Quando entrou no quarto de um hospital em que o americano David Kirky vivia seus últimos momentos, em novembro de 1989, a fotógrafa Therese Frare não imaginava que o clique em preto e branco que estava prestes a fazer daquele paciente de AIDS que conheceu pouco tempo antes e quase que por acaso, com a devida permissão dele, se tornaria uma das imagens mais icônicas de todos os tempos. Kirky, então com 32 anos, morreu cercado pelo pai, pela irmã e por uma sobrinha em maio do ano seguinte, como mais uma vítima da pandemia que então assombrava o mundo e parecia não ter solução à vista.
Na época ainda descrita como “a doença dos gays” e “uma sentença de morte”, a AIDS (sigla em inglês para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) continua sendo transmitida pelo vírus HIV, apesar de que em escala bem menor do que se viu há mais de três décadas, e hoje em dia já é tratada como uma doença crônica graças ao sucesso dos medicamentos antirretrovirais que dão a seus portadores uma vida normal e sem quase nenhum perrengue.
“É uma mudança e tanto, hoje sabemos muito sobre essa doença [a AIDS] e, sobretudo, como evitar seu contágio”, Frare disse ao Glamurama em um bate papo pelo Zoom diretamente de sua casa em Seattle, no estado americano de Washington, onde cumpre quarentena. Na conversa, a profissional admitiu um certo déjá vu em relação ao que testemunhou de perto no fim da década de 1980 e começo da de 1990, quando a crise da AIDS dominava os noticiários.
“O maior mal daquela época era a desinformação, o fato de que muito se especulava sobre uma doença relativamente nova, e muitas ‘fake news’ a seu respeito eram espalhadas”, Frare lembrou. Ela conheceu Kirby já internado, quando ainda cursava a faculdade de fotografia, através de uma colega. Depois de algumas conversas, a então estudante recebeu dele o aval para fotografá-lo doente, desde que aceitasse jamais lucrar com os registros que acabaram rodando o mundo.
O mais famoso de todos é o que Kirby aparece abraçado ao pai. Usada até mesmo em uma campanha da United Colors of Benetton, com a permissão dos Kirbys, a foto foi eleita pela revista “Time” como uma das 100 que mudaram o mundo, e chamada pela “Life” como a que “ajudou a mudar a cara da AIDS”. “Quando tudo aconteceu, eu não esperava essa repercussão, claro, mas hoje entendo o poder que aquele momento único tem ao ser compartilhado”, Frare contou.
Sobre a atual pandemia, a do novo coronavírus, Frare acredita se tratar de algo até mais ameaçador, por ser uma doença de contágio ainda mais fácil do que a AIDS e, principalmente, sem um “rosto”. “Todos nos protegemos disso, e protegemos a quem amamos, é algo que nunca vivemos antes dessa forma tão coletiva”, relatou a profissional, que acredita que uma solução para a Covid-19, seja por meio de vacina ou até mesmo uma cura, logo virá.
“A AIDS tirou as vidas de 35 milhões de pessoas em todo o mundo, mas afetou pessoas mais pobres, por vezes integrantes de grupos negligenciados pela sociedade”, Frare explicou. “O que se vê agora é algo que afeta a todos, inclusive os ricos”, completou, em seguida revelando que as imagens que mais a marcaram recentemente foram as de parentes de pessoas diagnosticadas com Covid-19 acenando para elas do lado de fora de hospitais, sem poder tocá-las. “O David morreu cercado por familiares, e isso os ajudou a superar sua perda. Ver o contrário dói”, concluiu a fotógrafa. (Por Anderson Antunes)
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