A ideia era inverter o jogo. Documentar o maior documentarista brasileiro. Trazer para a frente das câmeras Eduardo Coutinho, grande mestre do cinema nacional, morto em fevereiro do ano passado, aos 80 anos. O resultado pode ser visto no “Eduardo Coutinho – 7 de outubro”, de Carlos Nader, que estreou nessa quarta-feira, no espaço Itaú Cultural, em São Paulo. O título do filme faz referência ao dia em que o encontro aconteceu – com apenas quatro horas e meia de gravação.
Por Denise Meira do Amaral
Glamurama: A ideia inicial já era filmar em apenas uma tarde?
Carlos Nader: Não, era bem diferente disso. O filme virou um filme quase que por vontade própria. Na verdade, havia uma ideia inicial de uma série para a TV Sesc sobre a terceira idade, da qual eles queriam que o Coutinho participasse. Na mesma época, encontrei o João [Moreira Salles, um dos fundadores e sócio da VideoFilmes, produtora dos filmes do Coutinho] em Nova York, e ele me fez o convite para fazer algo sobre o Coutinho. Combinamos de fazer a entrevista em 15 minutos e acabou virando quatro horas e meia de gravação [a entrevista foi feita no dia 7 de outubro de 2013].
Glamurama: E esse material já era suficiente para fazer o filme? Ou você pretendia gravar mais?
Carlos Nader: Não. Virou por causa das circunstâncias [ele foi assassinado em fevereiro de 2014, pelo seu filho].Ficou uma coisa bem coutiniana, de abraçar as circunstâncias, o imponderável. Iam ter mais três entrevistas pelo menos.
Glamurama: Você descobriu alguma coisa sobre o Coutinho que não imaginava durante a gravação?
Carlos Nader: O que aconteceu naquele dia foi um mistério. Ele estava muito doente, muito cansado, tinha passado um tempo no hospital. Mas aconteceu alguma coisa que ele foi se animando. Os amigos falaram que ele nunca havia dado uma entrevista tão entusiasmado. Ele começa meio ranzinza, mas aconteceu alguma coisa depois. Não sei se porque a gente tinha uma ligação muito forte, de intensidade, de compartilhar uma visão de mundo, ou o fato da equipe ser a dele…
Glamurama: E como foi filmar com a equipe dele?
Carlos Nader: Foi uma ideia de inverter o jogo. E funcionou. Como a gente é muito parecido e eu já tinha até trabalhado com algumas pessoas da equipe, foi tudo bem.
Glamurama: O Coutinho tinha um método de não conversar com o entrevistado antes do momento do encontro. Você procurou não falar com ele sobre o projeto antes da gravação?
Carlos Nader: Como a gente já se conhecia, acabei falando. Eu não estava pensando em fazer um filme coutiniano. Na verdade ele é e não é. Um filme coutiniano só o Coutinho faz. Ele é um gênio. Mas o filme tem algo de coutiniano.
Glamurama: O que é, afinal, esse jeito do Coutinho? Dá pra explicar? E sua relação com ele, como era?
Carlos Nader: O Coutinho é um artista, não é um missionário, não é uma pessoa que está fazendo aquilo por nenhuma outra razão que não a de fazer um objeto estético no final. E isso é indissociável da vida dele. Ele é uma das pessoas mais íntegras que existe. Ele é inteiro. Ele é um mestre não só de filme, como de vida. Eu não sou exatamente um discípulo dele, e eu não convivi tanto assim com ele, mesmo porque ele morava em outra cidade. Mas a intensidade do nosso encontro sempre foi um mistério. Sabe que eu demorei muito tempo para conhecê-lo com medo que ele ficasse decepcionado comigo? Porque ele me elogiava tanto que eu achava que quando ele me conhecesse, iria me achar um coitado. Não faz 20 anos que eu o conheço. Mas ele é parte da minha vida há muito mais de 20 anos.
Glamurama: O Coutinho chegou a assistir o seu filme “Eduardo Coutinho, 7 de outubro”?
Carlos Nader: Ele viu. Ele me ligou e falou: “coloca o que você quiser”. Ele gostou. Ele também não ia falar: “eu me adorei, porque o filme é dele”. Mas ele gostou, pelo que conheço dele.
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João Moreira Salles, que participou de um bate-papo após a exibição do filme, ao lado de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo e de Carlos Nader, contou para a plateia sobre sua relação com Coutinho. “Eu não tenho nenhuma dúvida de que ele é a pessoa mais importante da minha formação. Não só em relação ao cinema, mas em coisas muito mais importantes do que o cinema”.
Moreira Salles ainda comentou como o diretor era no dia a dia: “O que o Coutinho diz no filme, que ele é bom só na hora da filmagem e que a vida dele é pobre, não é retórico. O Coutinho era gauche na vida. A vida fora do set de filmagem era muito difícil. Ele não sabia navegar com facilidade nas questões sociais, na questão do dinheiro. Então eu acho que do mesmo modo que ele me ensinava alguma coisa, eu também ensinava a ele”. Confira alguns trechos do bate-papo de João Moreira Salles.
Surgimento de uma ideia
“A partir de um determinado momento, tudo o que eu fazia necessitava do que ele tinha a dizer, e eu acho que o que ele fazia também contava muito com o que eu e a Jordana [Berg, montadora dos filmes de Coutinho] dizíamos sobre o filme dele. Quando ele terminava um filme, a gente sempre saia pra jantar e conversar sobre o próximo. Na verdade eu jantava e ele fumava, porque o Coutinho não comia.”
Sabedoria
“O filme do Carlinhos Nader tem várias coisas geniais, e uma delas é a inteligência do Coutinho, a capacidade de ir ao ponto, de acertar sempre o alvo. Não tem gordura. Isso é acima da inteligência, é sabedoria. Ele tinha chegado a esse estágio de sabedoria, que é a capacidade de ver com clareza aquilo que é muito confuso. Ele era muito bom em relação aos outros, mas era muito ruim em relação a si mesmo. Em relação a si mesmo ele era uma tragédia”.
Legado
“Ele é uma pessoa essencial na minha vida. E as pessoas me perguntam, e agora que ele morreu? Você perdeu a grande pessoa que te norteava? É verdade. Mas tem uma coisa que fica. Depois que você conhece tão bem alguém como eu conhecia o Coutinho, que a gente completava as frases um do outro, eu posso dizer que ainda hoje converso muito com ele. Não é retórica. Tem muito dele dentro de mim. Estou agora terminando um filme que é profundamente influenciado por ele”.
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