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Por Victor Santos / Ilustração Lya Nazura

Da Primavera Árabe ao assassinato de George Floyd se passaram cerca de dez anos. De lá para cá, o ciberespaço ganhou usuários, ferramentas, plataformas e o “Tribunal do Feicebuqui”, como musicado por Tom Zé, se intensificou e seus vereditos foram até batizados: a cultura do cancelamento. Após anos de expansão intensa, a internet ainda foi potencializada por mais de 2 bilhões de pessoas confinadas em casa na pandemia, assistindo a artistas, celebridades, políticos, além de micro, macro e megainfluencers – que precisam postar constantemente para prender a atenção de seus seguidores, manter o engajamento e – claro – atrair patrocinadores.

O assassinato do americano George Floyd, no dia 25 de maio, fez eclodir manifestações do mundo inteiro e até promoveu a violação em massa da quarentena – para o desespero dos gurus da economia que falharam nessa missão. A pressão para se posicionar é grande, mas a rede não é boa em perdoar e não trabalha com o silêncio. Essa metamorfose ambulante, herdada de tantos séculos de história da humanidade e poucas décadas de internet, ainda reverbera e faz uma frase repetida no clássico filme Magnólia (1999) cair como uma luva: “Nós podemos ter esquecido o passado, mas o passado não se esquece de nós”.

O ativismo nunca se sustentou na solidão e a comunicabilidade sempre foi parte para o engajamento coletivo na defesa de uma causa, como explica a pesquisadora e docente do programa de pós-graduação em ciências da comunicação da Unisinos Maria Clara Aquino Bittencourt. Antes da esfera digital, além da tentativa de pautar canais tradicionais de mídia, o uso de um telefone e a escrita de um cartaz também representavam artifícios de comunicação. Com a ascensão da internet, é normal que o ativismo avance para novos dispositivos e ganhe força. “As ferramentas de comunicação podem ser apropriadas e permitem que os movimentos sociais e as mobilizações possam gerar outro tipo de articulação além da rua.”

Sobre o tal do “ativismo de sofá” – em que se posta muito e se faz pouco – Maria Clara pontua que sempre tem quem vai querer pegar carona em uma causa nobre para agradar seus seguidores, porém essa atuação ajuda a expandir o alcance das mobilizações. “Vemos movimentos em diversos países sendo impulsionados, em termos de visibilidade midiática, por quem não está nas ruas mas que apoia esses movimentos. Diferentes conteúdos postados nas redes sociais vão gerar mais alcance, circulação e amplitude para essas causas”, analisa.

Mas, como diz o ditado… nem tudo são f lores e o terreno da internet ainda não é tão fértil ao diálogo. Entre os trabalhos realizados na universidade, Maria Clara explica sobre a análise da chamada “produção de sentidos”. Cada usuário das redes ao ler uma postagem ou notícia acaba produzindo seu próprio sentido sobre aquilo e dificilmente esses sentidos produzem diálogos. “Há uma tentativa de impor ao outro o seu posicionamento e uma dificuldade de estabelecer um diálogo”, comenta.

Jornalista e cofundadora do Redes Cordiais, um projeto que trabalha com influenciadores contra a desinformação e o discurso de ódio, Alana Rizzo explica que, desde a eleição de Donald Trump nos EUA, em 2016, e as polêmicas sobre as bolhas ideológicas, a engenharia das redes vem mudando mas que a polarização ainda faz parte do jogo. E o silêncio? “As redes não trabalham com o silêncio e sim com os polos – quando todo mundo ‘curte’ ou quando todo mundo odeia. Então faz parte jogar com esse algoritmo de ir para um polo ou para o outro”, responde. Ressalta que vivemos um momento de ampla discussão em que a defesa da democracia se mostra crucial, assim como a pauta antirracista, entre muitas outras. Além de tudo isso, a pandemia ainda nos fez mais ativos e dependentes das redes sociais, um catalisador de um processo que já vinha sendo gestado envolvendo posicionamentos e campanhas. “É aquela pergunta que todo mundo faz desde o primeiro dia da pandemia: O que é que você está fazendo na pandemia? As marcas serão cobradas, as pessoas também e isso colocou uma pressão ainda maior para que todo mundo se posicione”, explica.

Nesse terreno, a conscientização dos usuários ganha importância, pois consumidores de conteúdo se tornaram produtores e curadores também – responsabilidade que aumenta conforme seu número de seguidores. Alana defende a comunicação não violenta, restringindo os ataques pessoais e abrindo espaço para o diálogo, sempre diferenciando o que é crime – que deve ser denunciado. Sobre como se posicionar, a responsabilidade e autoconhecimento são as chaves não só para entender seus tetos de vidro, mas também para não engrossar o caldo da gritaria. “De que maneira você pode contribuir para aquela agenda e provocar uma reflexão? É importante partir de algum lugar com responsabilidade, isso precisa pautar qualquer posicionamento. Outro fator importante é partir de onde você tenha conhecimento e não precisa ser com grandes números nem pesquisas acadêmicas sofisticadas. A própria experiência pessoal já agrega para o debate, é um ponto de vista importante”, pontua.

Historiador e quadrinista, autor de Angola Janga (Ed. Veneta), Marcelo D’Salete vê com bons olhos a eclosão de movimentos de redes sociais contra o genocídio negro, mas explica que a simples postagem não pode ser um fato isolado. “Essa indignação tem que ser parte de um conjunto de ações que acontece na vida cotidiana, nas tomadas de decisão e também nas redes, mas de nada vale a pessoa escrever uma hashtag contra o racismo e depois, em casa, tratar mal quem está numa situação de desigualdade e subordinação ou até mesmo pessoas que encontra no dia a dia como negros, indígenas e demais minorias”, conta.

Entende que a morte de George Floyd escancara a situação de perigo que sofrem as populações marginalizadas. Ao mesmo tempo, lamenta que o volume gritante de mortos no Brasil não seja capaz de levantar esse tipo de protesto, como é o caso de João Pedro, de 14 anos, morto dentro de casa em uma ação policial em São Gonçalo (RJ) em maio deste ano; de Ágatha Félix, menina de apenas 8 anos que tomou um tiro dentro de uma Kombi, em setembro de 2019, também na capital carioca. Ambos em operações policiais, as quais o governo não deu satisfação. São muitos esses casos de crianças e adultos, como o assassinato do músico Evaldo Rosa, em que 12 militares realizaram um total de 257 disparos em seu carro. “Por que que essas mortes não comovem grande parte da população e não faz com que se consiga mover essa engrenagem ou mesmo ir contra essa engrenagem extremamente violenta e truculenta?”, questiona.

Marcelo revela preocupação pela atual gestão do Estado brasileiro – se antes era difícil uma resposta do governo sobre ações do gênero, nas últimas eleições muitos políticos que foram eleitos reverberavam um discurso de mais violência. Ainda acrescenta que as manifestações motivadas pela morte de George Floyd nos EUA vêm em um caldo maior, que vai desde o debate sobre monumentos históricos a filmes antigos. “A gente precisa rever obras, acontecimentos e fatos. Nossa história é uma história em que a violência e o silenciamento dessas questões está muito entranhada na narrativa nacional. Então precisamos fazer a crítica da nossa história, da forma como a constituição desse estado acontece a partir do genocídio de negros, indígenas, do massacre e da violência sistemática contra a mulher e de outros grupos também”, conta.

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