A ciência já provou: é possível treinar o cérebro e desenvolver habilidades cognitivas como atenção, assertividade na tomada de decisão e mais. No esporte, esse treinamento já é uma realidade e a cada dia se aproxima de um público mais abrangente
por Victor Santos
Mesmo em tempos de terra plana, não há dissenso sobre a necessidade de cuidar do corpo. O avanço tecnológico ofereceu novos horizontes ao zelo pela saúde física. Surgiram uma profusão de aplicativos fitness, políticas empresariais direcionadas ao bem-estar de seus funcionários e até mesmo um cardápio de exercícios mais diversificado nas academias, com modalidades esportivas pouco convencionais se comparadas a um passado recente. Mas cuidar do corpo é suficiente? Vale lembrar uma canção entoada pelos irreverentes Originais do Samba: “Cabeça que não tem juízo o corpo paga”. É claro que a boemia é o contexto da composição do grupo do saudoso Mussum, mas ela também sugere reflexos de uma cabeça desordenada e seu reflexo no corpo. Um debate sobre alguns fatores cognitivos como tomada de decisão e impulsividade: “É bem melhor pensar milhões de vezes / antes de fazer / antes de falar”. Assim, surge a indagação: se cuidamos do nosso corpo, podemos também cuidar da cabeça? Treinar o cérebro? A resposta é sim.
As primeiras peças de literatura científica sobre treinamento e reabilitação cognitiva são datadas de mais de cem anos atrás, época da Primeira Guerra Mundial, e decorrem da tentativa de auxiliar soldados com lesões cerebrais. Atualmente, com a projeção da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que casos de demência triplicarão até 2050 causados pelo estilo de vida contemporâneo, o assunto vem ganhando mais atenção e representa um campo de pesquisa promissor. De modo que melhorar a performance do cérebro é uma demanda crescente e há uma disseminação de aplicativos para o treino – Lumosity, Brain Trainer Special, Little Things Forever e Monument Valley estão entre os mais populares –, listas em sites de curiosidades e, com mais força no exterior, instrumentos mais tecnológicos como realidade virtual, estimulação transcraniana por corrente contínua (ETCC) e saunas com infravermelho. No meio desse oceano de novidades, fica a pergunta: o que funciona?
De maneira muito geral, o cérebro humano capta cotidianamente informações do ambiente para gerar ações. Com a repetição tendemos a otimizar, procurar atalhos e, para realizar tais ações, poupamos o que é precioso para o funcionamento do Homo sapiens: energia. O neurocientista Caio Moreira, doutor em Comportamento e Cognição pela Universidade de Göttingen, da Alemanha, é sócio-fundador e diretor científico da Sensorial Sports, empresa que trabalha com neurociência e desenvolve treinamentos cognitivos no intuito de aprimorar a performance por meio de realidade virtual. Ele explica que o esporte é uma das práticas com maior demanda do cérebro para captar informações e gerar ações rápidas, e vê com bons olhos a estimulação com tarefas novas. “Quando se executa uma ação de forma repetitiva, os recursos utilizados do cérebro são menores do que uma ação inédita e imprevisível. Um conceito interessante é o de ‘flexibilidade cognitiva’, a capacidade do cérebro em lidar com informações novas de forma rápida e precisa, para criar ações e pensamentos em alta performance”, diz.
No entanto, essas redes neurais são formadas não só pelo repertório motor, mas também pelo contexto. Moreira exemplifica com os exercícios de um quarterback, o “lançador” do futebol americano, que pelo movimento repetitivo de braços havia lesionado o ombro. Um treinamento, sem simulação de jogo, estimulou o jogador a adotar outro movimento, porém, o corpo insistia sempre no movimento antigo. “Aquela rede executada por muitos anos não foi desfeita. O treinamento foi errado porque repetir um novo movimento não tem a ver com o jogo. O jogo é aleatório e imprevisível e, com o treinamento repetitivo, o gatilho para a tomada de decisão, que envolve outros aspectos da partida, não estava presente”, conta, ressaltando a importância de levar as conquistas do treinamento para a prática. Afinal, de nada adianta evoluir uma habilidade quando se precisa de outra. “Durante uma avaliação com árbitros de futebol, por exemplo, constatou-se que o tempo de resposta dos melhores deles não era muito rápido, mas o controle de impulsividade, sim. Porque não é preciso ser mais rápido, o mais importante é não tomar uma decisão precipitada. Para cada modalidade esportiva existem perfis próprios, no caso dos árbitros eles precisam controlar a impulsividade e terminar o raciocínio para então poder tomar a ação.” Por “modalidade” entende-se também carreira. Independentemente de ser atleta ou não é extremamente benéfico acoplar exercícios cognitivos e físicos, pois eles aumentam o volume de sangue no cérebro e promovem a liberação de neurotransmissores e de fatores de crescimento.
A psicóloga Marina von Zuben, especializada em neuropsicologia, atua com avaliação e treinamento cognitivo e também na reabilitação neuropsicológica. Ela avalia como positiva a prática de atividades inéditas que ajudem a trabalhar o cérebro, porém alega que um grande desafio é transpor os benefícios para a vida das pessoas. “Sair do habitual obriga o cérebro a sair do automático e repensar uma tarefa. Isso pode trazer contribuições, mas essa melhora vai trazer benefícios se houver um ganho funcional para a vida e a rotina da pessoa. Não adianta virar um rei do sudoku se a única conta que faz é o troco do pão na padaria.”
Marina classifica a ampliação de repertório como algo interessantíssimo para o cérebro e completa com a explicação do conceito da “reserva cognitiva”. “As pessoas vão constituindo essa reserva ao longo da vida com educação, experiências culturais, juntando uma espécie de garantia que a ajudará na hora de lidar com dificuldades. Uma pessoa com depressão, se ela tem uma boa reserva cognitiva, tem um impacto dessa depressão muito menor do que quem tem uma reserva pequena ou nenhuma”, analisa. É como se ao longo da vida o cérebro fosse ganhando alternativas e numa situação adversa ele teria mais recursos para segurar o corpo da queda. Contudo, dinâmicas da vida moderna revelam uma série de desafios cognitivos megalomaníacos que, somados ao estresse, são problemáticos. “A pessoa não para de trabalhar, a vida on-line perturba. Entendemos quando o computador está sobrecarregado, mas não quando nós estamos sobrecarregados e não conseguimos lembrar um determinado compromisso. A gente se compara com o Bill Gates, isso tudo às custas da própria saúde”, finaliza, ressaltando o quanto situações sociais, como uma conversa simultânea entre cinco pessoas, por exemplo, podem fazer o cérebro trabalhar.
Com o campo de pesquisa ainda incipiente e técnicas e práticas em desenvolvimento, o treinamento cognitivo pode, sim, funcionar e serve como forma de reduzir os danos neurológicos do modo de vida moderno. Criar novas conexões pode gerar novos caminhos, um ganho não só criativo como prático para o cérebro. Porém a vida virtual, uma carga de trabalho exagerada e o isolamento social atrapalham demais no desenvolvimento. Com os diversos aplicativos e o approach mais tecnológico, o método precisa de acompanhamento de um profissional e, mais que qualquer coisa, ser efetivamente transposto para a vida prática. Isso que é fundamental, cognitivamente falando.
3 DICAS RÁPIDAS PARA EXERCITAR O CÉREBRO EXERCITAR O CÉREBRO
1. Pratique atividades físicas anaeróbicas como musculação, mas não se esqueça das aeróbicas – são essas práticas as que estão mais associadas à melhora de desempenho cognitivo;
2. Faça movimentos de coordenação motora como malabares ou que envolvam os dois lados do corpo – associar números pares com movimentos da perna direita e braço esquerdo, e vice-versa;
3. Inclua na rotina tarefas duplas, como pular corda enquanto conta de 3 em 3 (3, 6, 9, 12…) ou correr enquanto menciona o nome de animais com determinada letra – como na brincadeira Stop.
HOLE IN ONE
Gustavo Teodoro, golfista profissional e membro da equipe medalha de ouro nos Jogos Mundiais Militares. Usou o treinamento cognitivo para aprimorar suas tacadas.
Como foi o seu treinamento?
A gente faz um teste com óculos 3D e entra em uma atividade que avalia tomada de decisão, reflexo, antecipação. Depois do teste, um banco de dados com informações de todos os atletas compara os seus resultados e avalia a evolução. Eu trabalhei com uma psicóloga esportiva também, a ideia era entender o meu processo.
Como foi esse primeiro contato?
Em um primeiro momento bateu ansiedade e expectativa, nunca tinha trabalhado com isso, tinha um certo tabu, mas foi interessante. Não era um trabalho específico para o golfe, mas sim para o mental. Eu sou atleta, nós somos competitivos. O golfe é um esporte que precisa de muita concentração por muito tempo. Gostei muito, fora que é divertido, tem pegadinhas, música e surpreende.
Sentiu benefícios?
Durante o jogo eu sempre fui bem conservador e não agressivo. Comecei a trabalhar alguns pontos em que eu precisava de uma postura mais agressiva e, com o treinamento, fui melhorando meu jogo
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