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Emicida

Nome mais proeminente do rap nacional mostra toda sua elegância e ainda aproveita para falar de miséria, de música, de política e da experiência de manter-se independente e lançar um selo próprio

por Fábio Dutra para a revista PODER de novembro

Emicida S.A.

A reportagem aguarda a chegada de Emicida, o rapper mais falado do Brasil já há alguns anos, no estúdio de Maurício Nahas, onde serão feitas as fotos que ilustram este ensaio. Ele desenrola seu quase 1,90 metro do banco de trás do carro e, cabeça baixa, óculos escuros, taciturno, cumprimenta todos com um fraco aperto de mão. As mulheres, inclusive. Usando tênis de cano alto, desses de basquete, calça amarela e uma camisa florida sobre uma regata azul, com quatro personagens tatuados no braço esquerdo – Nelson Mandela, João Cândido, Carolina Maria de Jesus e Zumbi dos Palmares –, ele procura o camarim. Um pouco mais à vontade, passa a analisar o que preparamos (a assessora já havia avisado que ele jamais veste o que não gosta). Não foi o caso: ele logo se encantou com um terno bordô – que não só lhe caiu bem como o deixou com certo ar anos 1970, à la Marvin Gaye.

A impressão de mau humor ou timidez não se confirmou. Em poucos minutos, o rapper já estava fazendo piadas sobre tudo e todos e o clima era o melhor possível. Não havia mais lugar para coadjuvantes: todos os olhares eram para Emicida, que tem uma espécie de carisma natural que gosta de cultivar. Enquanto se dá a prova de roupas, conversamos um pouco sobre amenidades e ele revela que gosta, sim, de paletós e roupas sociais, ao contrário da resposta que parecia óbvia – só em enterros e casamentos. “Nada, na minha família ninguém casa e ninguém morre, graças a Deus”, brinca o cantor, que perdeu o pai aos 6 anos (a canção “Ooorra…” é um relato emocionante desse episódio) e foi criado por dona Jacira Roque de Oliveira, uma mãe-coragem autodidata e envolvida com movimentos sociais de moradia e feministas. De fato, a cada ida à arara das roupas ele dava uma conferida na etiqueta com os preços de cada uma.

O consumismo, entretanto, não está entre seus defeitos, garante o artista: “Não ligo pra isso, não sou de gastar dinheiro. Mas tenho problema com livros e discos. Minha mãe me passou o gosto pelos livros, mas nunca tive dinheiro para comprá-los. Então, quando entro numa livraria perco o controle, chego a gastar R$ 2 mil fácil”. A vida financeira está tranquila, mas ele refuta a insinuação de que estaria rico. “O dinheiro da empresa, a Laboratório Fantasma, acaba sendo todo reinvestido porque queremos crescer e tem muita gente que depende disso. E eu consegui ganhar algum dinheiro, mas nada que me torne rico. Claro que o Emicida dos anos 1990 me acharia milionário, mas não estou”, conta. Emicida vive em um apartamento próprio na região norte de São Paulo – “Sou bairrista, tudo é na zona norte. Zona sul é tão longe que chamo de norte do Paraná!” – e pretende conseguir comprar uma casa “de bacana” para a mãe, que vive na que comprou antes do sucesso do homem mais velho da família.

Quando falamos sobre dinheiro e, principalmente, sobre pobreza, o tom de brincadeira que ele mantém a maior parte do tempo dá lugar a uma verve política e a um tom mais reflexivo, intelectualizado, ponderado. “Nos anos 1990 a gente era tão pobre que chamava de playboy quem ia trabalhar de metrô”, lembra, sério. “Nunca teve bolacha em casa. Na minha região, criança só conseguia comer essas coisas se entrasse no mercado e roubasse, era tudo muito difícil”, completa. Emicida, que é da Vila Zilda, já morou em vários lugares, chegou a viver em ocupação em barraco de madeirite e, quando expulso, viveu algum tempo de favor, junto com a mãe, o irmão e as duas irmãs, no porão de 3 metros quadrados da casa de um conhecido. Mas a paixão pelas artes, principalmente música e desenho, jamais o abandonou.

Quando terminou a escola, foi estudar design gráfico, nível técnico. “Eu gostava mesmo de quadrinhos, o que ninguém lá em casa ia entender como profissão. Então, fui pro design e passei a maior parte do tempo na sala da frente, onde tinha oficina de cartum. Quero até voltar a desenhar e publicar um livro de quadrinhos”, conta ele, que chegou a desenhar à mão a capa de mais de mil discos – que vendia pessoalmente nas ruas da capital paulista.

Visão de mercado

Apesar da veia revolucionária, Emicida é talvez o rapper que melhor transita no lado capitalista da força. Empreendedor nato, surgiu para o público ao se destacar nas batalhas de rima, uma espécie de repente do rap – daí o nome artístico, contração de “homicida de MCs” –, e logo gravou suas canções e foi para a rua. Em pouco tempo era conhecido e até pirateado, apesar de seus discos custarem apenas R$ 5 à época. O caminho independente nunca foi abandonado e surgiu a gravadora Laboratório Fantasma, destinada a lançar seu trabalho e também novos talentos da música da periferia. Atualmente, dedica-se somente, além dele, a Rael, rapper que já alcança certo sucesso. “É preciso crescer, reinvestimos tudo e temos planos ambiciosos. Quem cuida é meu irmão, eu sou o cara dos problemas, solução é com ele. E precisa ser algo independente de mim, tem de ter vida própria. Tem muita gente que depende disso e artista é tudo doido, vai que eu viro evangélico”, ri o empresário. Emicida também percebeu logo que se tornou uma marca e produz bonés, moletons, canecas, chaveiros e tudo quanto é souvenir que são vendidos às toneladas na loja on-line da Laboratório Fantasma. Ele acredita, aliás, que o século 21 será sobre gerenciar direitos autorais. Uma loja física estava prevista para este ano, mas a proximidade do Natal, para o qual não estão preparados, fez com que o lançamento fosse adiado para o início de 2015. Os planos de expansão não param por aí: eles buscam um parceiro capitalista para ampliar o leque de atuação.

“Não tem nada novo no que eu faço, as gravadoras sempre fizeram isso. A diferença é que a grana nunca chegou no bolso do artista. Meu caminho independente tem muito a ver com os vícios do mercado fonográfico. Os caras acham uma fórmula, adequam seus artistas àquilo, engessam as coisas. Tem muitos processos da pirataria que deveriam servir para renovar a visão antiquada desse mercado, que devia entender a demanda do público e não lançar o que acham que seria sucesso. A pirataria vê isso: aí surge o Emicida, surge o Aviões do Forró. A arte é que deve pautar a produção cultural, na Laboratório Fantasma é assim”, acredita ele, que acha que a mudança tem de vir dos próprios artistas. A publicidade, outra forma de monetizar o sucesso rechaçada pela maior parte dos rappers, também tem lugar quando o artista é Emicida. “Faço pouco, não é meu foco e só aceito se de fato puder recomendar o produto ao meu público. Outro dia fiz uma propaganda do celular que uso no dia a dia junto com o Thiaguinho (cantor de pagode)”, explica. E ele e Thiaguinho se dão? “Claro! Quem gosta de rap e não gosta de samba é burro. Os caras são todos maloqueiros igual a nós, é tudo música de periferia”, garante.

Nos dirigimos à foto, onde logo ele estará fazendo caras e bocas com a naturalidade de quem já é escolado no assunto. Antes disso, o papo volta à política. Eleições. Emicida tem uma posição clara pró-PT. Nada panfletário, ele apenas explica que a vida na “quebrada” melhorou muito desde os anos FHC e, por isso, não gostaria de ver um tucano no Planalto. Para ele, o antipetismo que pegou é injusto, já que houve distribuição de renda e, especificamente na cidade de São Paulo, os CEUs (sigla para Centros Educacionais Unificados, espécie de clubes implantados por Marta Suplicy na periferia, mantidos e ampliados em todas as gestões posteriores) mudaram o cenário de caos que havia nos bairros pobres. “Os tucanos têm muita dificuldade de ver o outro Brasil que tanto precisa”, resume. Ele aproveita para reclamar da violência policial na periferia, que seguiria o modus operandi da ditadura militar. Quando o assunto é Fernando Haddad o tom muda e ele parece mais entusiasmado. Conta que no dia anterior foi à reinauguração do Clube de Regatas Tietê, tornado público pela prefeitura. “Ali não podiam entrar negros até os anos 1970 e foi reaberto para a população com um show do Public Enemy (famosa banda de rap político americana composta só por negros)!”, empolga-se. Todas essas opiniões e críticas são levadas a seu público, o que lhe garante certo poder e o incumbe de enorme responsabilidade. “Claro que eu penso nisso. Nós nascemos onde não nasce nada, somos as ‘flores do lixão’. E o público espera muita coisa, ‘nóis é os louco que não pode errar’”, reflete ele, citando dois versos dos Racionais MC’s, o maior expoente do rap nacional. “Sou extremamente grato, muita gente comeu pedra antes de mim, a cultura hip-hop abriu caminho com dificuldade. Se não tivesse Racionais, Facção Central, Sabotage e outros, não tinha Emicida, não tinha Rael”, agradece. Seu mais famoso verso, a estampar milhares de camisetas Brasil afora, talvez explique o espírito coletivista de Emicida: “A rua é nóis!”

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