Elas enfiaram alegremente o pé na jaca nos anos 1980. Sorriso fixo no rosto, cabelão de pantera e paetê de brilho intenso, essas moças passavam as noites dançando, os dias dormindo e o resto do tempo recapitulando ao telefone (ou no coiffeur) tudo o que tinham aprontado no Hippopotamus, na suíte do Copa, em jantares regados a Cristal, em festas na casa dos amigos e até no banheiro dessas festas. É história que não acaba!
por Paulo Sampaio para Revista J.P
De paetê, salto alto e o cabelo já meio tombado, a socialite é vista caminhando pela feira ao meio-dia. Feira? Com essa roupa? Trim-trim-trim. Em toda a cidade, os telefones tocam desesperadamente. A bomba que muitos haviam previsto na noite anterior se confirmou. A moça foi dormir com o marido da melhor amiga, só que o bonitão esqueceu de avisar a ela que no outro dia tinha feira na porta de casa e que não dava para estacionar o carro ali. “Você acredita?”, perguntavam-se as marocas, soltando gargalhadas roucas. “Ela teve de sair a pé pela rua, para pegar um táxi.”
Nos trepidantes anos 1980, era comum sair de casa de longo, para dançar, e terminar a noite (ou começar o dia) descalça na pizzaria Guanabara, no Baixo Leblon, entre artistas, roqueiros e carnavalescos. Ou num restaurante pé-sujo no centrão de São Paulo. Nesse contexto, a presença mais requisitada era a das – vamos chamá-las carinhosamente assim – adoráveis desvairadas. Animadíssimas, elas riam sem parar, dançavam freneticamente e conheciam o grand monde de A a Z. Estavam sempre prontas para encarar o que chamavam na época de “noitada”: começava com o drinque na casa de um, continuava com o jantar na casa de outro, depois “esticada” no Hippopotamus ou Gallery e fim de noite (ou fim de linha, dependendo do ângulo) fechando os bares.
Renata Fioravanti, hoje com 60 anos, diz que passou praticamente 20 sem dormir (à noite), “só no baculejo”. Ex-primeira-dama do Gallery, o clube mais fervido da época, ela lembra com orgulho de tudo o que viveu. J.P aplaude de pé a vida cheia de recuerdos dessas moças. Uma das melhores passagens de Renata foi quando resolveu, de última hora, sair no desfile da Mocidade (Independente de Padre Miguel). Pediu ajuda à amiga Marília Gabriela, que usou suas conexões e…“Em cinco minutos, toca o telefone e uma voz de homem com sotaque carioquérrimo se identifica como ‘Paulinho da Mocidade’.” O carnavalesco informou que estava ligando a “pedido do amigo Lulu Borghetti” e perguntou: “Você se garante?”. E Renata: “Como assim, se garante?” E Paulinho: “Digamos, assim, você tá em forma?”.
Renata então soube que sairia pela primeira vez como destaque, e, mais divertido ainda, com um biquininho minúsculo cravejado de pedras: “Eu ameeei. Na concentração, o povo todo empurrando minha bunda na escadinha, para ajudar a subir no carro. A Rosana cantora (‘Como uma Deusa’), que ia também, amarelou”.
Uma desvairada autêntica jamais amarelava. J.P acessou alguns consultores sociais, riu muito com os casos que eles contaram e fez uma seleção dos melhores flashes. Colaboraram a própria Renata Fioravanti, Kiki Garavaglia, Dora Cortez, Vania Toledo, Pirilena Lacerda, Ovadia Saadia e outros que preferiram o anonimato. Nossos consultores não participaram necessariamente de “tudo” o que aconteceu na época, mas a gente garante que eles estavam de olhos bem abertos. E põe aberto nisso.
“O meu grupo não era dos sábados e domingos, era da semana toda. Muitas vezes, às 8 da manhã, estava todo mundo no Baixo. No fim de semana, a gente descansava. Ia para Angra de barco, ou para Búzios”, lembra a produtora Dora Cortez, 53 anos, que, à época, usava o sobrenome Klabin, do marido Cláudio. Baiana de nascimento, ela chegou no Rio produzindo shows de Gilberto Gil e em pouco tempo já figurava no rol das cinco mulheres mais fotografadas pelas colunas da cidade, segundo matéria publicada bem depois pela revista Veja. “Fui muito bem recebida pelos cariocas”, lembra.
NA MESA DO TOM
Sempre acelerada, ela morre de rir contando que sua ligação com Cláudio Klabin a catapultou à “fama”. Dora era reconhecida nas ruas “como se fosse uma artista”: “De repente, eu estava no aeroporto de Brasília, vinha um deputado e me chamava pelo nome. Dizia que a minha foto estava ao lado da dele no jornal”.
Um dia perfeito para ela começava com um almoço na mesa de Tom Jobim na Plataforma (churrascaria no Leblon) e terminava na pista do Hippopotamus. Na mesa de Tom, era gente que não acabava: artista, socialite, enxertado, aspirante a amigo de poeta, poeta e muitos etcs.
A “imprensa especializada” registrava tudo. Mas o grupo de “famosos colunáveis” era bem mais restrito que as celebridades de hoje – não bastava fazer um selfie em Trancoso. Na ocasião, as notícias duravam muito mais, incluindo as fofocas dos cronistas sociais malditos, e eles tinham de tomar cuidado ao sair de casa. Certa vez, Pirilena Lacerda quebrou um guarda-chuva Vuitton na cabeça do Michael Koellreutter (diretor de redação da revista Interview, que costumava entregar pormenores da vida íntima dos socialites). “Eu dava a guarda-chuvada e dizia: ‘Essa é pela sacanagem que você fez com Fulana, essa com sicrana’.” A ‘notícia’ saiu em todas as colunas e deu muito assunto. Se por um lado os escândalos eram mais “consistentes” (hoje qualquer foto é nota), por outro não havia essa enxurrada de gente “famosa”, conta.
SAIA DE COURO E O POLANSKI
O exterior ficava mais longe e as celebridades internacionais, mais ainda. Então, claro, a desvairada sempre tinha um affair com alguém inatingível. “Um dia, no (Chez) Castel, de Paris, fiquei com o (Roman) Polanski. Eu era garota, meio leather, tava com uma saia de couro e uma blusa de renda transparente, sem nada por baixo. Ele veio direto”, lembra Pirilena.
Muito alta, seios grandes, voz rouca, ela conta que frequentemente a confundiam com travesti. “Quando fiquei grávida, entrei no cabeleireiro e uma dessas senhoras caretas olhou surpresa para a minha barriga. Ela tinha acreditado que eu era traveca mesmo.”
Não raro, as adoráveis desvairadas terminavam as noites em boates gays, como o Sótão, na Galeria Alaska, em Copacabana, e o Val Improviso, no centrão de SP. Nossas amigas praticamente não existiam sem a companhia de algum amigo gay – e vice-versa. Como as festas eram diárias, e a praxe era achar graça de tudo, elas precisavam de alguém que criasse os modelos (o label não era obrigatório), a penteassem e ainda arrasasse na pista de dança (já que seus maridos ficavam no uíscão).
TÔ NEM AÍ
O marido da desvairada em geral era rico, desapegado e magnânimo: tipo nem aí para a hora em que ela chegava em casa. Achava ótimo que a mulher tivesse amigos fervidos que a levassem para passear, como o estilista Markito, o cabeleireiro Silvinho, o roqueiro Cazuza, os estilistas Frankie e Amaury, o produtor Guilherme Araújo, o arquiteto Sig Bergamin, o herdeiro Joaquim Álvaro Monteiro de Carvalho. “Eu fui das primeiras a dançar sem marido no Hippo”, lembra a colunista de J.P Kiki Garavaglia, mulher de Renato Garavaglia, ambos assíduos frequentadores das noites cariocas nos anos 1980. “Eu ia a simplesmente todas as festas, e ainda recebia muito em casa. Quando chegava o Carnaval, eu tava um trapinho.” Kiki afirma que o colunista social Ibrahim Sued criou para ela o título de “locomotiva”, termo que se tornou um clássico na crônica social: designava a mulher deslumbrante, o ícone, a que fazia acontecer. Sobre drogas, ela diz que considerava normal na época, mas para uso social, sem fissura. “Às vezes tinha aquela fila no banheiro… Eu transitava bem nas festas do underground e nas dos caretas, que eram cheias de sobrenome quatrocentão. Nas dos artistas, eles diziam: ‘Lá vem a dondoca’, e acabavam se surpreendendo. Se você não era de família boa, tinha de se destacar em alguma área”, conta Kiki, que nasceu Nascimento Silva, nome de rua no Rio.
NAME DROPPING
Os informantes de J.P salpicam personagens fundamentais para a compreensão daquele cenário. Sugerem: “Fala com a Odile, fala com a Ionita. Tem o Helcius! A Noelza!”. O name dropping era obrigatório. Para provar que pertenciam ao grupo, os ‘famosos de coluna’ se chamavam apenas pelo primeiro nome. Ditos em voz alta, na estreia de um show no Canecão, soavam glamourosos como o da protagonista da novela de Janete Clair.
Trinta anos depois, as desvairadas parecem ter abaixado o facho. A maioria delas se “escondeu” em praias remotas do sul e cidades bucólicas no meio do mato. Tem as que plantaram hortas, as que abriram um restaurantezinho e as que casaram na Europa. Sem se queixar, elas dizem que não existe mais festa, que a música ficou chata e que muitos amigos desapareceram. Como desvario e tédio não frequentam a mesma festa, elas preferiram se retirar.
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