Bicicletas de compartilhamento da Yellow, que ficam soltas por São Paulo, colocam a cidade na rota da modernidade, e seus sócios, dois deles egressos do unicórnio 99, na galeria de heróis do empreendedorismo improvável
Por: Paulo Vieira / fotos: João Leoci
Eles juntaram o pedal com a vontade de compartilhar. Eduardo Musa, ex-proprietário da Caloi, e Ariel Lambrecht e Renato Freitas, dois dos três fundadores da 99, criaram a Yellow, a empresa que está mudando a cara de São Paulo – ou ao menos de algumas ruas da metrópole.
A Yellow é o primeiro serviço brasileiro de compartilhamento de bicicletas sem estação – ou “dockless”, como preferem –, o que faz com que vistosas bikes amarelo-ouro se espalhem por virtualmente qualquer lugar: calçadas, ruas, esplanadas de prédios comerciais, adros de igreja, canteiros centrais e até mesmo as áreas próximas das estações dos outros dois sistemas paulistanos de compartilhamento de bicicletas, ambos patrocinados por bancos.
As Yellow não ficam presas a nada por possuírem um cadeado interno que é desbloqueado por meio de um app, que lê um QR code na bicicleta. Caso sejam manipuladas sem esse procedimento, emitem um sinal sonoro de alarme. A em-presa é também pioneira ao estabelecer como “core” do negócio o compartilhamento propriamente dito, ou seja, a Yellow pretende se remunerar principalmente pelo valor de utilização – hoje R$ 1 a cada 15 minutos (bicicleta) e R$ 5 a cada 5 minutos (patinetes elétricos, ainda a serem implantados). Publicidade ou uso comercial de dados seriam, a princípio, fontes de receita secundárias.
A Yellow colocou 500 bikes em São Paulo, e pretende acelerar gradativamente a oferta até chegar ao fim deste ano com 20 mil. “São Paulo é um grande laboratório, a gente quer aprender aqui, e aprender em escala, e então escalar”, disse Musa a PODER, usando esse jargão da nova economia que denota a vontade de ganhar na quantidade, cobrando bem pouco de muitos usuários, à semelhança do que é feito na China. O país asiático, não por acaso, é o “benchmarking” desse negócio. Foi onde João Doria, em seu ano de prefeito de São Paulo, conheceu o sistema e deu o start para sua implantação aqui.
Deixar bicicletas soltas na rua – e elas permanecerem lá – é coisa do mundo mais que desenvolvido, algo que o Brasil parece estar longe de arranhar. Ou parecia, a julgar pelo que disseram Musa e Lambrecht, positivamente surpresos com os números aquém do esperado por eles de furto e depredação de bikes nas primeiras semanas de implantação do sistema. Para os executivos, a população vem adotando a Yellow e zelando por suas bicicletas. “Eu acho que quando as pessoas notaram as bicicletas soltas na rua viram uma chance de provar para elas mesmas que o Brasil pode dar certo, por isso cuidam delas, avisam quando percebem algo errado, a tiram do chão quando estão caídas”, diz Lambrecht.
O advento das bicicletas que ficam em qualquer lugar, dormem ao relento e não são roubadas – algumas na verdade são, e houve mesmo um cidadão que chegou a colocar uma Yellow à venda por R$ 250 no site OLX; outras três bikes apareceram mocozadas num cortiço desbaratado pela polícia na cracolândia –, podem vir a significar para São Paulo um novo marco civilizatório, mais ou menos como o que representou para Londres, nos anos 1990, a passagem do futebolista Ruud Gullit pelo Chelsea – os hábitos refinados do holandês teriam ajudado a cidade a se modernizar, e o café expresso tomou o lugar do vetusto chá com leite. Mas se são pouquíssimos os capazes de antever as mudanças, ainda menos os que ganham dinheiro com isso, e, para viabilizar seu negócio, o trio da Yellow precisou lidar com o ceticismo de muitos investidores. Expressões como “cês são loucos” e “no Brasil isso não funciona” foi o que mais ouviram. Mas Lambrecht e Freitas carregavam no currículo o sucesso da 99, startup que transformaram em unicórnio ao vendê-la, no começo de 2018, para uma das maiores empresas digitais do mundo, a chinesa Didi, e Musa, caso a experiência na Caloi não contasse, tinha um sobrenome a faiscar como luz neon no business card – ele é filho de Edson Vaz Musa, ex-Rhodia, CEO hero numa época em que os CEOs ainda es¬tavam por ser inventados. Assim, o capital-semente jorrou de fundos como o brasileiro Monashees e o russo Grishin.
Uber com imobilizado
Se a Uber é uma empresa de tecnologia que explora o maravilhoso mundo da mobilidade urbana em todo o planeta sem precisar alocar um mísero dime em frota, a Yellow teve de fazer enormes investimentos em imobilizado – as bikes propriamente ditas – para lançar seu serviço. Por considerar informação estratégica, Musa não revela o custo unitário nem o tempo médio de vida que projeta para cada bicicleta. Com razoável índice de nacionalização e montadas na Zona Franca de Manaus, na fábrica da canadense Cannondale – hoje proprietária da Caloi –, as magrelas foram projetadas para ser resistentes, confortáveis, seguras e pouco atrativas aos amigos do alheio. Por isso suas peças são fora de padrão e, sem parafusos convencionais, difíceis de serem apartadas e roubadas. A cor, segundo Musa, também é inusual para o mercado de bikes. Sua experiência com o produto o deixa à vontade para afirmar ter feito as melhores escolhas – ele usa a expressão “trade-off” – na relação das catracas, na ausência de câmbio, na opção pelo banco baixo e no guidão “dolphin”.
Roubar consumidores de outras formas de transporte – como o próprio Uber – é um dos cenários com que os sócios da Yellow trabalham. O outro é fazer da bike “modal” complementar, perfeito para o que chamam de “last mile” (última milha), o quilômetro, quilômetro e meio final que a massa ignara percorre para chegar ao trabalho ou eventualmente voltar dele após utilizar metrô, ônibus ou pular fora do táxi quando o trânsito engarrafa. Nas duas primeiras semanas de operação, Lambrecht percebeu uma movimentação não esperada, muito forte na hora do almoço. “Creio que as pessoas que faziam pequenos percursos a pé para comer passaram a ir um pouco mais longe.”
O trio da Yellow pode ter a incômoda concorrência em São Paulo da maior empresa de compartilhamento de bikes do mundo, a chinesa Mobike. Tanto ela, como a Serttel (que opera as bikes de estações fixas do banco Itaú em São Paulo e de outros patrocinadores pelo Brasil) e a Trunfo (da Bradesco Seguros) foram credenciadas para operar em São Paulo, segundo nota oficial da Secretaria de Mobilidade e Transportes do município. Com efeito, em abril, numa entrevista ao jornal Valor Econômico, o VP de expansão internacional da Mobike anunciou o início da operação para dali a dois meses e a presença de até 100 mil bicicletas pela cidade. Junho passou, chegamos a setembro e necas de pitibiribas. Musa, que não crê na vinda do concorrente chinês, acompanhou bem a evolução do negócio naquele país nas diversas viagens que fez para lá. Como havia lá, segundo explicou à reportagem, “capital abundante” e “nenhuma regulação”, além do fato de a China ser o maior produtor mundial de bicicletas – de que produto manufaturado não é, aliás? –, houve de início uma superoferta, e os muitos players do mercado entraram uma espiral de canibalização, chegando a oferecer o serviço de graça para a população. Como consequência, vários deles abandonaram o serviço e o país, e algumas cidades passaram a ostentar verdadeiros cemitérios de bicicletas – eis um cenário que os executivos da Yellow não vislumbram para o Brasil. “Aqui a regulação chegou antes mesmo do negócio”, diz Musa.
Sem suor
Comparado à bicicleta, o patinete é um modal “premium”. Movido a eletricidade, ele pode atingir 20 km/h sem necessitar de nenhum esforço do usuário, exceto manter-se de pé. E nas temperaturas altas de São Paulo de boa parte do ano, não precisar transpirar para chegar ao trabalho ou a uma reunião é uma vantagem competitiva. É possível transitar inclusive pelas calçadas, mantendo a velocidade máxima de 6 km/h. Mas o equipamento, mesmo trazido da China, é custoso, e é preciso ter sua bateria recarregada ao fim de jornadas de 20 ou 30 quilômetros. Com isso, o preço final de uma viagem para o usuário não será uma pechincha. No caso da Yellow, R$ 5 a cada 5 minutos. Marcelo Loureiro, da Ride, ainda prevê dificuldades adicionais, pois acredita que a taxa de roubo e depredação no Brasil será alta, de 15% a 20% – na América do Norte, segundo ele, fica em 2%. Para Loureiro, esse é o grande fator de “dúvida” do negócio.
Se a Yellow foi a primeira a soltar bikes pelas ruas, e com isso ter sido a empresa a capitalizar toda a surpresa e, digamos, a positividade do novo negócio, nos patinetes elétricos ela já sofre a concorrência da Scoo e da Ride, esta última criada pelo empresário Marcelo Loureiro, que, ao viver em Santa Monica, na Califórnia, viu ali o grande potencial desse modal. Como a Yellow, a Ride deverá espalhar os equipamentos pelas ciclovias que conectam os bairros de maior concentração de empresas, mas também pretende colocá-los em parques, à disposição de quem quer apenas “tirar um lazer”, para usar uma velha gíria da periferia paulistana. “O que chamam por aí de percurso, a gente chama de passeio. A Ride é mobilidade, mas agrega a isso o ‘smile’”, disse ele a PODER. Ninguém duvida que comprar uma bicicleta é melhor do que casar, mas agora talvez uma nova – e mais séria – pergunta se imponha: pedalar ou sair por aí de patinete?
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