Maior navegador brasileiro, o paulistano que atravessou o Atlântico remando sozinho, isolou-se no gelo da Antártida por mais de um ano e deu duas voltas ao mundo, entre diversos outros feitos, lança livro em que revive sua trajetória. E tenta, outra vez, nos convencer de que muito mais difícil do que comandar um barco em mar tormentoso é fazê-lo deixar o cais
Por Paulo Vieira para a revista Poder de março
As analogias entre embarcações e empresas (ir de vento em popa, enfunar velas, levantar âncora…) não entusiasmam muito o maior navegador brasileiro, o paulistano Amyr Klink, o homem que em 1984 atravessou o Atlântico da África ao Brasil num pequeno barco a remo e tempos depois se isolou com seu veleiro por mais de um ano na Antártida, entre muitos outros feitos náuticos. Para ele, tal comparação só faria sentido se a companhia afundasse – ou se chegasse muito perto disso. Nesse caso, e somente nesse caso, o executivo talvez sentisse na pele o estado de atenção permanente que se vive a bordo. Amyr gosta de dizer que num barco não é possível deixar o problema de hoje para amanhã, sob risco claríssimo de ir a pique. “A beleza, a característica mais legal do barco, é que ele afunda. É preciso ter a noção exata do tamanho das consequências do que se faz ali. Se um executivo quiser passar por uma experiência similar à que se tem numa embarcação, seria bom que sua empresa implodisse”, disse.
Amyr tira o uísque das crianças – ou, para ser mais justo, o vinho, bebida que ele prefere – de uma carregada agenda de palestras (ele diz ser de 100 a 120 por ano, cerca de 20% delas gratuitas) e dos rendimentos de uma marina que mantém em sua querida Paraty (RJ). Os direitos autorais de seus seis livros, segundo ele, não entram no bolo, embora o navegador seja um autor best-seller de primeiríssima grandeza para os padrões brasileiros, vendedor na raríssima casa do bilhão, puxado especialmente por seu primeiro título, Cem Dias entre Céu e Mar. Mesmo assim, no fim do ano passado, colocou mais um título na praça: Não Há Tempo a Perder (Foz/Tordesilhas). Trata-se de um longo depoimento concedido à jornalista Isa Pessoa em que revisita sua trajetória. Aqui está o navegador, claro, mas também o Amyr aluno da faculdade de economia da Universidade de São Paulo (USP), o bancário infeliz, o filho que manteve um relacionamento problemático com o pai, o discípulo dedicado que se entusiasma com a disciplina férrea de um professor de remo autoritário. E há também um Amyr conhecido – o autor, o excelente contador de histórias, uma carreira que ele, curiosamente, não previra para si mesmo ao aportar na praia da Espera, ao norte de Salvador, vindo de sua travessia de 100 dias e 100 noites pelo Atlântico. Quem o convenceu a colocar a viagem no papel foi um vizinho de Paraty, o jornalista e empresário Roberto Muylaert, na época ainda por se tornar presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, a emissora estatal de São Paulo.
PERO QUE LAS HAY
Quiseram a conveniência e a coincidência que PODER se encontrasse com o navegador em 2 de fevereiro, Dia de Iemanjá. Mas Amyr e sua eterna companheira, a fotógrafa, velejadora e agora blogueira Marina Klink, que aguardavam a equipe em uma mesa de canto do restaurante Kosushi, no Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, não haviam se dado conta disso. Amyr nada pede a divindade alguma, tampouco lhes paga tributo, mas por imposição da baiana Conceição, empregada da família, um dia a acompanhou ao Guarujá para entregar oferendas à rainha do mar. Não obstante, o 2 de fevereiro é marcante em sua história. Foi nesse dia, em 1991, que decidiu rumar para o Ártico apesar de estar há mais de um ano isolado literalmente do outro lado do mundo, na Antártida; em 2001, lançou ao mar, justamente no Dia de Iemanjá, seu grande veleiro polar, o Paratii 2; e, em 2004, concluiu nessa data, na Baía de Dorian, de novo no continente gelado, sua segunda circunavegação polar, dessa vez com tripulação.
As efemérides no mar, contudo, nada dizem para Amyr. Para o navegador, o trabalho mais desafiador começa em terra firme, muito antes da travessia. Conceber, calcular, projetar, fabricar, contratar, testar é que são elas. É da competência com que ele realiza essas atividades, aliás, que depende o sucesso de suas jornadas. Não fizesse isso diligente e escrupulosamente, o IAT, barco de menos de 6 metros de comprimento com o qual atravessou sozinho o Atlântico, afundaria mal ele deixasse a costa da África. As ondas de 3 metros, que ele chamava de “madrastas”, num ranking divertido que criou para designá-las segundo seu poder de intimidação, fizeram-no capotar algumas vezes, como registra em Cem Dias entre Céu e Mar. Depois, cruzar por semanas o oceano orientando-se por um sextante e outros instrumentos do tempo do onça foram, segundo ele, café pequeno diante dos problemas logísticos e alfandegários que teve de enfrentar para colocar o barco na água. Assim, não surpreende nem um pouco que seus relatos evitem a grandiloquência, não tenham qualquer fumo de epopeia. Um dos livros que o inspirou a fazer sua jornada solitária é L’Atlantique à Bout de Bras, do francês Gérard d’Aboville, que cruzou o mesmo oceano, também com o muque e com a cabeça – o cálculo dos ventos e das correntes é a principal tarefa desses navegadores –, mas um tanto mais ao norte, entre Estados Unidos e França. Além da secura da escrita, o que ele gosta em d’Aboville é a ausência total de uma missão, de um propósito maior, como se a viagem fosse pouco mais do que um passeio de fim de semana. “Superação”, essa palavra tão usada por agentes esportivos, publicitários e mentores corporativos, não deu as caras em nosso almoço.
PREDESTINADO
A despeito de tudo aqui falado, é difícil não ter Amyr na conta de um semideus, de um ser talhado para viver as missões mais cabulosas que alguém pode enfrentar na Terra, um indivíduo que colocaria os sobreviventes da franquia cinematográfica Jogos Vorazes, se eles não fossem personagens inverossímeis de ficção, no chinelo. Mas ele não fica nem um pouco à vontade no papel de herói e faz questão de desviar dos tapetes que são desenrolados para amortecer seus passos. Nesse sentido, o que ele conta em Não Há Tempo a Perder faz do livro um evangelho ou, talvez, uma espécie de discurso do método. Fica claro, por exemplo, que numa viagem com Amyr não há diferenças de classe no interior do barco. O mais tosco tripulante em algum momento vai operar as máquinas, assim como o capitão também irá lavar o banheiro. Por isso é preciso saber fazer emergir certo espírito colaborativo de cada um dos comandados e, mais do que isso, achar seu melhor talento, sua melhor serventia. E, pelo amor de Deus, jamais procrastinar. Uma diferença essencial do capitão para um chefe convencional é que Amyr não pode simplesmente dizer “passa no RH” uma vez levantada a âncora: não existe a possibilidade de trocar tripulação em alto-mar.
E com tantas milhas viajadas, Amyr já teve muitas vezes que se entender com gente não muito disposta a pegar no pesado. Ele cita fotógrafos muito ciosos de seu ofício e argentinos “sempre preguiçosos”. Um de seus veleiros Paratii já cruzou o Atlântico tendo a bordo um matador confesso, embora esse cidadão e o resto da tripulação tenham sido contratados por um amigo dileto de Amyr, o médico Fabio Tozzi, capitão da primeira parte daquela viagem que celebrava, no ano 2000, os 500 anos do descobrimento do Brasil. Se não pôde demitir seu pior tripulante uma vez iniciada a viagem, o navegador ao menos tem a chance de tratar o maior medalhão empresarial como um a mais a bordo.
Nas vivências que liderou com empresários e altos executivos, algo que não faz com muita frequência, Amyr teve uma experiência interessante na Baía de Guanabara com uma das mulheres mais poderosas dos Estados Unidos. Embora ela ainda não tivesse lançado sua até aqui fracassada carreira política – perdeu uma eleição para o senado na Califórnia e teve de abortar ano passado sua pré-candidatura à Presidência norte-americana pelo Partido Republicano –, Carly Fiorina era, em 2005, a presidente do conselho de administração da empresa de tecnologia HP, um cargo digno do que o escritor Tom Wolfe chamou em seu livro A Fogueira das Vaidades de “mestre do universo”. Junto com mais dez seletos convidados, todos clientes da HP, ela navegou no Paratii sob o comando de Amyr. Não se sabe se os aspones brasileiros da HP conheciam algo da doutrina do navegador, mas quando ele começou a pedir para Carly levar caixas de mantimentos para dentro da embarcação, eles desapareceram como que por mágica. “Nessa hora eu disse para ela que o pessoal daqui parecia não gostar muito de trabalhar”, contou durante o almoço no Kosushi.
Tendo ido a latitudes que pouquíssimos foram e visto in loco as transformações que o aquecimento global inflige ao lugar mais protegido do planeta, a Antártida, Amyr não se assusta com o futuro da Terra. Desde que, ressalva, “não esgotemos todos os recursos naturais de uma vez, fazendo a população brasileira, por exemplo, passar a ter o mesmo consumo per capita de cápsulas de café dos frequentadores do Shopping Cidade Jardim”. E completa: “É uma questão matemática”. Se isso não acontecer, ele vê uma “Terra boa” no médio prazo, daqui a 50 anos.
Até as ameaças do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de rever os compromissos norte-americanos no chamado Acordo de Paris, assinado por seu antecessor Barack Obama para ajudar a deter ou ao menos desacelerar o aquecimento global, podem, segundo Amyr, ser benéficas. A ideia subjacente é que os atos de Trump em prol de maior exploração de combustíveis fósseis, como o xisto, recurso abundante no país, sublinhariam e dariam ainda mais relevo ao despropósito de tudo isso.
Da mesma forma, ele acha que uma crise muito intensa no Brasil, uma conflagração “digna da revolta de Canudos”, teria salutar efeito profilático. Afinal, brasileiros são reconhecidamente perdulários de seus fartos recursos naturais, principalmente a água. “A água no Brasil é quase de graça, por isso a gente joga fora. A empresa responsável pelo abastecimento em São Paulo (a Sabesp) perde 40% desse recurso. Quando conhecermos a escassez, pode ser que melhoremos.”