Negócios Jurídicos do governo Jânio Quadros, para assessor jurídico da prefeitura. “Tive de pedir permissão ao Jânio, pois o Zé era petista”, lembra o ex-governador. Cardozo, que a essa altura estava com 28 anos, continuou na prefeitura como secretário de governo de Erundina. “Ele me ajudou a governar São Paulo”, relembra a ex-prefeita.
Em 1992, disputou a sua primeira eleição como vereador. Foi eleito suplente e assumiu em 1994. Conseguiu se eleger nos dois pleitos seguintes e chegou a presidir
a Câmara em 2001. No ano seguinte, foi um dos deputados federais mais votados do PT e, quatro anos depois, também foi eleito, mas como um dos menos votados do partido. Em março de 2010, escreveu uma carta informando aos eleitores que não se candidataria mais até que acontecesse uma reforma política. No mesmo ano, tornou-se coordenador da campanha de Dilma para a Presidência, o que lhe rendeu o convite para a Justiça. O primeiro a cumprimentá-lo foi Paulo Maluf.
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