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Dupla Identidade
Dupla Identidade
Dupla Identidade
Gloria Perez

Em seu escritório com vista para o Forte de Copacabana (leia-se 180 graus de puro deslumbramento), Gloria Perez escreve as novelas e séries que marcam épocas. É o caso de “Barriga de Aluguel” (1990), “Hilda Furacão” (1998) e “O Clone”  (2001). Todas têm em comum o ineditismo dos temas principais. A autora falou, por exemplo, de transplante de órgãos muito antes de ele ser uma realidade e chegou a prever inovações tecnológicas em “Explode Coração” (1995). Tem sido assim desde sua primeira novela – uma colaboração em “Eu Prometo”, de Janete Clair, em 1983. Aos 66 anos, ela agora explora o pouco falado universo dos serial killers em “Dupla Identidade”, atualmente no ar na Globo. A seguir, o melhor da conversa de Gloria com a revista J.P publicada na edição de novembro. (Por Julia Furrer)

J.P: Você postou no Twitter que a presa Suzane von Richthofen [condenada por ter planejado o assassinato dos pais, em 2002] deu show de manipulação em recente entrevista e que ela seria o par perfeito para o Edu [personagem de Bruno Gagliasso em “Dupla Identidade”]. Você se inspirou em psicopatas brasileiros para fazer a série?
Gloria Perez: Pelo que se sabe, Suzane é mestre na manipulação, mas a comparação para por aí. Edu é um serial killer. Não me inspirei em criminosos brasileiros porque faz pouco tempo que se reconhece a existência dos serial killers por aqui. Nos Estados Unidos há um departamento inteiro do FBI só para estudar a mente e o comportamento deles.

J.P: Como você escolhe os temas que vai abordar?
Gloria Perez: A vida cotidiana me fisga. Alguma coisa que li no jornal ou vi na rua. No caso de “Dupla Identidade”, tenho curiosidade pelo tema, sempre li muitos suspenses e policiais, e esse é um gênero pouco explorado pela TV brasileira. Já na novela “Explode Coração”, lembro que passei pela Cinelândia e encontrei um monte de mulheres segurando cartazes com fotografias de crianças e adultos. Eram mães de desaparecidos vendo se alguém reconhecia aqueles rostos. Aquilo me deu uma inspiração imediata.

J.P: Você foi pioneira ao tratar temas como barriga de aluguel e clonagem. Da onde vem esse olhar?
Gloria Perez: É só uma questão de perceber as coisas que já estão aí e imaginar o próximo passo. Em 1995, quando criei, também em “Explode Coração”, uma espécie de Skype jurássico em que a cigana Dara se comunicava com o empresário Júlio Falcão, já existia um sistema de troca de mensagens pré-internet. O que fiz foi raciocinar em cima do que estava vendo. Era claro que conversas pelo vídeo teriam de ser possíveis em algum momento. J.P: Nunca te chamaram de louca? GP: Sim, muito. A sorte é que nunca acreditei. A Globo segurou a novela “Barriga de Aluguel” por seis anos porque achava fantasiosa demais a história de uma mulher gerando um filho no útero de outra pessoa. Mas eu já tinha lido um artigo científico sobre isso. De novo, era uma questão de tempo.

J.P: Você sempre teve boa imaginação?
Gloria Perez: Sim. E também sou observadora. Passei a infância no Acre, região cheia de lendas e mistérios, em um tempo em que Rio Branco era um lugar completamente isolado. Lia revistas com seis meses de atraso e tinha de inventar o mundo que acontecia longe de mim. Einstein diz que a imaginação é mais importante que o conhecimento. Eu concordo.

J.P: Como começou a fazer novelas?
Gloria Perez: Colaborei em “Eu Prometo”, de Janete Clair. Ela estava muito doente e começou a me preparar para assumir a trama sozinha, pois pressentia que morreria antes do fim [de fato, Janete morreu durante a exibição da novela, em 1983, e Gloria levou a história até o fim].

J.P: Qual foi o melhor conselho que ela te deu?
Gloria Perez: O de não ter medo do ridículo. Janete não tinha a menor preocupação com o que as pessoas achavam do que ela escrevia. Era despudorada, não tinha medo de tocar em nenhuma tecla da emoção.

J.P: Você não teme o ridículo?
Gloria Perez: 
E o que é o ridículo? Sinceramente não sei. Aqui no Brasil a gente tem um patrulhamento muito grande da imaginação. Todo mundo adora as séries americanas, que são altamente inventivas, mas quando é falada em português a coisa muda. Tem sempre alguém para dizer: “Ah, mas isso é forçado!” ou “Aquilo não existe!”. Ora, é uma ficção! Ela serve justamente para saciar certas fantasias humanas. O super-homem voa com uma capa e a gente gosta de vê-lo voar. É irreal, mas e daí?

J.P: E por que a patrulha é maior no Brasil?
Gloria Perez: Porque a expectativa é maior. O americano entende que a ficção pode ser apenas entretenimento. No Brasil se espera que a novela ensine, distraia as crianças, passe valores morais. Lembro que abriram um processo contra o Gilberto Braga porque ele fez uma enfermeira que matava o doente envenenado. Uma cena absolutamente normal da dramaturgia que não está sugerindo que todas as enfermeiras se dediquem a envenenar doentes. Em vez de as pessoas se preocuparem com causas reais, elas se dedicam a isso, é inacreditável!

J.P: Fazem muita piada sobre você colocar indianos morando na Índia e falando português, por exemplo…
Gloria Perez: Mas todo mundo vai ao cinema assistir “Cleópatra”, “Maria Antonieta”, “Napoleão” e “A Queda do Terceiro Reich”. Tudo falado em inglês.

J.P: Ficou mais difícil fazer novela depois da internet e, como consequência, do aumento de críticos?
Gloria Perez: Hoje todo mundo é crítico mesmo, uma loucura. Até certo tempo você lia críticas de futebol feitas por especialistas no assunto, hoje qualquer um opina. Eu não entendo de cozinha, mas amanhã posso fazer um blog com a minha opinião.

J.P: Costuma responder quem te critica?
Gloria Perez: Eu fiz essa burrice em “Salve Jorge” [novela de 2012], mas me arrependi. Foi uma grande bobagem. É como você bater boca em praça pública. De repente não interessa mais o que está sendo falado, importa a balburdia. Você suscita a agressão. Internet tem muita torcida organizada e acaba sendo um lugar para liberar recalque e agressividade.

J.P: O peso que a TV tem na vida das pessoas assusta?
Gloria Perez: Não deveria ter esse peso, né? Tem porque somos carentes de muitas coisas, as instituições são todas frágeis. E por muitos anos foi a única opção de distração disponível para uma classe que não tinha educação para conseguir ler um livro, nem dinheiro para ir ao cinema ou ao teatro.

J.P: A novela no Brasil é o equivalente a Hollywood para os americanos?
Gloria Perez: Totalmente. Ela é a crônica da vida cotidiana. Se no futuro quiserem saber quais eram nossos costumes, discussões, problemas e moda terão de recorrer a elas. O cinema acabou ficando com o papel de tese sociológica. Isso está mudando, mas ele trata muito pouco da vida de gente comum.

J.P: Sendo a novela uma obra aberta, a trama muda conforme os números do ibope?
Gloria Perez: Hoje essa métrica do ibope está desatualizada. Com a internet, confio mais na repercussão. Mas a única coisa imperdoável é a indiferença. Preciso que as pessoas se conectem emocionalmente com a minha obra, amando ou odiando.

J.P: Você dispensa os colaboradores e prefere escrever as novelas sozinha. Por quê?
Gloria Perez: É muito mais rápido e fácil. Não ter de discutir, ouvir opinião, corrigir o trabalho do outro torna o processo mais simples. A ideia só toma forma quando escrevo. Dividir uma fantasia é complexo.

J.P: Já errou ao escolher um ator?
Gloria Perez: Uma vez fiz uma história de amor e o casal protagonista brigou feio, se recusou a continuar com as cenas de beijo. Tive de mudar o rumo da trama.

J.P: Como é sua rotina?
Gloria Perez: Quando estou fazendo novela escrevo sete ou oito horas por dia. Antigamente terminava um capítulo e ia comer uma pizza ou encontrar os amigos no Baixo Gávea. Hoje tudo ficou mais difícil. Penso muitas vezes antes de sair. Tenho preguiça de estacionar, medo do trânsito, da violência. Mas quando saio gosto de ir ao cinema, andar de bicicleta e dançar gafieira na Estudantina.

J.P: Você parece ser uma pessoa bem alegre…
Gloria Perez: Sempre fui. E nunca fiz terapia apesar de ter namorado três psicólogos.

J.P: Como lida com angústias e momentos difíceis?
Gloria Perez: Tenho um senso prático muito forte. Meu pai sempre me ensinou a não agredir a realidade e eu realmente aprendi a não lutar contra. A vida se apresenta e eu lido com ela.  Se você fingir que não está chovendo, não vai ficar menos molhado. A realidade é sempre mais forte.

J.P: Foi assim que lidou com o câncer de tireoide que descobriu durante a novela “Caminho das Índias”?
Gloria Perez: Exatamente. Metade da novela foi escrita na cadeira da quimioterapia. Mas foi bom ter um objetivo. Porque há uma parte do tratamento que depende da medicina e uma parte que depende de como a pessoa se posiciona em relação a isso. Eu fiz a minha parte e agora estou curada.

J.P: Alguma vez se deslumbrou com o sucesso?
Gloria Perez: Não. Segurar o holofote exige maturidade e compreensão de que o sucesso está no veículo no qual você trabalha, ou na obra que você executou, não em você.

 

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