O restaurante que eu frequentava antes da pandemia reabriu. Esteve fechado por meses, e eu o tinha como falido toda vez que passava diante do portão abaixado e das luzes apagadas. Hoje, lá dentro, nada faz supor que atravessaram maus bocados; até o atendente do balcão, provavelmente o dono, mantém o mau humor de quase dois anos atrás. Não estranhei quando ele me resmungou um “oi” sem levantar o rosto da máquina do cartão, mas tive vontade de lhe dizer “que bom que você está bem depois de tanto tempo, que bom que sobrevivemos, que seu restaurante não faliu”, enquanto ele me perguntava se eu pagaria por crédito ou débito.
Saí do restaurante com uma sensação simultânea de estranheza e familiaridade. A luz repentina da rua contrastando com a do ambiente escuro que eu acabava de deixar fazia parecer que o tempo não passou. Mas o tempo não só passou, como levou meses de nossa vida de antes, levou hábitos antigos, levou pessoas, 600 mil a mais do que teria levado em condições comuns.
Caminhando pela rua na volta ao consultório, me pergunto se a máscara no meu rosto é o único indício do que vivemos. Do terror das primeiras semanas, do medo do desconhecido, da tristeza pelas pessoas que perdemos, da solidão do isolamento.
Perscruto minha vida e percebo, então, outros indícios de mudança.
“Era de se imaginar, que, terminadas as restrições da pandemia, todos aproveitassem cada oportunidade de encontro e de agregação para rever pessoas queridas. E, no entanto, me vejo mais apegada que antes à minha casa, a estar nela, a estar sozinha e em silêncio, como se as minhas habilidades sociais e o ímpeto vital que me fazia aceitar convites estivessem atrofiados.”
Junto da vontade de sair e encontrar pessoas, vem também uma preguiça que compete com ela ― e muitas vezes ganha. Seria sinal de uma incapacidade nova ou de um excesso anterior? Talvez de ambos.
Me parece uma vantagem não precisar montar um quebra-cabeças de compromissos para que caibam no meu dia, como era necessário fazer com os dias de trabalho e também com os de descanso. É necessário escolher, o que implica obviamente em dizer não, e talvez o tempo de isolamento nos tenha devolvido esse discernimento. Seria impossível, hoje, cumprir com a rotina elaborada de excessos que eu tinha antes de tudo, e o impossível exige um não, ainda que me custe tanto dizer essa palavrinha de três letras.
Mas talvez, penso, minha dificuldade e a dificuldade de tanta gente não se relacione apenas com os excessos de antes. Às vezes me parece que eu ou que as pessoas não sabemos mais como nos portar, como se tivéssemos desaprendido; afinal de contas, leva tempo para desarmar o medo, para normalizar os gestos.
Ou ― ainda outra hipótese ― talvez os encontros tentem sinalizar uma normalidade que já não é, e então é como se precisasse haver alguma renúncia que demarcasse justamente isso; porque talvez, igual, igualzinho a antes, jamais voltará a ser.
Tudo o que passamos, individual e coletivamente, deixa marcas, afinal. E mesmo se não deixasse, mesmo se não deixar, retomar a vida de antes nos lega outra pergunta: era isso? Foi pela falta disso que sofremos tanto?
Como se o sofrimento se devesse mais à mera mudança de hábito do que à perda de hábitos de que gostávamos; como se a vida de antes não fosse, afinal de contas, tão boa assim.
Sobrevivemos, o que significa que ainda temos tempo pela frente; façamos desses anos, desses meses, desses minutos, cada um à sua maneira, dignos da dor que sentimos ao perdê-los provisoriamente, afinal.
Quanto ao dono do restaurante, talvez ele também quisesse saber como eu estava enquanto lhe respondia débito, por aproximação, por favor.
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