Meio serelepe, meio violão, Katia d’Angelo fazia sucesso entre os intelectuais, virou mocinha de novelas e ganhou prêmios no cinema. Na vida real, precisou reunir forças para sobreviver ao assassinato do filho e, depois, à demolição de sua casa no Rio. Aos 65 anos, busca exercitar seu lado feliz e continua se amarrando num boy cabeludão
Renato Fernandes para Revista J.P de março de 2017
No verão de 1978, a alma da atriz Katia d’Angelo estava em festa. No auge da carreira, ela recebia no Festival de Cinema de Gramado o prêmio de melhor atriz do ano por sua atuação no filme Barra Pesada, de Reginaldo Faria. Antes de engravidar de seu segundo filho, do cantor e compositor Guarabyra, que fazia dupla com Luiz Carlos Sá, Katia havia rodado o longa O Caso Cláudia, baseado no assassinato brutal da jovem Cláudia Lessin Rodrigues, atirada da avenida Niemeyer, na zona sul carioca, depois de um embalo de drogas. Agora, estava escalada para a novela Pecado Rasgado, de Silvio de Abreu. No ano seguinte, seria convidada para posar para a capa da revista Playboy, que comemorava seu quarto aniversário. A crítica a festejava, os jornalistas a paparicavam e os intelectuais a desejavam. Dragada pelo turbilhão de compromissos que o sucesso acarretou, ela emendava uma novela na outra, fazia muito cinema e aceitava convites para o teatro. Estava exausta.
Numa reunião com o todo-poderoso diretor da Globo, José Bonifácio “Boni” de Oliveira Sobrinho, Katia pediu férias. Seu prestígio era tamanho que ganhou uma viagem para a Europa, com escalas em oito países. Era a realização de um sonho. Mas o que deveria durar dois meses, durou dez. Boni chegou a ligar pessoalmente para ela, pedindo que retorna-se; ele a queria na novela das 7. Katia estava literalmente em outro mundo. Totalmente imersa no banho de cultura. De temperamento livre, intenso e apaixonado, ela nem pensava em voltar.
Na retorno, castigo: geladeira. Nada de escalações para novelas na Globo. “O meio artístico me ensinou muita coisa boa e muita ruim, mas acredito que nunca me submeti a nada. Encarei meus patrões de frente e hoje me sinto muito digna.” Porradas da vida não faltaram. No dia que Thiago, seu segundo filho, nasceu, Guarabyra apareceu na maternidade com um anel de brilhante e um cordão de ouro para o bebê, mas jamais assumiu a paternidade. Katia soube pelos amigos jornalistas que ele tinha se tornado pai em um outro relacionamento. Quem assumiu Thiago foi o primeiro marido da atriz, Ronald d’Angelo, pai de seu primogênito, Ronny. Amigo de toda vida, Ronald deu o sobrenome a Thiago. “Sou péssima para datas, as únicas que sei são as do nascimento dos meus filhos: Ronny em 1970 e Thiago em 1978.” Se guardou raiva de Guarabyra? De jeito nenhum. Em 2016, seu Facebook foi invadido por fotos dos dois de mãos dadas no casamento do filho Thiago. “Eu e meus ex-maridos somos todos uma grande família. Guarabyra depois foi um presente. Costumo dizer que são quatro maridos e um funeral, pois o Ronald já faleceu. Eu fui arrimo de família, cuidei também do meu pai até o fim.”
Garota Posto 4
Katia Rebibout nasceu em 12 de dezembro de 1951, na Copacabana dos áureos tempos. Filha de jornalista, ela foi criada entre os livros da bem fornida biblioteca de seu pai e estudou no Colégio Anglo-Americano, frequentado por uma elite carioca. Ela e os três irmãos recebiam tanta atenção dos pais que, em dado momento, passaram a circular de Kombi com motorista. A ideia era ter um carro que coubesse também os amigos dos filhos e, assim, fosse possível controlar sua programação. Ela lembra que, anos depois, o grupo se reunia para “fazer arte”: “A música ‘Feelings’ [sucesso megabrega dos anos 1970], do Mauricio Alberto, foi composta em casa”, diz ela, rindo. “O Morris Albert [nome artístico] era amigo dos meus irmãos.”
Aos 16 anos, surpresa!, Katia d’Angelo estava grávida. O pai da criança era Ronald, com quem se casou e teve o filho. Na ocasião, fez um curso de instrumentação cirúrgica e conseguiu trabalho na equipe do papa da plástica Ivo Pitanguy. O embrião da carreira artística surgiu nos intervalos entre uma cirurgia e outra, quando ela tocava flauta e escrevia poemas. Percebendo, com razão, que Katia tinha muito mais a ver com o teatro e a música, a equipe médica sugeriu a ela que se matriculasse em um curso de arte dramática. Na ocasião, ela teve uma discussão séria com o marido e acabou sendo agredida. Saiu de casa com o filho nos braços, sua força e seu talento.
Musa do Acapulco
Katia agora era hippie – de butique – e passou a frequentar o Acapulco, bar de Copacabana famoso nos anos 1970 pela frequência de intelectuais e artistas. Como gostava de estar entre pessoas mais velhas, rapidamente se tornou a musa do lugar. Alegre, atirada, corpo estilo violão, voz de menininha, ela logo despertaria a atenção de atores “cabeça” como Carlos Vereza, com quem namorou, e José Wilker: “Fui muito namoradeira, mas precisava ter uma história, um sentimento. Sempre gostei de fazer sexo, mas com amor”. Ali conheceu também o cineasta David Neves, que a apresentou a vários diretores de publicidade. “O David me ensinou muito. Foi muito importante pra mim naquele começo.” Em pouco tempo, Katia estava estrelando a campanha de uma caderneta de poupança. No filme, dizia ao futuro marido: “Você quer casar comigo?”.
Assim que a propaganda foi ao ar, ela passou a ser reconhecida nas ruas por esse jargão. O convite para fazer novelas veio pouco depois. “Larguei tudo para viver da arte. Era um tempo em que todos se amavam. A gente queria revolucionar o mundo por meio da arte.” O convite para estrear na TV veio do diretor Régis Cardoso. Ele e o colega Walter Avancini lapidaram o talento promissor da jovem Katia. “O Avancini me adotou, ele era um megero maravilhoso. Despertava raiva no ator, provocava. Quando comecei a dar aula de teatro, usei o mesmo método com meus alunos. A raiva é criativa e transformadora”, acredita. Gatos de cabelos compridos sempre exerceram atração sobre ela. “Não posso com homens cabeludos e inteligentes, me apaixono. Meus ex-maridos são todos um tesão, todos lindos. Casaria com todos eles de novo”, diz, rindo. Ela conta que se apaixonou pelo terceiro marido, que era cônsul da França, ao vê-lo de costas: “Primeiro, vi aquele cabelo loiro, comprido. Aí, quando ele se virou, foi fatal”. O relacionamento durou seis anos e meio, boa parte na ponte aérea Rio-Paris. Até que Katia perdeu uma gravação e optou pela carreira. O quarto marido, também cabeludo, foi o músico Victor Biglione. Três anos juntos.
Filme Triste
A vida animada de Katia d’Angelo ganhou contornos sombrios em 1997, quando teve de enfrentar uma perda irreparável. Seu filho Ronny, 26 anos, que sofria de transtorno bipolar, foi assassinado com mais de 15 tiros. Encontraram o corpo na favela Vila Aliança, na zona norte do Rio. Na ocasião, Katia ainda teve de enfrentar as especulações sobre a causa da morte. Agora, depois de quase 20 anos, ela já consegue falar da tragédia: “O Ronny teve envolvimento com drogas, mas estava limpo havia mais de dois anos. Foram várias internações, não só pelas drogas, mas por causa da bipolaridade. Ele vivia nos extremos, e isso tudo era resolvido dentro de casa. Tentou me matar duas vezes, mas logo depois dizia que me amava. Nunca revelei isso numa entrevista”. Ela lembra que muitas vezes chegou atrasada em filmagens porque estava com o filho. “Tinha medo do que pudesse acontecer com ele. Sabia que uma tragédia nos esperava.” Com a morte de Ronny, o mundo de Katia ruiu. “Naquele momento, acabou tudo pra mim. Meu futuro, minha vida.” Salva mais uma vez pela arte, passou a dar aulas de interpretação. Taís Araújo e Natália Lage estão entre as ex-alunas.
Com o tempo, Katia foi recuperando sua energia vital, até que há poucos anos veio outro revés. Dessa vez, ela perdeu sua casa de 400 m2 na Lagoa de Marapendi, na Barra da Tijuca. Com a alegação de que o imóvel havia sido construído em área de reserva ambiental, a prefeitura o demoliu. Apesar da indignação, ela segurou a onda. Diz que, depois da dor que sentiu com a morte do filho, nada mais a abala: “A gente precisa crer em Deus, ter fé e aprender a fazer só o bem. Minha avó judia me ensinou a gravar na retina só as coisas boas e bonitas. Hoje, me sinto como se tivesse voltado para a redoma em que fui criada”. Se ela descarta voltar a atuar? Nem pensar. “Todos nós temos muitas pessoas dentro da gente, muito personagens.” Há mais de um ano, Katia vive em Paraty, no litoral do Rio, em uma casa à beira de um rio. Conta que faz seu dia a dia de bicicleta. Apesar de estar solteira no momento, diz que não fechou o livro. “O problema é que eu adoro gente e, ao mesmo tempo, odeio. Minha tolerância para burrice é zero. Sei que sou complicada, mas procuro estar feliz. Acho que a receita básica é não carregar as dores.” Um desafio.
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