Glamurama encontrou Cesar Camargo Mariano de chapéu Panamá à beira da piscina da Pousada Etnia, em Trancoso, para uma entrevista. Na noite anterior havia acontecido a sua Jam Session no Música em Trancoso, já tradição no festival, quando músicos eruditos e de jazz se unem para homenagear um compositor brasileiro escolhido por Cesar. Uma conversa longa sobre o festival, a vontade de trabalhar o ‘lado B’ dos artistas, a vida nos Estados Unidos, Elis Regina, Simonal, Tim Maia e muito mais… Sempre acompanhada de muita emoção: ‘Dizem que sou romântico’.
Por Verrô Campos
Glamurama: Você está em todas as edições do Musica em Trancoso com duas noites, uma de bossa nova e a Jam Session, quando une músicos eruditos e de jazz. Qual é o seu papel no festival?
Cesar Camargo Mariano: Meu papel é tocar piano e o envolvimento é grande e antigo, sou amigo de Sabine e Carlo [Lovatelli] há muito tempo e, uns quatro ou cinco anos antes do festival, a gente começou a pensar na ideia e se apaixonar por ela. Na reta final, a Sabine me deu duas noites para que eu curasse, não me considero curador, porque é outra coisa, mas ela me pediu isso e foi um presente e achei maravilhoso. Nas conversas ela me disse: ‘Será que a gente não poderia juntar os músicos eruditos com os populares e fazer um momento só disso?’. Achei sensacional a ideia, mas entre ela e a execução existe uma diferença grande. De cara, já é complicado porque a gente pergunta: ‘Os caras conhecem essas músicas? Nós conhecemos as músicas deles?’. Aí, sei lá, um anjinho passou aqui em cima, deu uma luz e achei um caminho interessante de comunicação e propus alguns ensaios. Os músicos estrangeiros – isso eu já sabia, tinha no bolsinho do colete – são ávidos pela música brasileira, são alucinados, querem fazer, não sabem como, mas têm paixão justamente pela criação espontânea, imediata, o senta e sai tocando. Porque eles são baseados naquela coisa metódica, quadrada. A música popular, o jazz, especialmente a do Brasil, tem criação coletiva.
Pra mim, o momento mais gracioso e especial do festival é essa noite. O que grita para mim é a humildade, porque em um projeto assim é complicado. A sensibilidade individual de todo artista e todo musico é muito forte e juntar um bando e tentar passar uma filosofia de que eles têm que deixar o ego na porta de entrada é complicado, difícil. Graças a Deus, até agora não aconteceu. Quando junta todo mundo aqui dá um relaxo, um carinho, um respeito mútuo. Da nossa parte existe uma montanha enorme de respeito tão grande que você fica tímido. ‘Vou tocar com o Rudiger [Liebermann], vou tocar com o Nasturica [Lorenz Nasturica- Herschowici], o maior nome do violino’. O cara encosta aqui, fala bom dia, você fala bom dia e de repente fala uma besteira qualquer que relaxa e funciona. O que sobra disso tudo é música, fazer música, criar, botar pra fora o que você quiser.
Ontem [na noite de Jam], me emocionei profundamente antes de começar o espetáculo. Estavam eles, os mestres, pouco antes de começar, cada um no seu camarim, tentando caprichar cada frase, todos eles estudando a sonoridade da flauta, do cello… A gente chega tão pequenininho e encontra essa doação, essa coisa de se entregar em prol da música. Não é em prol da técnica, do virtuosismo, me emociono até agora [faz uma pausa para enxugar as lágrimas], fazer som, fazer música, isso é muito forte e importante, a gente acaba um aprendendo com o outro em muitos sentidos e, com certeza, isso só este festival faz, é ímpar.
E isso faz com que a gente, no dia seguinte ao concerto, comece já a pensar no próximo. Da minha parte, eu já estou com quase tudo pensado, segunda-feira já começam as reuniões, aquele tesão que dá de fazer mais, caprichar em todos os sentidos, já estou pensando em três caras como compositores para homenagear na próxima Jam [Cesar não entrega quais, é sempre uma surpresa!]. O primeiro foi Tom Jobim [na primeira edição do festival], escolhi pela intimidade de todos os músicos com a obra. Eu estava pisando em seara estranha e não sabia qual seria a reação dos estrangeiros. No ano seguinte Dorival Caymmi. Eu tinha certeza que funcionaria e principalmente por ser na Bahia, ‘eu vou pra maracangalha’ [cantarolando], porque o barato é delicado. O repertório que não é para ganhar aplauso, é para as pessoas se identificarem, porque você pode mexer na forma, nos arranjos, mas o conteúdo é identificado. É o principal, não adianta pegar uma música que ninguém conhece e fazer altos arranjos.
Glamurama: Os eruditos tiveram alguma grande surpresa desta vez com Ary Barroso e Noel Rosa, suas escolhas deste ano para a Jam?
Cesar Camargo Mariano: Só conheciam “Aquarela do Brasil” e, Noel Rosa, zero.
Glamurama: E qual foi a reação deles?
Cesar Camargo Mariano: Quando ouviram o que estavam tocando falavam: ‘Nossa, mas que música linda, maravilhosa, que melodia’. O Rudiger [Liebermann ] fazendo “Feitio de Oração” é de chorar. Fica uma coisa sensível, bonita, porque a música brasileira tem essa coisa, os compositores brasileiros são grandes melodistas, a gente não se dá conta, tá tão acostumado.
Saiba do seguinte: o mundo americano da música, do jazz, do erudito, do pop, todo o sistema de música nos Estados Unidos considera entre os cinco maiores compositores do mundo, em primeiro lugar Gershwin e, em segundo, Ivan Lins. Depois vem John Lennon e por aí vai… Eles consideram que os maiores melodistas são brasileiros, que fazem música que você pode só assobiar e todo mundo se encanta com aquilo, se emociona. Um dos meus objetivos não é mostrar a medalha, se por um acaso um dia me der na telha de convidar a Ivete Sangalo, por exemplo, para o festival, ela não vai cantar nenhuma música que ela canta, vou colocar ela para cantar Carlos Lyra, Tom Jobim, compor algo para ela cantar. Mostrar o outro lado, o lado B. São músicos com potencial muito grande e que ficam mostrando no rádio, na TV e nos discos algo fácil de vender. Quando é bom, bem feito e bonito, não tem como achar feio e você está abrindo a cabeça das pessoas, por isso que eu gosto de pegar esse lado B. O Paulinho [da Viola] por exemplo, falei para ele: “Qual a sua ideia, o que você gostaria de fazer?” [Paulinho foi um dos convidados de Cesar na noite de Bossa Nova]. Ele mandou uma lista eu já tinha a minha, comecei a sobrepor as duas e cheguei para ele e disse: ‘Tem uma música que não é sua, mas cada vez que penso nela ouço você cantando’. Era “Meu Viver”, do Elton Medeiros, de 1945/48 e Paulinho e eu temos a mesma idade e ele era menino e eu também, o Elton é dez anos mais velho que a gente. ‘Nossa, nunca cantei essa música’, disse Paulinho, mas aí eu falei para ele: ‘A ideia é essa, vamos abrir só piano e você’. É isso que eu acho legal, nunca ninguém viu Paulinho cantando encostado num piano, é sempre cavaquinho e violão, mas aqui ele cantou com um violão e um cello.
Glamurama: Você e sua família moram nos Estados Unidos, em New Jersey, há 21 anos. O que hoje tem de americano em você? Quais hábitos adotou?
Cesar Camargo Mariano: Não sei, exceto roupa, porque a roupa acaba e você tem que comprar, acho que nada. O inglês melhorou um pouco. Bom, há o aspecto da organização. A gente sente falta das coisas do Brasil, mas quando chega aqui sente falta de algumas coisas de lá, porque é um país muito certinho muito evoluído, tem a mesma idade deste, mas a constituição é muito forte, as leis muito boas, as multas respeitadas, isso acaba mexendo na cultura e educação do povo. Isso faz com que a vida fique mais saudável para o corpo para a cabeça, acaba gerando um conforto muito grande, uma qualidade de vida muito grande. Principalmente hoje, que isso aqui [Brasil] tá muito difícil, não só na música, em todos os sentidos e o que sofre com isso é a cultura a educação e as artes, na minha opinião. Saudade de feijão a gente não tem, porque tem supermercados brasileiros, com guaraná, leite moça, arroz branco, feijão preto, branco roxinho, goiabada… Tem tudo lá, é muito confortável. Difícil no começo, continua difícil sob outros aspectos que são pessoais, culturais, costumes… profissionalmente também é bastante difícil, você não vai chegar lá com a sua musiquinha bonitinha e estar empregado no dia seguinte. De jeito nenhum. A concorrência é muito grande, principalmente na música, mas sabendo administrar você chega num lugar legal. Quando fui para lá, já fui com um contrato e eu e mais uma dúzia de músicos brasileiros somos muito respeitados e bastante requisitados, principalmente na minha área, como arranjador e produtor.
Glamurama: Você entrou em contato com algum músico da nova geração nos Estados Unidos?
Cesar Camargo Mariano: Na verdade não, mas a minha filha Luisa, de 27 anos [filha de Cesar e Flavia], é jovem e ela é produtora musical nos Estados Unidos . Canta muito bem, faz arranjos com pessoas importantes do mundo pop atual e de vez em quando fico inteirado das coisas através dela. Por exemplo, o filho do Bobby McFerrin, Taylor McFerrin, é um garoto de vinte e poucos anos, DJ e faz boombox, aquele ritmo com a boca, é dessa onda aí… e é meu fã, já há muito tempo. A Flavia ficou sabendo através da internet, de uma entrevista que ele deu na Europa, na qual lhe foi perguntado quem era ‘o cara’. Aí ele falou que era eu, a gente entrou em contato, na verdade para agradecer. Conversa vai, conversa vem, eu disse, ‘dá um pulo aqui em casa’, aí ele pegou o carro, levou um teclado gigante, garoto assim né? Bom, no final, fizemos uma música juntos, o Bobby, eu e ele numa faixa do disco novo do Taylor. Talentosíssimo o garoto; como o pai.
Glamurama: Entrevistado pelo Glamurama, o jornalista Julio Maria, que escreveu a biografia “Elis Regina – Nada Será como Antes”, concluiu que ela foi a maior cantora do Brasil. Você concorda com isso? (Cesar e Elis foram casados de 1973 a 1981 e tiveram Pedro Mariano e Maria Rita)
Cesar Camargo Mariano: Ele chegou a essa conclusão, mas acho que todo o Brasil chegou. Já faz tempo que todo mundo sabe disso. Claro que eu concordo, também acho ela a principal.
Glamurama: Ele falou que ela cantava com cabeça de instrumentista e chorava e ria no palco sem desafinar.
Cesar Camargo Mariano: Sim, tá certo, concordo. Só não concordo com essas biografias que focam só no lado que interessa pelo sensacionalismo; o crime, a violência, a cocaína. As pessoas olham por este lado e esquecem do artista. Se são pessoas que brilham no mundo inteiro, não é por causa da maconha, da cocaína, é por causa do potencial do cara. E isso as pessoas não estão mostrando. Você vê filmes, biografias, peças de teatro, que não mostram isso, não mostram o drama, a ação da criação do porquê dessa pessoa estar lá. Eu escrevi um livro [de memórias, “Solo”, lançado há dois anos] em que eu tentei mostrar esse lado. Esse artista é o que é não por causa de um casamento mal feito ou bem feito, porque é bonita ou não, é um potencial interno da pessoa. É claro que a biografia não autorizada da Billie Holiday, da Peggy Lee, pessoas complicadíssimas, tem tudo isso, mas em primeiro lugar tem o artista, o criador, como é a cabeça do artista.
Ninguém fala de como foi a cabeça da Elis, a cabeça mais premiada que eu já vi na minha vida, todo mundo que conviveu com ela sabe disso. Ela não dava ponto sem nó com relação à arte, não é com relação a criar filho. Entendeu? Simonal era a mesma coisa, Emilio Santiago também. Grandes intérpretes. Tim Maia tinha um porquê em tudo. Eu acho, particularmente, que isso tinha que ser levado a público. Se você precisa de um drama, de sangue, aí está. Eu fiquei muuuuuito triste com o que fizeram com o Simonal. Do livro, do filme… não falam do Simonal. Dizem que sou romântico. Só fica: ‘Ah, porque ele traiu…’, não fala de música! Não fala do potencial do cara como cantor, porque ele era um grande cantor. O que o levou a fazer isso? Porque era preto? Negro pernóstico? Dedo-duro preconceituoso? Não!É música! É arte!
Aperte o play para um pequeno trecho de “Aquarela do Brasil” na Jam Session!
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